Clarice no inferno

Releio — como se o lesse pela primeira vez — A paixão segundo GH, o mais importante romance de Clarice Lispector
Clarice Lispector, autora de “Laços de família”
01/11/2014

Releio — como se o lesse pela primeira vez — A paixão segundo GH, o mais importante romance de Clarice Lispector. Comemoramos, em 2014, seu cinquentenário de publicação. Enquanto o país se agitava com o golpe militar de 1964, Clarice publicava seu livro mais enigmático e perturbador. Em um ano de grande turbulência externa, ela vinha nos propor, através da via delicada da ficção, alguns parâmetros para uma revolução interior. Apostava — contra todos os sinais de desalento que se espalhavam pelo real — na grandeza do homem. Clarice sempre apostou no humano. Mesmo nos momentos mais dolorosos, dele nunca desistiu.

Em contraste com uma realidade irrequieta e difícil, Clarice escreve sobre os mecanismos secretos que separam a nós, humanos, dos animais. Nem sempre conseguimos divisá-los. Muitas vezes, sem encontrar explicações para nossos atos ou sentimentos, nos agarramos às lições redutoras da biologia. Como se fôssemos biologia pura, transformando-a, assim, em nosso inferno. Apoiamo-nos, desamparados, na noção de natureza e nela nos refugiamos. Trata-se — Clarice nos mostra em GH — de uma falsificação. Não somos apenas animais. É muito importante ter contato com essa parte instintiva que nos constitui, mas nossa vida não se resume a ela. Vai muito além — e é nesse além do corpo que o humano se decide.

Mais do que da natureza, somos habitantes da linguagem. Ela é nosso verdadeiro lar. Nela estão nossos fundamentos e também as razões maiores de nossa fragilidade. A história de GH é conhecida. Arrumando o quarto de empregada, uma mulher (GH) depara com uma barata. Assustada, e em um ato irrefletido (irracional), ela a espreme contra a porta de um armário. Uma gosma branca escorre de seu interior. “O que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.” A barata é puro instinto. É o neutro — nela não existe ainda a interferência da linguagem. “O neutro era a vida que eu antes chamava de nada. O neutro era o inferno.” Ao defrontar-se com o anterior ao humano é o próprio humano, por contraste, que se reafirma.

Com A paixão segundo GH, Clarice se recolhe para escrever sobre a mecânica secreta que nos constitui e que desenha nossa liberdade. Ao buscar um mundo anterior ao humano — a barata deflagra a presença da “coisa” —, é com o humano e sua potência que ela nos defronta. Talvez a agitação política tenha levado Clarice a se perguntar por essas relações de fundamento que, na enxurrada dos acontecimentos e das notícias — no atordoante deserto dos “fatos” —, costuma se perder. Os fatos nos arrastam, nos atrelam à carruagem da história, e esquecemos de simplesmente ser. É o que Clarice insiste em fazer, apesar dos movimentos adversos do real. Foi uma mulher politizada que, mais tarde, se engajaria nos movimentos sociais de 1968. Isso não a impede, porém, de saltar para dentro e de perseguir o núcleo do ser.

Há uma alegria em situar-se nesse mundo que, para além da linguagem, é matéria pura. “Vou te dizer: é que eu estava com medo de uma certa alegria cega e já feroz que começava a me tomar.” O confronto com a matéria, ou o “neutro”, guarda um aspecto assustador, mas também revelador. “O neutro é inexplicável e vivo, procura me entender: assim como o protoplasma e o sêmen e a proteína são de um neutro vivo.” Por contraste — por falta —, ele revela aquele “a mais” que nos distingue dos insetos. Ele nos revela. A experiência de GH no mundo da “coisa” é uma espécie de perdição. Não tem certeza se conseguirá retornar ao humano — que, visto desde ali, parece tão distante. “Se eu conseguir voltar do reino da vida tornarei a pegar a tua mão, e a beijarei porque ela me esperou.” O beijo é o “a mais”: expressa afeto, manifesta um pensamento, ultrapassa os automatismos do mundo natural. O humano nasce de um choque: provar da gosma que escorre de dentro da barata agonizante, como faz GH, produz um susto que ultrapassa todas as noções de conforto, de elegância e de bem viver. Que despedaça o humano para, ato contínuo, nos revelar seu valor.

No ano de 1964, enquanto o Brasil experimenta dias frenéticos, Clarice conclui sua travessia do deserto — sozinha, desamparada, propositalmente decidida a se afastar das contingências humanas — e nos entrega um livro que, em contraste com o nascimento do regime militar, parece completamente absurdo. Nesse território anterior ao humano, onde as coisas são o que são, não há sentido, mas apenas matéria. Contudo, é a partir dele que um esboço de sentido pode se constituir. É só porque estamos vivos que podemos ser. “Eu não quero perder minha humanidade!”, GH desabafa depois de tudo o que viveu. O que fez senão ver a humanização por dentro? O que fez senão escavar nossos fundamentos mais dissimulados?

Com seu exercício íntimo, GH luta para se afastar das repetições do humano e chegar, assim, a seus fundamentos. “A humanidade está ensopada de falsa humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade.” Ao pensar no humano, não pode excluir o bicho que somos. O “neutro” nos habita — a algo dentro de nós que nos submete e nos ultrapassa. Diante desse abismo, só o retorno à linguagem pode nos salvar. Clarice precisou atravessar um deserto para retornar, enfim, à literatura. GH é um livro de transição, que marca seu retorno ao Brasil depois de se separar do marido diplomata. GH indica seu caminho de solidão. Não como um castigo, mas como um destino. Como o ponto de partida — ponto zero — sobre o qual podemos, sem o recurso das máscaras, tomar posse de nós mesmos e nos constituir.

NOTA
O texto Clarice no inferno foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho