Volto a navegar, encantado, em Fico besta quando me entendem, belo livro que reúne as entrevistas dadas por Hilda Hilst, organizado por Cristiano Diniz. Alguns temas se repetem obsessivamente, entre eles o obsessivo tema da paixão. Lembra Hilda em dada entrevista que as pessoas apaixonadas costumam despertar nos outros certa complacência, certo distanciamento. Recorda, a propósito, uma sentença do amigo e escritor Mora Fuentes: “Intensidade era apenas isso tudo o que eu sabia fazer”.
É essa intensidade, justamente, que causa espanto, certo e delicado desprezo, que promove a distância dos apaixonados, os quais parecem sempre um tanto enlouquecidos pela dor de existir, um tanto loucos. Para Hilda, o que acontece é simples: “o apaixonado anula a morbidez da alma”. Prossegue, detalhando melhor o que deseja dizer: “Há uma dilatação, ou contração, ou estagnação do tempo quando você se dá ao outro”. Não importa se o tempo acelera, ou se ele desacelera, ou mesmo se afunda em um eterno presente: algo de muito radical se modifica, e é justamente isso o que causa espanto e, mais, temor. Um medo, quase sempre, devastador.
Na paixão, noções elementares como vida, instante, tempo, espaço, proximidade, presença, ficam desfiguradas. O sujeito se vê diante do perigo abissal do intelecto, que traga todas as palavras e as transforma no que, enfim, são: puro fogo. Sim: a mente é um abismo e a paixão o rasga, o queima, deixando entrever o infinito. Falava Hilda em um sentimento duro, mas muito comum, que todos carregamos: amivissi, isto é, “a nostalgia profunda de um dia ter amado”. Uma espécie de buraco (abismo) que nos empenhamos, inutilmente, em vedar. Esse empenho é a escrita.
Lendo as idéias de H. H. sobre a paixão, fica mais fácil, parece-me, entender sua relação de vida ou morte com a literatura. A ficção e a poesia eram, para Hilda, espécies fracassadas — mas belas — de substitutos da paixão. A beleza da poesia se origina de um fracasso: a tentativa de atualizar aquilo que está para sempre perdido. A rigor, é esse esforço para tornar presente o ausente que — seguindo os passos de Hilda — podemos chamar de poesia. A poesia está entre dois tempos, e não está em nenhum deles. Está (é) no abismo que entre eles se abre.
A poesia é, ainda, uma espécie de obsessão pela beleza. Você se rende não propriamente à beleza, mas ao desejo nunca satisfeito de uma beleza que encubra todas as fendas do mundo. Só a paixão (porque é ilusão) consegue contato com essa beleza profunda, com a qual os apaixonados vestem seus seres amados. É da mesma beleza absurda que se trata a literatura, e é por isso que os escritores nunca estão satisfeitos com seus escritos, guardam sempre o sentimento de que o escrito “verdadeiro” (aquele que o destino lhes reservou) lhes foi roubado.
É por isso — porque interferem na realidade e a alteram e a enlouquecem — que as ficções deixam de ser meros produtos da imaginação para interferirem diretamente na crosta do real. Lembra Hilda que físicos e matemáticos postulam a existência de “pontos de ficção lógica”. A ficção, sempre pensei, penetra em todas as esferas do humano e está incluída, até mesmo e sobretudo, na construção da verdade. Na física, lembra-me Hilda, o “ponto de ficção” pode levar a efeitos reais e palpáveis. Só na física? Não será essa uma experiência que temos em nosso banal dia-a-dia? Não será isso o que, enfim, define a paixão — um sonho que atravessa e arrebenta e modifica o real?
Para Hilda, só a ficção torna possível ir além do amavissi, isto é, ir além do “um dia ter amado”, para — com o longo tapete das narrativas — encantar o mundo outra vez. Só a ficção reconecta o homem com a paixão — só ela apaixona o mundo. Daí a relação sempre extrema que temos com os livros que amamos. Há risco? Há, sim, e muitos. “Você corre um risco absoluto”, diz Hilda, “o de levar o leitor a um ponto em que ele não retorna”. Ler e escrever é tão perigoso quanto apaixonar-se. Nem por isso deixam de ser experiências fascinantes, que alargam os horizontes do humano.
NOTA
O texto A paixão segundo H. H. foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.