A palavra perdida

Uma palavra já esquecida tornou-se um suporte, ou um alicerce que, para além dos fatos, mantenha o cronista de pé
Ilustração: Mariana Tavares
01/10/2024

Escritores vivem em busca da palavra precisa, da palavra insubstituível para dizer o que desejam dizer. Isso os deixa quase sempre insatisfeitos, já que as palavras nunca esgotam os sentimentos, e nem dão conta da imaginação. Mas não é dessas palavras inexistentes, em cuja ausência os escritores sofrem, que venho falar. Quero falar de uma palavra específica, e muito íntima, que me surgiu na adolescência, que me salvou de muitos desastres e sofrimentos, e que depois, não sei como, eu perdi.

Embora não consiga recordar a palavra misteriosa, posso relembrar a situação em que ela nasceu. Eu passava férias em Teresópolis, na pequena cabana de meus pais. Era um menino magro, pálido e curvo, que não conseguia esconder, ou disfarçar, minha debilidade. Andava pelos cantos, esquivava-me, refugiava-me nas sombras. Apesar de meus esforços em desaparecer — meu sonho de menino sempre foi me tornar invisível —, um dia não escapei de um duro confronto com um grupo de garotos, que se reunia perto de uma vala, vizinha a nossa casa.

A vala ficava no caminho para a padaria e diariamente eu a atravessava quando ia comprar pães. Nesse fim de tarde, avançando além dos deboches e das piadas sujas, os garotos se jogaram sobre mim e me esmurraram. Não entendi por quê. Hoje compreendo que odiavam em mim o silêncio, a solidão, a introspecção — tudo o que não aceitariam em si mesmos. Apanhei muito. Até que, não sei como, consegui fugir e me escondi em um depósito de postes. Foi ali, entre os imensos postes caídos, recolhido como um pequeno rato, que a palavra que hoje me foge enfim me veio.

Desamparado, como se tivesse perdido uma perna, em busca de um centro de gravidade em meu interior para não me transformar em pó, veio-me, de repente, uma palavra — a tal palavra que não encontro mais. Recordo que não era uma palavra comum. Talvez nem fosse só uma palavra, fossem duas ou três, ou alguma expressão secreta. Podia ser até uma frase completa, que passei a mastigar. Seja como for, ela me acalmava. Ela se oferecia como um remédio e como um centro.

Muitos anos depois, continuei a anotá-la nas margens de meus cadernos. Continuei também a repeti-la, em silêncio, sempre que o mundo se desestabilizava e eu me via sob ameaça. Tornou-se um suporte, ou um alicerce que, para além dos fatos, me mantinha de pé. Lembro que no enterro de meu pai, atordoado, eu a repeti muitas vezes. Nas rupturas amorosas e nas horas de angústia, sempre a ela me apeguei. Soletrá-la em silêncio me tranquilizava. Com ela, eu suportava o mundo.

Agora mesmo vasculho meus cadernos antigos, e também os recantos empoeirados da memória, em busca da palavra perdida. Não tenho nenhuma pista. Era uma palavra arbitrária, que não se relacionava a nada, e que talvez nem pertencesse ao português. Talvez fosse só um vagido, ou um lamento. Uma maneira letrada de chorar. Recordo que uma noite, depois de uma discussão difícil em um bar, eu me tranquei no banheiro por mais de dez minutos, fechei os olhos e a repeti mil vezes.

Vasculhando minha biblioteca, como um detetive desesperançado, encontrei dentro dos livros muitas anotações soltas, cartões postais, pequenos bilhetes, cartas antigas. A palavra, porém, não estava em lugar nenhum. Cheguei a imaginar que, para encontrá-la, teria que me dedicar a ler, de ponta a ponta, de A a Z, o dicionário da língua portuguesa. Mesmo se conseguisse fazer isso, eu poderia fracassar. Talvez eu a tivesse inventado, ou ela pertencesse a outro idioma.

Um dia, confessei minha inquietação a um amigo, o filósofo Lourival Holanda, um homem muito mais sábio do que eu. Ele me disse: “Só há uma maneira de encontrar sua palavra: parar de procurá-la, desistir, e deixar que ela volte quando quiser”. Na verdade, Lourival nunca me disse isso, mas algo que me levou a formular essa duplicação. Rememoro aqui, um pouco encabulado, a situação.

Odeio coquetéis, que me deixam encabulado e confuso. Apesar disso, por obrigação profissional, pois eu fazia parte do júri, fui ao coquetel de encerramento de um famoso prêmio literário paulista. Era um salão imenso. Escritores, editores, críticos, com quem já tive em algum momento, pois fui jornalista literário, uma relação de trabalho. Os anos passaram, todos envelheceram, mudaram, e eu tinha dificuldades de saber quem eram.

Preocupado em não ser grosseiro, ou arrogante, comecei a circular pelo salão, na esperança de que pequenos flashes da memória me levassem a reconhecer alguns deles para trocar palavras gentis. Acontece que entrei, com isso, em uma espécie de espiral. Quanto mais avançava, quanto mais reconhecia e desconhecia, mais me sentia obrigado a avançar — como os ratinhos que não conseguem parar quando colocados em suas rodinhas de exercício.

Eu girava, impulsionado por uma dose de uísque — bebida que odeio, e que bebia como um castigo. Já estava exausto — mas, como os ratinhos, não conseguia desistir. Até que Lourival Holanda surgiu diante de mim. “O que você está fazendo? Por que não para?” Puxou-me pelo braço e me levou até um sofá, em que nos acomodamos. “Eu o vi de longe, você fica rodando pelo salão, parece em um transe. Por que se impõe esse sofrimento?” Lourival me mostrava que, além da inteligência incomum, tem uma grande sensibilidade. Em meio do turbilhão da festa, ele soube entender meu desespero e me resgatar.

Pois agora, continuando a ser o garoto que não sou mais, recupero as palavras de Lourival e, jogando de bruxo, eu as inverto. Inverto a meu favor. Que já não sejam essas as palavras ditas por Lourival, que mais uma vez eu tenha perdido as palavras verdadeiras, isso já não importa. Lourival é um filósofo e me compreenderá.

Do mesmo modo, agora consigo reconhecer que não mais chegarei à palavra que perdi, que ela se extraviou para sempre, e que, diante disso, preciso colocar outra palavra em seu lugar. Preciso inventar outra palavra que passe a me proteger de minha própria agitação. Preciso fazer isso imediatamente — e farei. Que palavra será essa?

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho