Já conhecia a bela versão traduzida por Rubens Figueiredo para os Contos completos de Liev Tolstói, lançados pela Cosac Naify. Mas agora, enquanto releio De quanta terra precisa o homem?, na tradução e com ilustrações de Gonzalo Cárcamo para a Companhia das Letrinhas, alguns pensamentos a mais se ativam em minha mente. As inspiradas figuras de Cárcamo, por certo, agitam minha imaginação. Mas uma cena não me sai da cabeça: a morte do protagonista Pahkóm depois de percorrer a pé, em desespero, os quilômetros que o levariam a uma grande fortuna, mas o conduziram, de fato, à morte.
Como sempre, Tolstói não nos poupa com adornos, ou adjetivos desnecessários: “O empregado correu até ele e tratou de levantá-lo. Ao virar o corpo exaurido de Pahkóm, viu que fluía sangue de sua boca. Ele não respirava mais. Pahkóm estava morto”. A cobiça louca, a ambição desmesurada o matou. Tentado pelo diabo, o pobre homem — antes um trabalhador dedicado à terra e à família — deixou-se levar pelo desejo desmedido de multiplicar seu dinheiro. O diabo conseguiu provocá-lo “a ponto de ele, com despeito, se vangloriar de que, se tivesse muita terra, não temeria nem mesmo o próprio diabo”. A partir do momento em que o desejo de poder, a ganância insaciável, tomou conta de Pahkóm, sua vida — ela sim — se tornou um inferno.
Tolstói faleceu em 1910, aos 82 anos de idade. Mais de um século já se passou, mas o inferno consumista em que o mundo contemporâneo se transformou é apenas um dos desdobramentos terríveis de seus vaticínios. De quanta terra precisa um homem? começa com uma visita da irmã mais velha da mulher de Pahkóm que, ao contrário deles, vive na cidade e se vangloria das facilidades da vida moderna. A senhora Pahkóm resiste: “Eu não trocaria a minha vida pela sua por nada. Vivemos humildemente, mas pelo menos não vivemos com medo”. Medo de quê? Medo de perder — esse sentimento corrosivo que, no mundo dos investidores, dos especuladores e dos fraudadores, cada vez mais nos endoidece.
O desejo de progresso — que em si é justo e positivo — surge em Pahkóm quando alguns vizinhos resolvem se organizar em uma comunidade para comprar novas terras e expandir seus negócios. Contudo, a cobiça logo se infiltra entre eles e os afasta uns dos outros. Compra uma nova terra só para si, mas a expansão lhe traz também o amargor das hostilidades. Vivemos hoje em um mundo em que a palavra de ordem é “crescer” a qualquer custo — o sucesso se tornou obrigatório. Jovens não cursam mais faculdades para seguir vocações, ou perseguir sonhos, mas para ganhar as melhores vagas no mercado. As pessoas não querem ter mais algum dinheiro para comprar bens que lhes faltem, mas para transformar o novo dinheiro em ainda mais dinheiro.
As rivalidades entre os sócios se multiplicam. Surgem as ameaças e também os rumores — e conhecemos, tão bem quanto Tolstói, o que é viver em um mundo venenoso, regido pelas delações, pelas suspeitas e pelos mexericos. Nesse ambiente, um forasteiro enche os ouvidos de Pahkóm a respeito de uma nova terra, situada além do rio Volga, onde já não basta a abundância, mas todos buscam o lucro fácil. Imediatamente, ele reúne a família e se muda. Enfrenta novas divergências, turbulências desagradáveis, mas as supera. Isso ainda não lhe basta: um novo viajante desconhecido chega para lhe falar da longínqua terra dos bashquires, muito férteis e vendidas a preços modestos.
É entre os bashquires — povo de origem persa que habita a Rússia — que a ganância de Pahkóm chega a seu tom mais elevado. Em troca de belos presentes, uma sugestão do diabo ao herói de Tolstói, eles prometem que lhe venderão por mil rublos o tanto de terra que conseguir percorrer entre o nascer do sol e o poente, não importando o tamanho que ela tiver. É nessa correria, voando a passos loucos em busca de mais e mais terra, que Pahkóm, quanto mais avança, mais se destrói. Pelo acordo, ele deve voltar ao ponto de partida, onde os bashquires o esperam, antes do pôr do sol. Só chega no último minuto, mas cai morto. “O empregado correu até ele e tratou de levantá-lo. Ao virar o corpo exaurido de Pahkóm, viu que fluía sangue de sua boca. Ele não respirava mais. Pahkóm estava morto.”
Um amigo com quem comentei o conto de Tolstói me diz que a história pode ser bela, mas que se limita a ensinar o conformismo e a resignação. Que é uma história retrógrada, que menospreza o progresso e prega a apatia. A literatura é assim mesmo: cada um escolhe sua maneira de ler. Prefiro caminhar em outra direção. A beleza dos relatos de Tosltói está justamente no valor que eles emprestam às coisas essenciais. A onda consumista nos diz, ainda hoje, o que devemos desejar e o que devemos consumir. O Deus Mercado determina quanto devemos conquistar e ao que devemos aspirar. Acontece que essas decisões são, ou deviam ser, íntimas. O diabo que aparece no relato de Tolstói é apenas uma metáfora para essa compulsão a “devorar, devorar” que, a cada dia, mais nos alucina. Ou, como dizem os psicanalistas: uma metáfora para a ordem louca do “gozar, gozar” que engole nossos espíritos. Esquece-se o que é a fome; esquece-se o que é o amor. Cegamente, devoramos o mundo, como se ele fosse uma pizza para pronta entrega.
E ainda, cheios de nós mesmos, e de falsa abnegação, preparamos nossos filhos, hoje, “para o mercado”. Isto é: para o gozo interminável, onde — como acontece com o infeliz Pahkóm — só lhes resta cair mortos de exaustão. Mortos sobre nosso gozo e nossa ilusão de vitória. A ideologia do “vencer a qualquer custo”, que hoje despejamos pelas goelas dos jovens, só pode levar mesmo à morte — que costuma ser o preço mais extremo da teimosia. Nesse roldão, o personagem de Tolstói também sucumbe. Seu relato, ao contrário do que possa parecer, não é um relato religioso. Nada tem de místico; é, ao contrário, bastante realista. É com cobiça e soberba — e altos investimentos, de olho sempre nos lucros que nossos descendentes poderão render — que adestramos os jovens para esse futuro devorador. Depois não entendemos por que eles se deprimem, ou, ao contrário, por que se afundam em vícios mórbidos e atitudes compulsivas. Mais de um século antes de nós, observando a vida dos camponeses russos, Tolstói já conhecia a resposta.