Algo se quebrou dentro dele

Marceneiro leitor de Kafka confronta preconceitos e moral em encontro com escritor, revelando tensões entre livros, dor e juízo ético
Ilustração: Kleverson Mariano
01/09/2025

Recebo o marceneiro que me indicaram para consertar minhas estantes. Chama-se Elson e foi muito bem recomendado. Eu esperava um sujeito forte, com mãos largas, porque minhas estantes são pesadas, mas me mandaram um homem mirrado, com rosto franzino e imberbe de adolescente. “Vim ver o que posso fazer pelo senhor”, ele me diz, sem esconder o desconsolo. Ainda nem viu as estantes, por que esse desânimo? Eu o conduzo até a biblioteca. Acomoda-se em um banquinho e passa a examinar as prateleiras. Seu olhar preocupado indica que o diagnóstico será grave.

“O senhor lê muito e talvez isso não seja bom”, comenta o marceneiro Elson enquanto acaricia minha coleção de As mil e uma noites. Pergunto por que me diz isso. “Eu mesmo já fui esmagado pelos livros. O senhor já leu Franz Kafka?” Ergue a cabeça e me examina com preocupação sincera. Parece buscar em mim algum defeito que justifique seu desânimo e que não consegue encontrar. Não porque eu não tenha defeitos, tenho muitos. Mas porque, na posição em que ele se acha, afundado em um banquinho, enquanto estou de pé às suas costas, mesmo entortando o pescoço, ele não chega a me ver muito bem. Devo ser só um vulto que o escolta. Uma sombra.

Faz todo sentido que um homem que trabalha com a restauração de estantes termine se apaixonando pelos livros que elas sustentam. Não devia me surpreender encontrar no senhor Elson um leitor de Kafka, mas, aos 74 anos, ainda arrastando o jovenzinho pedante que já fui, eu me surpreendo. É quase impossível se livrar da manta de preconceitos que a educação de classe média acumula em nossas costas. Camadas e mais camadas de poeira, ignorância e ódio. Também eu devo parecer um corcunda, esmagado pelo peso das tolices que a família e o colégio cultivaram em mim. Não é sempre que se consegue ser livre. Eu tento, mas não consigo.

Indiferente a meus pensamentos, o senhor Elson abre sua pasta de trabalho e começa a separar alguns instrumentos. Uma trena de engenheiro, um pequeno martelo, uma caixa cheia de pinos de sustentação, alguns pregos. Um alicate e uma fita métrica. Dispõe todos eles em ordem coerente diante de si, como se fosse rezar uma missa ou iniciar uma cirurgia. Enquanto encena seu ritual de marceneiro, do alto, como um tolo, eu o vigio. Figura desagradável que sou. Agora percebo que, de fato, ele tem as costas curvas, de camelo. Recordo, então, que me falou de um esmagamento. Parece, de fato, ter sido pisado por algo ou por alguém. Como uma barata, que esmagamos distraídos com a sola do chinelo. Como Gregor Samsa, também ele aniquilado não por um peso físico, um sapato ou uma vassoura, mas por uma condenação.

“As costas lhe doem?”, pergunto sem planejar perguntar. Volta a me observar, agora com espanto. “O senhor é médico?” Sempre esse inferno, sempre essa mania de me confundirem com um doutor. Por que veem em mim o médico que não sou? Já me disseram, também, que pareço um general. Sinto arrepios. Tive um tio general, que, além de tudo, era médico. Uma das pessoas mais desagradáveis que conheci. Prefiro esquecer o seu nome e, não é que esqueci mesmo? Ele me perguntava: “Você é sonso ou o quê?”. Houve o dia em que quis saber se eu era pederasta. Acreditava que as palavras solenes amorteciam seu ódio. Não amorteciam. Sempre soube que ele me odiava. Tanto faz, eu o odiava também. Agora entendo que sentia nojo de mim também.

“De fato, ando com uma dor nas costas que não passa”, me diz o senhor Elson. “Será grave?” Como posso saber? Sugiro que procure um médico. Mas, para acalmá-lo, digo que deve ser só um efeito dos pesos que carrega. “Não é fácil o trabalho de marceneiro!”, eu o consolo. Ergue-se do banquinho e me encara: “Não falo das estantes, meu senhor, falo dos livros.” Dá alguns passos e volta a examinar a estante. Detém-se diante de Contos, de Thomas Mann. “Já me disseram que os livros desse inglês são perigosos. Que propagam a pedofilia.” Não é inglês, é alemão, eu o corrijo, mas ele não me ouve. “Há um livro em que ele seduz uma criança de colo.” Esforço-me para que entenda que quem se apaixona por um adolescente é Aschenbach, um escritor que passa férias em Veneza, personagem de Mann, e não o próprio Thomas Mann. Acentuo que a criança de quem fala já é um adolescente, Tadzio, e não um bebê desamparado. “Espanto-me que o senhor defenda a pedofilia”, me diz, enojado. Dá agora dois passos para trás. Não estou justificando nada, a pedofilia é um crime odioso, eu grito — mas nem assim ele me escuta, só escuta o que quer escutar.

Desvio a conversa para outros temas, mas começo a entender que o senhor Elson só ouve o que quer ouvir. O que não quer ouvir, ele não ouve. É um cabeça-dura e parece ser sua própria cabeça-dura, de lenho ou de pedra, que o massacra. Não é à toa que tem o pescoço torto. Ideias fixas costumam pesar muito. No seu caso, elas não amassam só o pescoço, mas as costas. Melhor me calar. “O senhor acha que essas prateleiras ainda prestam?” Tento voltar à realidade, mas o senhor Elson está agora inteiramente oprimido pelos próprios pensamentos. Vai, enfim, em direção à sua maleta e começa a organizar seus objetos de trabalho dentro dela. Ainda me faço de sonso: “O senhor já terminou?”

“Tenho meus limites éticos”, meu marceneiro diz. “Não trabalho para qualquer um.” Quando diz isso, estufa o peito e, quando estufa o peito, ouço um estalo que vem de dentro de seu corpo mirrado. Alguma coisa se quebrou dentro dele e eu, de certo modo, sou responsável por isso. Tento consertar: “Posso lhe contar a história de Aschenbach e seu Tadzio”, digo, em tom religioso. “O senhor verá como é bela.” Já avanço em direção a uma poltrona, em que pretendo me acomodar para, como uma madrinha bondosa, lhe relatar a novela de Mann. “É uma das histórias mais belas já escritas”, eu prometo, mas a reação do senhor Elson é de desgosto e de repulsa. “O senhor devia se envergonhar. Dois velhos, como nós, devem se manter longe do pecado.” Fecha a maleta, desce correndo as escadas e se vai. Volto ao ponto de partida: quem me indicaria um bom marceneiro?

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho