Corpos estendidos no chão

Aqueles que têm as vidas por um fio, mas ainda se sustentam nesse fio e não estão dispostos a desistir
Ilustração: Thiago Lucas
01/11/2024

Acabo de almoçar com um amigo em Copacabana. Volto para casa a pé, oito ou dez quadras ao longo da Barata Ribeiro. Tenho tempo, não preciso correr. E o simples fato de não precisar correr me dá a chance, enfim, de ver. Ver o que, sempre que passo por aqui, a verdade medonha é essa, eu me esforço para não ver.

Todos correm pelas calçadas da Barata Ribeira, rua de trânsito pesado e comércio intenso. Correm e, em uma cegueira conveniente, se desviam dos corpos largados no chão. Mulheres e homens sem teto se estiram sob as marquises dos edifícios. Enrolam-se em trapos e folhas de jornal, escondem-se em caixas de papelão, improvisam leitos com sobras de colchonetes e espumas.

Muitos deles, mesmo durante dia, continuam a dormir. Um sono profundo e tenso, que tenta enganar a fome e se parece com uma rendição. Mas, agora que eu os observo com olhos menos apressados, entendo que, mesmo quando dormem, lutam. Agarram-se a quase nada, mas não desistem. Têm as vidas por um fio, mas ainda se sustentam nesse fio e não estão dispostos a desistir.

Avanço devagar, obrigo-me a ver. As pessoas passam concentradas em seus destinos, como se esses corpos não existissem. Enquanto andam, olham para cima, ou para dentro. Correm como se avançassem em uma estrada vazia, ou em um deserto. Tantas vezes, admito, também eu faço o mesmo. Mas hoje não. Hoje preciso ver.

Alguns deles estendem as mãos, pedem comida, moedas, piedade. Em uma esquina, me surge a figura de um velho, flácido e barbado, o rosto sujo com manchas negras, os últimos fios de cabelo arrepiados como uma coroa. O velho me encara, mas nada me pede. Parece que já desistiu de desejar e de esperar. Já não está mais ali, embora seu corpo resista como uma ferida na paisagem. Um corpo estendido entre corpos ao longo da calçada.

Diminuo o passo e o observo. Parece-se, muito, com meu falecido pai. Deve ser pai também, mas está sozinho. Abriga-se sob a marquise de uma lanchonete. Pensando mais em meu pai do que no velho, entro na loja e peço um sanduíche. Embrulhado para viagem, eu digo — embora a viagem seja só a descida de um degrau.

“Isso é para o senhor”, eu lhe entrego. O velho me olha perplexo, a boca trêmula, como se eu lhe oferecesse um par de algemas, e não um pão. “Tem certeza de que é para mim?” Explico que eu mesmo comprei, e que, sim, é para ele. “Não vai ajudá-lo em nada, mas, pelo menos disfarça a fome”, digo, cheio de vergonha. Não agradece, não diz mais nada. Em desespero, abre o pacote e começa a mastigar.

Depois da primeira dentada, o velho respira e me faz uma pergunta de filósofo: “Por que eu?”. Ele merece que eu diga a verdade: “Porque o senhor se parece com meu pai”. Volta a mastigar seu pão, mas ainda diz: “Então o sanduíche é para seu pai, não é para mim”. Esboça uma gargalhada que não lhe sai, porque a boca está cheia. Envergonhado, eu fujo.

O velho tocou em minha ferida: foi para me aliviar, e não para aliviá-lo, que eu lhe dei o miserável sanduíche. Pode até disfarçar sua fome, mas, em duas ou três horas, logo estará faminto de novo. Eu lhe dei um disfarce — uma mentira. Na verdade, eu, com minha filantropia mambembe, sou a mentira.

Apresso os passos, mas já não posso deixar de ver. Corpos estendidos no chão pontuam com sua tristeza as beiradas da Barata Ribeiro. “Meu pai podia estar ali deitado”, eu penso. “Eu também podia estar.” A empatia é um sentimento difícil, que superamos com a arrogância, ou a cegueira. Crianças se enroscam em tiras de cobertor. Cachorros sujos e magros ressonam a seus pés. Uma velha assustada acaricia um menino que tenta vender chicletes. Parece que ele chora.

Agora é uma mulher que, coberta por uma manta vermelha em que a tintura não se distingue do sangue, ergue a cabeça e me diz: “Estou com fome”. Não me pede, só diz. Isso deveria bastar. Envolta nos farrapos que lhe servem de xale, os olhos miram o vazio. Através de mim e de minha apatia, ela desafia a morte.

Sem esperar que eu responda, a mulher volta a deitar a cabeça sobre uma sacola. Já se acostumou ao silêncio. À indiferença. Não estou no sertão, mas penso nos Retirantes, que Portinari pintou nos anos 1940. Empurrados pela seca, eles, pelo menos, fogem. E, ao fugir, perseguem uma esperança. Já os corpos que brotam nas calçadas não têm nem mesmo para onde fugir. Vivem a miséria absoluta. A seca — a miséria, a dor — está em seu interior. E, no entanto, são homens como eu, me obrigo a pensar. Sim, eu poderia estar ali deitado. Um dia estarei?

A mulher da manta vermelha podia estar em uma tela de Portinari, ou em um desenho de Iberê Camargo, ou em alguma página perdida de Graciliano. Nenhuma fantasia literária, porém, me salva do que vejo. É injusto e até estúpido adornar sua miséria com o verniz da arte. A arte não os protege, apenas me protege.

Sigo em frente, decidido a não parar de ver. Preciso suportar, eu me digo. A galeria de homens e mulheres que expõem seu abandono não termina. Ali, diante de nós, homens cegos, eles exibem seu horror. Um horror vivo, mais potente que meus sentimentos frouxos, e que só tem o corpo para se materializar.

Mais alguns passos e avisto uma família. A mãe, vencida e descabelada. As crianças, que sempre encontram alguma maneira de sonhar. Um homem deitado sobre um papelão. Um bebê, que a mulher mal sustenta em seu colo. Só falta a manjedoura, penso. Mais uma vez, sirvo-me de minhas fantasias cristãs, de minha covardia de “homem de bem”, para negá-los.

Pergunto-me: de que adianta ver? Ver não serve de nada, eu precisaria agir. Viro o rosto tentando não ver mais. Do outro lado da rua, deparo com uma padaria. Uma dúzia de pães não matará a fome dessa família, nem os tirará do desespero. Ainda assim, decido, comprarei dois sacos grandes de pão.

Busco um semáforo para atravessar. Mais um pouco e haverá um. Enquanto avanço na esperança de uma brecha, sob as marquises, mais e mais solitários se apinham. Eles se multiplicam diante de mim. Vejo, enfim, um sinal. Atravesso. Mas, em vez de voltar rumo à padaria, entro na primeira transversal e tomo o caminho de casa. Na fuga, tenho a dimensão do homem medíocre que sou.

NOTA

Texto publicado originalmente no suplemento Pernambuco, em junho de 2022.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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