O século 21 é obcecado pelo sucesso e pela vitória. Ganhar na bolsa, ultrapassar marcas olímpicas, superar índices econômicos, bater recordes, levar vantagens nos negócios, ou na vida sentimental. Competir e vencer, vencer e vencer. Enquanto isso, o fracasso é visto com repulsa. Os fracassados, com desprezo. Torcedores querem apedrejar atletas derrotados. Os miseráveis são queimados vivos nas ruas. Endividados buscam empréstimos com o sentimento de que cometem um crime. Esquece-se, porém, que o fracasso é parte essencial do humano. Em um tempo no qual só se fala da vitória, é preciso afirmar a importância do fracasso. Mais que isso: lembrar que, tanto quanto a vitória, ele é parte essencial do humano.
Essas idéias não me deixam desde que recebi, de meu amigo Sérgio Pantoja, algumas palavras preciosas de Marguerite Duras, tiradas de seu Escrever. Elas continuam a me agitar. Diz Duras: “Eu sei que quando escrevo há alguma coisa dentro de mim que pára de funcionar, alguma coisa que silencia”. Há, portanto, uma pane. Um fracasso. Sim: escritores estão sempre a rasgar rascunhos, a deletar parágrafos inteiros, cortar palavras. A abandonar livros e preferir o silêncio. A cada passo, um fracasso. Mas é de fracasso em fracasso (e não de vitória em vitória) que se chega, enfim, a um livro. Sempre pensei que, para um escritor, o importante não é “escrever bem”, mas “errar bem”. Agarrar-se a seu modo de se desviar da norma e do clichê. Descobrir sua maneira de fugir do correto e do “normal”. Escritores devem sustentar seus erros, ou não conseguirão escrever para valer. Escritores não podem ter medo de fracassar e de perder.
Em nossa cultura, a idéia do sucesso está, quase sempre, associada ao masculino. O saldo polpudo na conta bancária, o bom desempenho sexual, a segurança da família: tudo se liga à figura do homem. Reflete Duras a respeito de sua escritura: “Eu deixo alguma coisa me possuir que provavelmente flui do feminino”. Enquanto escreve, o escritor — e isso independe de seu sexo anatômico — conserva, sim, uma posição feminina. Assume uma posição “passiva”: deseja que as idéias venham, com toda a força, e o penetrem. Ceder a uma idéia é, um pouco, acolher uma potência externa e dela gerar alguma coisa. Um filho, um livro. Dela arrancar energia e prazer. Escrever, Duras está certa, tem a ver com deixar-se possuir. Não deixa de ser uma possessão. É uma possessão. Embora, depois, o escritor a recubra com o manto nobre do trabalho intelectual.
Prossegue Duras — e eu continuo a lê-la no e-mail de meu amigo Sérgio: “É como se eu retornasse a um país selvagem. Nada é combinado. Talvez, e antes de tudo mais, antes de ser Duras, eu seja simplesmente uma mulher”. Há, no ato da escrita, algo que afeta o corpo. Que se passa no corpo — da mulher (ainda que seja um homem), e não da escritora Marguerite Duras (ou seja de quem for). A escrita — o livro que temos nas mãos — não passa de um sintoma dessa experiência corporal, como uma tosse seca, ou um nódulo estranho. Há algo submerso, que empurra o escritor para sua escrita. Não chega a ser uma escolha: é um empurrão. O escritor é derrubado, se ergue, alguma coisa o derruba novamente, tenta se levantar de novo, algo o massacra. Só então percebe que está escrevendo. Mas o que leremos depois é só o resto (o sintoma) dessa experiência. O sintoma de uma queda. De um fracasso — palavra que, ao contrário do senso comum, nada tem de negativa.
Por isso, empurrado por Duras, afirmo a positividade do fracasso. Chega de vencedores: quero saber dos vencidos. Eles sim — em vez de adornos, comendas, ou perucas — carregam em seus corpos as marcas (as feridas) de uma experiência. Dali, sim, pode sair algo que não esperamos. Algo que não existia. Pode surgir o novo. Duras me leva a pensar que escrever é uma espécie de derrota. Por isso, talvez, os escritores sejam vistos, no fundo (e afora todo o glamour de mercado) com grande desconfiança. O que fazem esses caras que passam anos a fio trancados, sozinhos, em seus escritórios? Em que eles tanto pensam e por que, enquanto pensam, não gostam de falar do que pensam? O que afinal eles escondem? O que querem da vida? Será que só escrevem porque, no fundo, não sabem fazer mais nada? Que só escrevem porque são fracassados?
Creio, por isso mesmo, que a literatura amplia nossa visão do humano. Isso não significa dizer, porém, que a embeleza, ou realça. Penso em Nelson Rodrigues, que falava de seu “teatro desagradável”. Dizia Nelson: “a verdadeira apoteose é a vaia”. A longa e louca vaia que recebeu na estréia de Vestido de noiva, em vez de abatê-lo, o energizou. Estranhos seres esses escritores, que tiram sua força da derrota. Que se alimentam das próprias feridas. Nelson sempre lutou contra a unanimidade e o aplauso histérico. Ficou abatido quando, na estréia em São Paulo de A última virgem, a platéia não o vaiou. Compreendia a potência do fracasso. Mais que isso: fazia do fracasso a sua fé. Um dia, contou em uma crônica célebre, um repórter lhe perguntou: “Você se considera realizado?”. Não vacilou em responder: “Sou um fracassado”. Falava de uma ferida (um sintoma) que nosso século encobre com o manto brilhante das medalhas. Os escritores dela fazem bem outra coisa. E que coisa!
NOTA
O texto Apologia do fracasso foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.