Em momentos de aflição e desânimo recorro, com alguma frequência, aos pensamentos de Julio Cortázar (1914-1984). Ele me ajuda a não ceder ao horror e à decepção, a não me submeter à boçalidade do real, a não desistir. “Escrever, para mim, é tentar sonhar, é uma tentativa de romper barreiras. Acontece, às vezes, que ao escrever algumas janelas se abrem.” Penso: o escritor se parece com uma arrumadeira (ou “des-arrumadeira”) que, ao entrar em um quarto escuro que cheira a mofo e a morte, trata de abrir as janelas, de desintoxicar o ar, fazendo caminho para o vento e a luz. Cortázar me auxilia: “Escrevo em um estado equivalente ao do sujeito que se drogou: um estado ao mesmo tempo de distração e de concentração total no que estou fazendo”. Arrisco-me, de novo, a completar o pensamento de Cortázar: em um estado de meditação.
Leio suas palavras em um pequeno e preciso livro a que sempre retorno, as Conversas com Cortázar, de Ernesto González Bermejo, editado pela [Jorge] Zahar em 2002. É imensa a importância de Cortázar, que faleceu em 1984 — lá se vão 35 anos. A tradução brasileira de seus diálogos é de 2002 — lá se vão 17. Contudo, parece que eu o ouço falar agora, sussurrando ao meu ouvido, só para mim, de tal modo suas palavras me atingem. Vejam o caso da importância que ele empresta aos sonhos. Hoje, diante de uma realidade dolorosa e desfigurada, os sonhos estão esfrangalhados, parecem ridículos, inoperantes, a tal ponto que os fatos — os inaceitáveis fatos — os massacram. Então vem Julio Cortázar para me lembrar que, mais do que cultivar um “bom estilo”, ou “escrever bem”, um escritor deve saber, antes de tudo, sonhar. Deve permitir-se sonhar. Só um escritor? Não, essa lição, cada vez mais, serve a todos nós.
Contra a brutalidade do real, o escritor — diz Cortázar — deve apostar no sonho e até no irreal. Por que só a realidade conta? Por que devemos aceitá-la brandamente e diante dela nos ajoelhar? Hoje estamos assim: perplexos, intimidados, paralisados. Contudo, como nos mostra a física, vivemos em um mundo que se expande de modo acelerado, um universo dominado pela velocidade e pelo acaso. Um universo, em resumo, em que potencialmente tudo é possível. Sussurra Cortázar: devemos nos esquecer um pouco dos fatos, não para negá-los, mas para ultrapassá-los, e entrar em sintonia com algo, ainda mais verdadeiro, que está além deles. Diz: “Ao escrever, sempre me sinto um pouco como um médium: vejo as frases nascerem com uma certa independência das minhas decisões, como se estivessem sendo ditadas por alguém”. Acrescenta que isso acontece, em particular, quando escreve contos. Admite: “Não tenho problema para assinar os romances, mas tenho uma certa vergonha de assinar os contos. Não estou certo de ser eu o autor deles”.
Escrever é lidar com algo que nos ultrapassa. Penso: viver também. A vida vai muito além de nossos pequenos hábitos, de nossas manias, de nossas rotinas e superstições. Só que, medrosos, quase nunca conseguimos pular fora desse cercado. Somos, para sempre, bebês para quem o mundo além das grades é grande demais e é perigoso. Cultivamos nossas grades que, somadas àquelas que nos impõem, se tornam uma muralha. Contudo, o mesmo acontece, de modo mais sintetizado e também mais maravilhoso, durante o ato da escrita. Lembra Cortázar: “Não conheço o final da maioria dos meus contos. Não sei o que vai acontecer neles e creio que, se soubesse, isso mataria os contos em mim”. É justamente porque não sabe o que vai acontecer que Cortázar avança. É a ignorância, e não a sabedoria, que o empurra.
Ele nos dá exemplos de como, das pequenas coisas, das insignificâncias, podemos — se realmente soubermos ver — retirar grandes coisas. Cita o caso do Livro de Manuel, de 1973. Nesse romance, permitiu-se seguir muitos caminhos que não havia imaginado. “Um personagem fazer ou dizer alguma coisa ou seguir uma determinada direção apesar de eu ter uma vaga ideia de que ia tomar a direção oposta.” De pequenos impulsos, de rápidas visões, de intuições muito pouco precisas, Cortázar foi capaz de retirar um romance que, caso pensasse muito, talvez não tivesse nascido. Pensa em seus contos, como As fases de Severo que, afirma, “nasceu de uma espécie de alucinação visual”. Por que não se entregar, algumas vezes, à alucinação? Ele estava lendo, ou ouvindo música — já não lembra mais — quando, de repente, lhe apareceu um rosto humano “totalmente coberto de mariposas e carunhos”. Foi logo tomado por uma forte sensação de horror. Contudo, foi do horror, foi apegando-se a ele, partindo dele, que Cortázar escreveu seu relato. “Foi tudo o que vi. De repente, senti que o conto estava ali.”
Já Pescoço de galinho negro surgiu de um encontro casual de sua mão com a mão de uma mulher em um corrimão do metrô. “Logo senti a possibilidade de algo mais obsessivo, de as mãos jogarem um jogo independentemente da vontade de seus donos.” Concebeu então a história de uma mulher que sofre porque não é dona de suas mãos. Aposta assim Cortázar na potência da transformação. Não uma transformação a que o sujeito se sente condenado, mas, ao contrário, que o empurre para novas possibilidades do que já é. Ser Julio Cortázar e, depois de escrever um conto, ser Julio Cortázar “mais ainda”, tirar de dentro de si não uma negação, mas uma expansão do que é. Também assim podemos fazer com o horror, com a decepção, com o medo, com o desânimo. Não é negar o horror ou a decepção; é encará-los de outra maneira.
Para isso, o escritor, sugere Cortázar, deve aceitar o pior. Mais ainda: acolher o pior. “Eu tenho sido invadido por concatenações instantâneas, vertiginosas, entre coisas heterogêneas que entram no campo de meus sentidos”, ele diz. São coisas que acontecem sempre em momentos de distração. Acrescenta: “Ele parece revelar uma insatisfação diante da realidade circundante e, ao mesmo tempo, uma espécie de abertura repentina para outras coisas”. A insatisfação pode se tornar o motor da transformação. Ela é um tônico, ou um combustível, que, se permitimos isso, nos conduz para mais perto de nós.