Arte fora do eixo

“Fora da linha”, de Rico Lins, adota uma posição dissonante, desvia-se do esperado, renega o consenso, arrisca-se a inventar
Ilustração: Rico Lins
01/03/2021

Primeira coisa: não confundir “fora da linha”, título do livro que reúne ilustrações e desenhos de Rico Lins, com “fora de linha”. Diz-se, por exemplo, que um produto está “fora de linha” porque não é fabricado mais, entrou em desuso, ou se tornou obsoleto. A expressão, portanto, fala de algo que passou, que não faz mais sentido, ou até não tem mais utilidade no presente.

Fora da linha — título do livro que tenho nas mãos — é coisa bem diferente. É estar fora do padrão, adotar uma posição dissonante, desviar-se do esperado, renegar o consenso. Estar “fora da linha” é arriscar-se a inventar. Tudo o que é “fora da linha” potencializa o presente, descerra novos caminhos, abre perspectivas. Por isso, nenhum outro título cairia melhor no belo livro de Rico Lins, publicado pela Solisluna, da Bahia.

Formado pela histórica ESDI, escola de desenho industrial do Rio de Janeiro, Rico fez especialização na Universidade de Paris VIII, e depois se tornou Master of Arts, pelo Royal College of Art, de Londres. Ainda viveu e trabalhou em Nova York, antes de retornar em definitivo ao Brasil. Sua formação, intensa e múltipla, aparece com força nos desenhos agora reunidos.

Muitos de nós se sentem, hoje, fora da linha. A realidade se embruteceu — podemos dizer até que ela emburreceu. Desde a expansão dos fundamentalismos, as mentes se estreitaram, espremidas pelo preconceito, pela intolerância e pelo ódio. Resta pouco espaço para a ousadia e a divergência. É nesse cenário adverso — ou, melhor, contra ele — que devemos apreciar o livro de Rico. Dialogar com a arte de Rico Lins é também colocar-se na contramão.

Ilustração: Rico Lins

Em contraste com um mundo petrificado, seus desenhos transmitem uma lição de valentia — de bravura. Rico é um artista atrevido e imprudente. E nunca precisamos tanto de algumas doses de precipitação e de temeridade. Seus desenhos nos tiram do eixo — nos deixam fora da linha também. Sem essa abertura para o deslocamento e para a dissonância, é melhor nem começar. Abrimos o livro e já deparamos com um elefante esquálido, cadavérico, personagem de A febre das dietas radicais. Sem uma só palavra, Rico desmonta o vício da elegância a qualquer preço, da perfeição obrigatória, que se propaga em um mundo que, em realidade, se caracteriza pela imperfeição.

Algumas páginas à frente, peixes presos a sapatos, botas que são também serpentes, uma natureza distorcida. Desenho que ilustrou um artigo sobre as experiências de Jean-Paul Sartre com a mescalina, publicado na revista literária Serrote. Em uma ilustração para a revista Veja, Rico adultera uma sucessão de quatro versões da Estátua da Liberdade, cuja grandeza é dissolvida em bruma, representando o fim da utopia americana.

Para a divulgação de um curso sobre A metamorfose na Casa do Saber, Rico Lins retrabalhou uma fotografia de Franz Kafka, que agora aparece, ainda com seu olhar triste e desiludido, com a cabeça recoberta de antenas. Logo depois, no desenho Freud explica?, Rico nos traz um célebre retrato de Freud, que ostenta seu charuto, mas tem a face rasgada na altura dos olhos. De modo que o homem Sigmund, que está na parte de baixo metido em um terno, não se conecta — ao contrário, entra em curto-circuito — com a mente que, acima, se esconde sob uma careca. Uma forte reflexão a respeito da humanidade do criador da psicanálise.

Também para a Casa do Saber, agora pensando em O pequeno príncipe, Rico desenhou um exagerado camelo não com duas, ou mesmo uma como no caso dos dromedários, mas com quatro corcovas. A realidade, assim, se distorce e se multiplica. Imagens diversas saem de chaminés em Poluição visual, desenho inédito feito em Paris em 1982. Ao lado, também realizado na França, e invertendo a direção, coelhos saltam para dentro do crânio aberto de Julio Cortázar.

Ilustração: Rico Lins

Reflexões filosóficas permeiam a arte de Rico Lins — em desenhos que não querem só provocar, mas fazer pensar. Elas aparecem, por exemplo, no desenho Delinquência juvenil e punição, publicado na Révolution, de Paris. Dissolvidos em uma fumaça espessa, um grupo de meninos — praticamente iguais — têm os olhos encobertos por grossas tarjas pretas de censura. Para a mesma publicação, Rico realizou um ousado desenho sobre o poder na ditadura militar brasileira. Nele, de fardas militares, cheias de medalhas, saltam peixes, abacaxis e outros elementos banais do cotidiano brasileiro, que colocam em questão a sensatez do projeto ditatorial.

Já no ano de 1984, em um trabalho para a Kulturrevolution, de Hettigen, Alemanha, Rico desenhou a figura incômoda de um lobo dentuço e descabelado que encarna, de modo premonitório, a ressurreição da extrema direita alemã. Um fenômeno que hoje se propaga também no Brasil. Em uma reflexão aguda a respeito dos impasses que imobilizam a vida no mundo contemporâneo, Rico desenha, para a Édition de L’Amitié, de Paris, a figura de uma mulher em desespero, braços erguidos, boca aberta, presa a um labirinto de escadas. Datado de 1981, Saída de emergência nos faz pensar no sentimento de opressão e de imobilidade que hoje nos sufoca.

Uma imagem desfigurada do Capitólio americano, publicada no The New York Times em 1988, antecipa a instabilidade política que tomou sua forma extrema quando, 23 anos depois, em janeiro de 2021, seguidores de Donald Trump invadiram a sede do Congresso. Em outra premonição, Rico Lins, no desenho Quem tem medo do agrotóxico, de 1992, antevê um desastre ecológico que o passar dos anos só fez agravar.

O mais impressionante nos trabalhos de Rico Lins é o modo como a arte não só interfere e questiona, mas desestabiliza o real. Sim, a arte pode ser útil. E, para ser útil, Rico nos mostra, ela não precisa — e não deve — ser panfletária, simplista ou escandalosa.

Ilustração: Rico Lins

A potência da arte não está no grito, mas na sutileza. Na inteligência, de que Rico faz — muito além do refinamento técnico e da multiplicidade de recursos gráficos — seu principal instrumento de trabalho. Sim, a arte, antes de tudo, faz pensar. Ela nos tira da linha, em particular da linha reta, e nos joga na complexidade do mundo.

Fora da linha
Rico Lins
Solisluna
160 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho