No número 47 da Revista Brasileira de Psicanálise, recém lançado pela Federação Brasileira de Psicanálise em uma edição dedicada ao tema do medo, leio (com medo) um breve ensaio do escritor moçambicano Mia Couto que me empurra de volta a meu passado. A meu passado? A meu presente, já que o presente não passa do que fizemos, do que passou. A literatura mexe todo o tempo com a experiência do medo. Ela o enfrenta. O texto de Mia me conduz de volta a um impasse — o que fazer do medo? — que nunca solucionamos. E que, penso, marca não só nossa experiência com a escrita, mas a existência humana. O medo está aqui ao meu lado, eu apenas o suporto. Mais ainda: luto para tirar dele, em vez de paralisia, energia.
Murar o medo chama-se o ensaio breve de Mia Couto, que ele apresentou, originalmente, nas Conferências do Estoril, Portugal, no ano de 2011. “O medo foi um dos meus primeiros mestres”, começa. “Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios.” Estes fantasmas, relembra ele ainda, serviram para reproduzir o velho engano “de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos”. Também em nossa própria casa somos invadidos pelo medo. Pior: o medo habita nosso interior. Nunca o exterminamos, nos limitamos apenas a murar o medo, Mia Couto me leva a pensar. Isto é: nós o delimitamos — quando conseguimos. Mas ele, o medo, continua ali.
Já repeti muitas vezes — parece inevitável repetir aqui mais uma vez — o relato de uma experiência que considero decisiva em minha formação. Aos vinte anos de idade, escrevi alguns contos. Ciente de que não prestavam, mais tarde eu os destruí. Com exceção de um. Chama-se Carta a um observador romano. Eu o publiquei, em 1976, na antologia de inéditos Folha de rosto, editada por Claudius Hermann Portugal. Último vestígio de um aprendizado. Um aprendizado cheio de medo — tanto que não suportei o que escrevi e, destruindo-os, decretei meu próprio fracasso. Ou, ao contrário, e pela primeira vez, terei divisado, enfim, meus próprios limites?
Antes de publicá-lo, tomei coragem e despachei uma cópia pelo correio para Clarice Lispector. Buscava — como todo jovem escritor — uma palavra de esperança. Uma sentença de aprovação. Alguma luz, pois mais fosca que fosse. Passaram-se os dias, nenhuma resposta. O silêncio de Clarice me silenciava. Até que, certa tarde, o telefone toca. É Clarice Lispector. “Queria falar com o José.” Identifiquei-me. Mulher acostumada (medo?) a não ceder às formalidades, Clarice não perdeu tempo. “Liguei para dizer que recebi seu conto”, prosseguiu. E, com aquela pronúncia cheia de erres, que muitos atribuíam a sua origem ucraniana, completou: “Só tenho uma coisa para lhe dizerrrr: você é um homem muito medrrrroso e com medo ninguém escrrreve. Boa tarrrrde”. E simplesmente desligou.
Com suas sofisticadas teses e dissertações, muitos professores de literatura não alcançam a concisão e a contundência que Clarice me dedicou. Foi a crítica literária mais precisa que já recebi. Uma espécie de relâmpago — um despertar súbito, mas também um soco e, logo depois, um longo torpor. Em poucas palavras, o desvelamento das apreensões que me sufocavam, sentimentos que meu precário conto ilustra, enfim, com alguma (fosca) nitidez. Eu mesmo não conseguia ver isso. Mas Clarice viu.
Ainda hoje penso em sua sentença: “Com medo ninguém escreve”. Há quatro décadas esta frase — terrível, mas potente — não me abandona. Não chega a ser uma resposta ou uma solução: é mais um enigma. Foi isso: com sua crítica fulminante, Clarice me colocou diante do enigma que a literatura carrega. Penso agora: não é que não seja possível escrever com medo. É pior ainda: não é possível escrever sem enfrentá-lo. Sem incluí-lo. O medo talvez seja o motor da escrita. Está, de qualquer modo, em seu coração.
Volto ao artigo de Mia Couto. Ele nos diz: “O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos — como cidadãos e como espécie — em permanente situação de emergência”. No dia-a-dia isso é desumano, ninguém suporta viver assim — Mia está certo. Sei por mim que, cada vez mais, busco e valorizo a serenidade. Creio, porém, que Mia nos fala mais como homem do que como escritor. A literatura nos conduz justamente aos aspectos mais perigosos e instáveis da realidade. Toda ficção é traiçoeira: você quer dizer uma coisa e diz outra. Toda ficção é imprevisível: um escritor nunca sabe aonde a escrita o levará. O escritor trabalha em estado de emergência. Escreve, sempre, sob uma tempestade. As palavras o inundam. Na maior parte do tempo, ele se afoga. Em quê? Em si mesmo.
Na mesma Revista Brasileira de Psicanálise, algumas páginas antes, encontro uma estimulante entrevista concedida pelo professor de literatura Jaime Ginzburg, da USP, a um grupo seleto de psicanalistas. Detenho-me, em particular, no trecho em que Ginzburg fala da relação entre a escrita literária e as situações de catástrofe. Refere-se, em particular, aos relatos em que ficcionistas lutam para reconstruir experiências de horror. Diz então: “Temos a expectativa de que, por serem escritores, consigam dizer algo completo e harmonioso sobre o que viveram”. É verdade: supomos, erroneamente, que escritores estão no comando de suas palavras. Não estão. Estão, mais, a reboque. Constata Ginzburg: “Eles, porém, caem na fragmentação formal, na fragmentação temporal, as partes da narrativa não se encaixam entre si. As lacunas passam a ser mais eloquentes”. Para um escritor, o silêncio é tão precioso quanto a palavra.
A precisa descrição de Jaime Ginzburg aponta o pântano em que os escritores se debatem. E essa situação inevitável — a palavra é mesmo esta, só pode ser esta — produz “medo”. Produz ou o desmascara e o enfrenta? Escritores cheios de si, escritores “que sabem o que dizem”, não costumam dizer grande coisa. A retórica os devora. O “bem escrito” os adormece. Escritores — sigo a pista deixada por Ginzburg — trabalham em estado de emergência e de catástrofe. Ele nos diz ainda: “Na catástrofe, a tensão em relação ao passado é tão grande que naufraga no colapso da linguagem”. Não há linguagem que dê conta da experiência — uma grande mancha negra fica sempre de fora. A linguagem é uma rede cheia de furos: o que ela consegue reter do real, no fim das contas, é muito pouco. Mas — humanos que somos — ela é tudo o que temos. Ou viveremos completamente apáticos e isolados. Paralisados. Mortos.
E isso — Clarice estava certa ao me entregar a palavra — gera o “medo”. Gera? Ou o medo é o próprio pântano no qual os escritores tentam nadar, na esperança de, enfim, dizer alguma coisa? A literatura mexe em feridas que, na vida cotidiana, preferimos evitar. Ela nos transporta para as bordas da existência, de onde se divisam o abismo e o vazio. Não há, portanto, literatura sem medo. Quarenta anos depois, ouso reescrever a frase que Clarice me deu: “Sem medo ninguém escreve”. Para que vocês vejam como a linguagem transporta, por um longo tempo, aquilo que dela menos esperamos.
NOTA
O texto A reescrita do medo foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.