Em uma crônica do ano de 1967, Meu professor Bandeira, Rubem Braga rememora sua descoberta da literatura. Aos 15 anos de idade, seu poeta preferido era o parnasiano Olavo Bilac. Foi um rapaz esquivo, quase não tinha amigos, e Bilac — apesar de ser um homem típico do século 19 — se tornou sua mais constante companhia. “Seu livro era como um amigo íntimo que me fazia confissões e ouvia as minhas”, Braga rememora. Só se livrou do fantasma de Bilac quando, em torno dos 18 anos, lhe caiu nas mãos, por acaso, Libertinagem, livro que Manuel Bandeira acabava de publicar. “Minha adesão a Bandeira foi imediata e completa”, ele relembra. “Os versos de Bandeira passaram a fazer parte de minha vida íntima.”
Leio as memórias de Rubem Braga em O poeta e outras crônicas de literatura e vida, coletânea organizada por Gustavo Henrique Tuna para a Global Editora. Nas crônicas de Braga, de fato, repetidas vezes literatura e vida se confundem, tornando-se quase a mesma coisa. Por isso me parece estranho que o cronista chame Manuel Bandeira de “professor”. Algumas perguntas me acossam. Será que uma paixão se ensina? Em uma paixão, mesmo a literária, vivemos uma aprendizagem ou, ao contrário, experimentamos algo que se aproxima do hipnotismo e do desconhecimento? É possível pensar em aprendizagem quando se trata de literatura? Mas talvez não: minhas próprias memórias de menino me recordam que grandes mestres, de fato, são aqueles que promovem em nós uma adesão íntima, embora misteriosa — e por isso mesmo paixão —, às suas palavras. Essas palavras deixam de ser alheias; delas nos apropriamos, na verdade nós as devoramos; e elas passam a fazer parte de nosso mundo interior. Tornam-se um segundo esqueleto, invisível, que, mesmo que não tenhamos consciência disso, nos sustenta de pé.
Inevitável aqui abrir espaço para uma lembrança pessoal, já que elas estão sempre a se intrometer no que lemos. Ainda hoje ouço em algum canto da mente a voz nítida de Manoel Maurício de Albuquerque, meu primeiro grande mestre, nos bancos escolares dos jesuítas, que morreu subitamente, no ano de 1981, em uma livraria do centro do Rio de Janeiro. Não só ouço a voz de Manoel: sei que me apropriei dessa voz, que eu a devorei, e que ainda hoje, em algum vão muito secreto de meu espírito, ela me constitui. Mais grave: em alguma medida, um resto de seu eco se estende em minha própria voz. Penso em Manoel Maurício e acho que entendo um pouco melhor o feitiço que Bandeira representou para Braga. Essas primeiras vozes — como já lá atrás, muito atrás, a voz materna — pavimentam nosso caminho ao longo da existência. Não apenas nosso caminho: elas definem aquilo que chegamos a ser.
O livro organizado por Tuna reúne crônicas quase todas dedicadas a escritores de que Braga, de uma forma ou de outro, se alimentou. Escritores que ele devorou. Ou que o devoraram? Não são apenas vozes que grudam, são imagens também. Pensando em José Lins do Rego, por exemplo, Rubem Braga nos diz: “Nenhum escritor do Brasil é mais simples e legítimo do que esse que fez de sua infância um mundo de sonhos para todos nós”. Imagens, sonhos, visões: muitas vezes, essa transmissão — esse fascínio —, embora se tratem de escritores, se faz em silêncio. Zé Lins teve, de fato, o dom de fazer, de seus sonhos, os nossos sonhos — assim como alguém de minha geração não consegue recordar as fantasias da infância sem que nelas logo se intrometam as narrativas de Monteiro Lobato. Realidade e irrealidade se embaralham. O que é do outro passa a ser meu, e o que é meu, visto na perspectiva do tempo, se torna um pouco alheio. Só podia mesmo ser assim: a ideia do Eu só é possível quando pensamos na existência do Outro.
O tempo afetivo, além disso, não tem a forma linear dos calendários. Não se imagine nada de grandioso: o que fica, o que gruda, Braga nos mostra, são, sobretudo, as miudezas misteriosas, que mal percebemos e que, ainda assim, formam nosso espírito. “São tudo coisas vulgares em si mesmas, e ainda mais o seriam para o leitor, que as não viu, nem viveu”, comenta Braga, agora em uma crônica dedicada a Graciliano Ramos. Elas também não são o resultado da ação de grandes personagens, como ele lembra, já falando do jornalista Orlando Dantas, diretor do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, um dos jornais em que trabalhou. “Dantas tinha defeitos e limitações como todo mundo os tem, e eu devo ter bem maiores.” Essas memórias formadoras incluem coisas sem importância também.
Falando de sua amizade com Antonio de Alcântara Machado, um dos fundadores da Revista de Antropofagia, Braga faz uma breve meditação a respeito dos caminhos retorcidos, mas nem por isso menos intensos, que constroem os vínculos afetivos. “Ficamos amigos, embora sem qualquer intimidade, em parte devido à minha timidez, em parte à diferença de idade, que era de uns doze anos”. Foi Machado quem convidou Braga para escrever no vespertino carioca Diário da Noite. “Eu topei, embora com um grave prejuízo financeiro, de que ele nem teve notícia.” Um dia, sempre desligado, Braga soube que Alcântara Machado adoecera, mas não deu muita importância. Pouco depois, lhe avisaram de sua morte. Nem isso, contudo, emprestou qualquer solenidade ao laço afetivo entre eles, que se caracterizava pela absoluta informalidade. “Sua morte foi para mim uma surpresa excessivamente estúpida: não me animei sequer a ir a seu enterro.” Também a memória não se importa com protocolos, ou regras de conduta. As lembranças se perpetuam de modo desorganizado e irregular, e por isso mesmo verdadeiro.
Lembranças e afetos costuram uma grande colcha que encobre, mas também fortalece, a existência. Se muitas coisas escapam da memória, se muitos afetos ficam perdidos para sempre, os que permanecem, por mais triviais que pareçam, compõem a estrutura interior que nos sustenta. A literatura se mistura a tudo isso; na verdade, serve de amálgama, de cola a diluir e ligar tantas imagens perdidas. Braga tinha consciência de que a literatura não só espelha a existência, como a constitui. Sabia que, ao longo da vida, e muito além dos livros, todos nós construímos nossas próprias ficções íntimas.