Ainda agarrado aos contos de Ivan Turguêniev, deparo-me com a cena célebre em que a cigana Masha, em O fim de Tchertopkhánov, decide abandonar seu velho amante e fugir. Antes de desaparecer, Masha passa três dias sentada em um banquinho, a um canto da sala de almoço, encolhida, grudada à parede “como uma raposa ferida”, sem dirigir a palavra a ninguém. Quando o amante se aproxima, imitando as raposas, ela contrai as sobrancelhas e arreganha os dentes. O velho conhece bem o temperamento de Masha e não leva a sério sua reclusão. Engana-se, e sofrerá muito por isso: a cigana termina por fugir e nunca mais voltar.
A leitura do relato de Turguêniev me leva a outra cena, mais distante, embora mais real. Vivendo em Madri desde 1975 — me contaram em um café de Montevidéu —, o escritor uruguaio Juan Carlo Onetti, um dia, decidiu que estava morrendo. Resolveu nunca mais se levantar da cama, acomodou-se com a face voltada para a parede, guardou absoluto silêncio e ali ficou, à espera da morte. Em 30 de maio de 1994, sempre tendo a parede como espelho, Onetti, de fato, faleceu. Talvez as coisas não tenham se passado bem assim — quem pode saber? Talvez o sujeito que me relatou a história estivesse mais comprometido com a elegância de sua narrativa do que com a verdade. Mas o que isso importa? A cena de um Onetti imóvel debruçado sobre a parede, assim como de Masha atarracada em seu banquinho em um canto da sala, expressa bem uma maneira extrema de resistir. De desafiar a realidade. Um modo de se apagar.
Há uma terceira história, essa muito pessoal, que agora reaparece em minha mente. Irmão mais velho de meu pai, meu tio João, médico pneumologista, sem exibir qualquer diagnóstico como prova, decidiu, um dia, que estava à morte. Tinha a aparência saudável e conservava a voz firme. A profecia era inverossímil. Abatido, meu pai se lamentava a respeito da atitude extrema do irmão. Algumas vezes, sem se conter, desabafava: “É uma estupidez do João”. Meu tio João, porém, não recuou e acabou cumprindo sua própria autoficção. Nunca vi meu pai chorar tanto quanto no velório do irmão. Os motivos de meu tio nunca foram decifrados, o segredo ficou guardado nas paredes de um apartamento no Catete, que lhe serviram de espelho opaco em seus últimos dias.
Na correnteza de histórias em que o relato de Turguêniev me lança, surge ainda uma quarta história, igualmente antiga e triste. Chego aqui, enfim, aonde, desde as primeiras linhas, eu queria chegar. Agora surge à minha frente a enfermiça Matilde, uma prima dez anos mais velha que eu, que morava a dois prédios do nosso, em Copacabana. Era solteira. Vestia roupas severas, de freira, embora não tivesse religião. Desde a morte dos pais, vivia em um apartamento imenso e vazio, que ela mantinha à meia-luz, como uma sacristia. Quando eu a visitava, sentia um forte cheiro de incenso, que não vinha de lugar nenhum, vinha da minha mente.
Certo dia, para alegrá-la, minha mãe lhe deu de presente um quadro — uma cópia barata de uma tela de Renoir, creio que de As duas irmãs. Lembro que, ao entregar a tela, minha mãe lhe disse: “Essas duas meninas lhe farão companhia”. Matilde tinha um gato amarelo, batizado Rato, mas o bicho era ainda mais melancólico que a dona. “Esse gato a afunda mais ainda na tristeza”, minha mãe, um dia, desabafou. Minha prima se limitou a corrigi-la: “Gato não, Rato. Ele tem um nome”.
Nos dois casos, de minha prima e de seu bichano, os nomes desmentiam a pessoa. Alguém lembrou a minha mãe, certa vez, que Matilde significa “aquela que luta”, mas não havia mulher mais apática e prostrada do que minha prima. Em vez de destemida, como seu nome prometia, Matilde era uma mulher fosca, embaçada, fugidia, que escapava não só da luta, mas da vida. Na escuridão do apartamento e em contraste com as paredes vazias, ela se apagava. Tornava-se só uma mancha, uma nódoa humana, quase imperceptível. Não preciso dizer que Matilde jamais colocou a cópia barata de As duas irmãs na parede da sala. Limitou-se a comentar com uma frase enigmática: “Na parede, basta eu”. Aceitava a companhia de minha mãe só porque ela tinha uma habilidade rara: sabia estar presente se ausentando. Limitava-se a ouvir a fala murcha de Matilde, sentava-se numa ponta do sofá, não aceitava café, nem convites para o lanche. Só assim, ela sabia, a infeliz Matilde a tolerava.
Masha, Onetti, meu tio João, Matilde, aonde leva essa longa fila de seres tristes? Por que, em determinado momento, resolveram se anular e se emparedar? Talvez, em sua clausura, imitando os monges e os místicos, vissem algo que ninguém conseguia ver. Seres banais, como minha mãe e eu mesmo, são apenas cegos. Até hoje me pergunto que tipo de superação e de ultrapassagem eles conseguiram com sua imobilidade. Minha mãe sempre convidava Matilde para sair, nem que fosse para uma volta no quarteirão. Ela dizia: “Não posso me mexer. Não é só não posso — não devo me mexer. É melhor”.
Eu, um tanto imóvel também, sempre atado a minhas paixões e obsessões, de minha parte volto a Franz Kafka. E eis-me aqui, mais uma vez, diante de seus Diários. A imobilidade de Matilde — assim como a inércia de meu tio João, a tristeza de Juan Carlos Onetti e a obsessão cega da cigana Masha, de Turguêniev — me faz relembrar um trecho das anotações de Franz que reli recentemente. Aqui eu a reproduzo: “Não é necessário sair de casa. Permaneça em sua mesa e ouça. Não apenas ouça, mas espere. Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. Então, o mundo se apresentará desmascarado”. Ouvir, esperar, isolar-se — tudo isso se apresenta para os que preferem o grande espelho opaco. No qual nos miramos, não para nos ver, mas para desver. Limpar a vista das imagens banais e das certezas enxovalhadas. Ir além dos costumes e das rotinas. Talvez seja isso o que os emparedados buscam com tanto fervor. Se isso os leva à morte, isso já não importa. É a vida, e não a morte, que fervilha diante da parede. Como a raposa ferida, lhes basta arreganhar os dentes.