Bioy Casares e o leitor

Como se dos leitores se exigisse tal ou qual formação, ou tal ou qual disponibilidade, para que tenham o direito de ler
Ilustração: Tiago Silva
01/12/2014

Leio Sete conversas com Adolfo Bioy Casares, livro de Fernando Sorrentino, publicado pela El Ateneo, de Buenos Aires, em 2001. Casares (1914-1999) falecera dois anos antes. Na virada do século, ele demonstra uma sensibilidade especial não só para falar de seu tempo, mas para antecipar o futuro próximo. Quinze anos depois de sua morte, as entrevistas conservam espantosa atualidade.

Há um trecho, a partir da página 223, que me interessa em particular, já que pratico aquilo que os outros denominam (eu não) de “crítica literária”. É verdade que, nos últimos anos, o espaço para a crítica diminuiu muito. Mas os prêmios literários se multiplicaram, e eles são quase sempre julgados por críticos — vindos da universidade e da imprensa —, o que ajuda a conservar sua importância e vigor. Nesse cenário, e infelizmente, muitos autores escrevem de olho em seus julgadores. Escrevem para fugir de uma condenação (reprovação). Escrevem para “acertar”, ou pior ainda, para “não errar”. Diz Bioy Casares: “Eu creio que essa é uma enfermidade de nossa época. Os escritores não escrevem para os leitores, mas para os críticos”.

Na verdade, dois padrões massacram, hoje, o espírito dos escritores. As regras e vantagens do mercado — galgar as listas de “mais vendidos” e chegar às vitrines das livrarias, às gôndolas mais luminosas. E os princípios (e modismos) da crítica especializada — escrever para corresponder a cânones consagrados e a expectativas literárias. Nesse segundo caso, e recordando as palavras de Bioy Casares: como se a literatura fosse uma prova escolar. Como se ela fosse uma arte destinada só a “especialistas”. Como se dos leitores se exigisse tal ou qual formação, ou tal ou qual disponibilidade, para que tenham o direito de ler. Reconhece Casares: “Com isso, os escritores vão afastando as pessoas da leitura, porque os livros não são escritos para elas”.

A enfática defesa que Bioy Casares faz do leitor comum (que compartilho com grande entusiasmo) merece, mais do que nunca, ser levada a sério pelos escritores contemporâneos. Não para que facilitem sua escrita e se entreguem às imposições e desejos do mercado. A solução também não está do outro lado: não para que escrevam de olho na avaliação dos “professores”. Nos dois casos, o escritor abdica de si e de sua voz. Repudia Casares aqueles “livros que, em vez de abordar temas que nos interessem a todos — quer dizer, temas para a ficção —, estão preocupados com teorias literárias, com oficinas literárias”. São os tais escritores que escrevem “para acertar”. Escrevem “para agradar”, seja ao leitor especialista (crítica), seja ao leitor “ligeiro” (mercado). Escrevem olhando para o lado, e não para frente.

Interrompe Sorrentino: “São livros que se escrevem para escrevê-los, não para serem lidos”. Ao que Casares, em uma imagem inspirada, agrega: “Eu desejava que os escritores fossem como os carpinteiros, que fabricam uma cadeira para que alguém se sente nela. Se alguns desses livros fossem cadeiras, nós iríamos ao solo”. É preciso, aqui, distinguir bem as coisas: o escritor não escreve para este, ou para aquele leitor. De fato, escreve, antes de tudo, para si mesmo — mas na esperança de compartilhar com o outro (seja ele quem for) sua escrita. Reclama Casares dos livros ilegíveis, escritos com uma grande indiferença pelo leitor. “Quase todo escritor recebe uma infinidade de livros que não pode ler. Não é que não leia porque não tenha tempo, mas porque são livros quase ilegíveis, que não preveem o leitor.”

São escritores que escrevem “para acertar”, isto é, para corresponder aos desejos e às expectativas alheias — seja do Grande Leitor, seja do Leitor Mediano. Escrever para o leitor, levando-o em conta, não significa reduzir sua escrita a fórmulas, ou a regimes estéticos. O leitor é o desconhecido e justamente por isso merece do escritor todo o empenho e coragem. Chegar a alguém que você desconhece — chegar a um Sujeito, e não a um Objeto produzido em série: esse é o problema que a ficção propõe aos escritores. Enfrentá-lo é, enfim, escrever. Ficção é assombro, ou não é ficção.

NOTA
O texto Bioy Casares e o leitor foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho