Não me afasto do noticiário da guerra. O horror tem caráter duplo: ele provoca repulsa, mas nos arrasta. Enquanto a guerra não termina, eu, que me oponho a todas as guerras, busco dentro de mim lembranças antigas que me ajudem a entendê-la. Não a aceitá-la — nunca aceitarei —, mas a entender.
Pensar na guerra é pensar na barbárie. Julgar — imitando as feras e as bestas — que só a brutalidade resolve os conflitos humanos. Não os resolvem, só os agravam. Apesar de tudo, a barbárie não foi eliminada. É contra ela, contra a bestialidade como solução dos conflitos, que devemos lutar.
O lado bestial do homem não se esconde só nos campos de batalha, mas no cotidiano. Invade a vida privada. Está onde menos se espera. A propósito, a memória me traz de volta a história trágica do senhor M., um vizinho que tive na juventude. Um homem comum engolido pela selvageria.
O senhor M. era bondoso. Era médico. Tinha o ar límpido de quem acabou de sair do banho. A senhora M. tocava piano. Era professora de piano. Dava lições em casa. Os dois filhos do casal, M1 e M2, eram rapazes educados. M1 se dedicava ao judô profissional. M2 estudava arqueologia.
Problemas financeiros exigiram que a senhora M. desse aulas extras de piano à noite. Seu vizinho de andar, o senhor B., um burocrata aposentado, se incomodou. Sofria do labirinto. A música era um ataque. “O piano perfura meus ouvidos”, reclamava. A senhora M., que estudou com freiras espanholas, se desculpava.
Quando o som do piano o incomodava, o senhor B. passou a usar um cabo de vassoura para açoitar a parede da sala contígua. M1, o judoca, representou a família nas negociações. Já no primeiro encontro, o senhor B. o recebeu com um taco de baseball nas mãos. Só o ostentou, não foi além. “Isso é intimidação”, o rapaz reclamou. As punhaladas de vassoura na parede continuaram. Cada vez mais fortes. Diziam que o senhor B. usava também o cabo de uma pá de jardim.
Desanimada, a senhora M. cancelou as aulas noturnas. Para compensar a perda, passou a cozinhar empadões, que vendia para fora. Os fregueses preferiam os empadões de camarão. O senhor B. odiava camarão e passou a reclamar do odor que impregnava o hall. “Isso aqui não é uma padaria”, berrava. “Além do mais, essa não é a hora de cozinhar o jantar.”
A senhora M. era católica. Embora fosse ateu, e usando a fé como arma, o senhor B. passou a preparar despachos espirituais e os deixava no hall dos elevadores, diante da porta da família. Eram oferendas singelas e benignas: algum quitute com farofa, velas vermelhas, uma garrafa de sidra. O senhor M. julgou que a família estava sob ataque religioso. Para se proteger, fixou uma imagem sagrada na porta de entrada.
O senhor B. era viúvo, vivia só com um filho, um halterofilista, e com um pastor alemão chamado Ralf. Sempre que a senhora M. começava a assar os empadões, o filho do senhor B. queimava um incenso forte no corredor. A fumaça entrava pelas janelas da cozinha e os empadões da senhora M. passaram a feder a alecrim, arruda ou a citronela. Os fregueses reclamavam. Não foi um revide maligno, não houve sangue, nem mortes, mas o estado de guerra se instalou. E, uma vez iniciada, é difícil parar uma guerra.
Logo vieram o verão e as tempestades. Inundações bloqueavam as ruas. Árvores eram arrastadas. Não era fácil sair de casa. Isso bastou para que o filho do senhor B., o halterofilista, em vez de levar o pastor Ralf para um passeio na rua, o incentivasse a fazer as necessidades no próprio hall, bem diante da porta da família M. “Estamos sob um bombardeio escatológico”, protestou M2, o filho arqueólogo. “Nem na Antiguidade se admitiam tais brutalidades.”
A família M. visitou a síndica, uma senhora pacata e surda, conhecida pela frieza. Ela achou as reclamações justas, mas se limitou a enviar uma carta de advertência ao senhor B. Não se sabe se o senhor B. a leu. Apesar da idade, ele passou a ouvir rock pesado durante as aulas de piano da senhora M. “Se ela pode, eu também posso”, argumentou — usando uma alegação comum, hoje também, para justificar as guerras.
Encontrei com a síndica na portaria. “Não sei o que fazer”, ela me disse. “Isso vai acabar em morte.” Disse que estava exagerando, que as duas famílias não chegariam ao ponto de se destruir, mas ela não se convenceu. Sugeri que, em outra crise, chamasse a polícia. “Isso nunca. Estou aqui para zelar pela reputação do condomínio.” Uma assembleia de moradores foi convocada para que os envolvidos chegassem a um acordo. Nenhuma das duas partes compareceu.
E a guerra se ampliou. Às vezes, com estratégias perigosas de ambos os lados. Sempre que as aulas de piano começavam, o filho halterofilista do senhor B. passou a esmurrar a parede da sala. Era um rapaz imenso. As portas tremiam. “Se ele continuar, o prédio desaba”, um porteiro comentou. Ralf, o pastor alemão, passou a dormir no hall dos elevadores, de modo que a família M. só saía de casa armada. O dr. M. levava um chicote que comprou em uma loja de hipismo. Mais delicada, a senhora M. saía armada com um vidro de desodorante forte, que aspergia na cara do cachorro. O bicho se engasgava, espirrava e fugia.
O filho judoca do senhor M. e o halterofilista B. chegaram a se estranhar, mais de uma vez, no elevador. Em uma delas, o elevador estancou entre dois andares, não se sabe se pelas pancadas, ou de propósito. Um deles quebrou alguns dentes. Outro apareceu com hematomas roxos no rosto. Nesse dia, o porteiro foi chamado. Usando a técnica dos veterinários, lançou um balde de água fria sobre os rapazes. Apanhou também, e nunca mais se meteu.
Mudei-me de prédio logo depois da batalha do balde — como ficou conhecida. Esqueci-me da guerra. Até que um dia, encontrando com a síndica em um mercado, ela me contou que a senhora M. cometera suicídio. Deixou um bilhete simples, mas dramático: “Nunca pensei que a arte pudesse gerar a guerra”. No lugar da assinatura, só uma observação: “Não aguento mais”. O senhor M. se mudou também. Morreu do coração um mês depois.