Bioy e Borges

Escritores devem saber ouvir, em abnegação e silêncio, para só depois escrever
Bioy Casares e Borges por Ramon Muniz
01/11/2010

A mulher que se cala
Essa noite, tive um estranho sonho. Em um restaurante, eu lia em voz alta um conto que acabara de escrever. Lia para uma mulher, uma desconhecida que, sentada à minha frente, se conservava em silêncio. Quando terminei de ler, sem dizer uma só palavra, ela se levantou e se foi. Deixou-me sozinho com minhas palavras.

Acordei atordoado. Tomei um café e me joguei em uma poltrona. Lembrei, então, de uma visita que fiz, já no fim de sua vida, a Adolfo Bioy Casares. Estava muito idoso e doente. Entre frascos de remédios e grossos cobertores, porém, continuava a escrever. Escrevia em cadernos escolares. Escritores também são meninos.

Toda manhã, Casares rascunhava um conto. Não falhava, mesmo que nada tivesse para dizer. Como almoçava sempre em um restaurante da esquina, o Blake, e a cada dia convidava uma amiga — sempre mulheres, nunca homens — para acompanhá-lo. Após a sobremesa, tomavam um licor enquanto ele lia, em voz alta, o conto escrito naquela manhã.

Não esperava comentários, ou avaliações. Preferia as mulheres, que lhe ouviam em silêncio, depois lhe davam um beijo e se despediam. Dizem que as mulheres falam muito; talvez seja verdade. Mas Casares acreditava que nada existe de mais precioso que seus momentos de silêncio. Algumas mulheres o acusavam de machismo, de desejar amordaçá-las. O escritor se revoltava. Para ele, o silêncio feminino era a forma mais perfeita da solidão. Só ele, ainda, estanca o grande falatório.

Quando Borges ainda estava vivo, Casares o colocava no lugar do ouvinte, mas a experiência era quase sempre desastrosa. Depois de ouvir seu relato, Borges não parava de falar e falar — e o conto apenas rascunhado, ainda sem defesas, frágil demais, terminava destruído. Bioy acreditava que nós, homens, não sabemos ouvir. De fato, temos uma imensa dificuldade para isso. Nós, sim, falamos demais. Cheias de dentes, nossas palavras, muitas vezes, matam.

O espantoso, mas também constrangedor, pois revela, talvez, minha vaidade: meu sonho repete o relato que, em silêncio, numa posição quase feminina, ouvi de Adolfo Bioy Casares. Tomei notas para minha entrevista, mas nada comentei. Imitando as mulheres que o acompanhavam no almoço, mulheres que sabiam sustentar um silêncio precioso, me despedi sem nada dizer. Foi difícil, mas fiz isso.

Contudo — eis meu lado masculino — não resisti e, minutos depois, escondido sob o toldo de um café vizinho, vigiei sua chegada ao restaurante da esquina. Homens, mesmo grisalhos, adoram jogar de detetives. Desmentindo o que ele me dissera, Casares entrou sozinho no Blake. Pelo vidro fosco da janela, pude constatar, pouco depois, que almoçou sozinho também.

As mulheres que o ouviam, quem sabe, não passavam, elas também, de ficções. Eram fantasmas bondosos que, em vez de assustá-lo, o ajudavam a escutar a si mesmo. Quem não cultiva companheiros invisíveis? Quem, na solidão mais extrema, não se apega a uma mão inexistente? Pode — e deve — saber que ela, de fato, não existe. Mas só porque não existe, é tão acolhedora. Existisse, falaria — e mataria a solidão.

Volto a meu sonho da mulher silenciosa. Penso que ele ilustra — como Casares sozinho em sua mesa — um tanto da minha solidão. Preciso muito, cada vez mais, da solidão. Ela me alimenta. Só o silêncio cuida de minhas feridas.

Meu sonho fala, ainda, da superioridade feminina. Nos momentos de muitas palavras, só as mulheres sabem se recolher e esperar. Só elas acolhem e embalam as crianças, os homens se apavoram e falam. Fazem do silêncio a sua resposta. Com o silêncio, estancam o grande, muitas vezes repulsivo, falatório.

Meu sonho me leva a pensar, ainda, na posição feminina ocupada por todo escritor. Homens ou mulheres, escritores devem saber ouvir, em abnegação e silêncio, para só depois escrever. A escuta silenciosa é a primeira condição da escrita. Toda literatura parte de um grande silêncio. Todo escritor traz dentro de si uma mulher que se cala.

Borges às cegas
Leio o Atlas, de Jorge Luis Borges, agora traduzido por Heloisa Jahn para a Companhia das Letras. Livro que Borges assina com sua companheira, Maria Kodama. Já no prólogo, esbarro com uma idéia que tipicamente borgeana: a de que a descoberta do desconhecido não é uma especialidade de Simbad, de Érico o Vermelho, ou de Copérnico. “Não há um único homem que não seja um descobridor.”

Nenhum conhecimento nos é dado, todos somos decifradores do mundo, Borges nos leva a ver. Todos interpretamos e editamos, a cada passo, nossas vidas, lhe conferindo novos significados, estabelecendo laços secretos, desvelando o desconhecido. O mundo também nos decifra, incessantemente. Que outra coisa faz a literatura, senão interpretar a alma de quem lê?

Na página 47 do Atlas, Borges relata um sonho que teve em Atenas, que ilustra essa escuridão sem fim que nunca deixamos de enfrentar. Está em uma biblioteca. Nas prateleiras, escolhe, por acaso, um livro sobre Coleridge. Ao folheá-lo, descobre, assombrado, que o livro tem um fim, mas não um início. Larga-o e se refugia em um ensaio sobre a ilha de Creta. “Também terminava sem ter começo”, relata.

Reflete Borges: ele está na Grécia, onde tudo começou. E, no entanto, naquela biblioteca, os livros não têm um início. Ali, nada começa. Entre as prateleiras, desafia-o uma pergunta sobre a origem. Conhecemos o fim inevitável mas, nem mesmo na hora da despedida, conseguimos nomear o ponto de partida. Ele perdura, esmaecido, como uma interrogação.

A certa altura, o sonho de Borges se desdobra em outro, em que o escritor joga xadrez com seu pai. Mexe as peças no tabuleiro, enquanto o pai, ao contrário, se mantém imóvel. Mesmo assim, a cada lance, seu pai pratica um ato de magia com que apaga uma das peças do filho. Sem esboçar um só movimento, vence a partida. Vence justamente porque não joga. Sequer começa a jogar.

Também os escritores, enquanto escrevem, miram um fim (um ponto de chegada), sem saber de onde partiram, sem poder dizer de onde aquilo vem. Não é preciso conhecer a origem para avançar e chegar. Ao contrário: a pergunta insistente sobre a origem só imobiliza. Todo escritor chega à escrita “pelo meio” — como alguém que, por engano, confunde o horário de uma sessão de cinema e se defronta com uma história já começada.

Muitos, sem suportar a ignorância, desistem de avançar e desperdiçam a vida bradando a respeito da origem. Exigem, em desespero, a presença nítida de um pai. Borges, em vez disso, aceita jogar xadrez com esse pai ausente, a partir de quem o mundo só se move “por magia”. Magia? Ou porque, mesmo sem saber para que, continuamos a viver e a escrever?

O Atlas de Borges é, como atlas, inútil. Não aponta uma direção. Nada esclarece, ou localiza. Em vez disso, confunde e turva. Mas, só por isso, nos fascina.

NOTA
Os textos A mulher que se cala e Borges às cegas foram publicados no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação noRascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

LEIA trecho do romance Diário da guerra do porco, de Adolfo Bioy Casares

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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