A dúvida de Defoe

Espanta-nos, ainda hoje, o constrangimento de Defoe diante da revelação de sua “mentira”
Ilustração: FP Rodrigues
02/12/2015

Em 1719, quando publicou o célebre Robinson Crusoé, o inglês Daniel Defoe escondeu o fato de que a história era uma ficção criada por sua mente e a apresentou aos leitores, ao contrário, como o relato de uma aventura real. “Afirmou que se tratava de uma história verdadeira, e depois, quando veio à tona que o romance era uma ‘mentira’, ficou constrangido e admitiu — até certo ponto, porém — a ficcionalidade do relato”, nos lembra Orhan Pamuk em seu O romancista ingênuo e o sentimental (Companhia das Letras).

Eis um livro, o de Pamuk, que — assim como o romance de Defoe — tenho sempre perto de mim. Nele, o escritor turco trata das complexas e frágeis fronteiras que separam a fantasia do real, território movediço que sempre me interessou. Território, enfim, no qual a literatura não apenas nasce, mas no qual ela se afirma. Limites delicados que, em vez de enfraquecê-la, a alimentam e a potencializam. A arte é instável. Noções clássicas como as de verdade e mentira, por mais bem intencionadas e bem argumentadas, não dão conta de sua condição. Não a esgotam: não chegam a seu coração. A arte — a literatura — caminha “entre”. É uma espécie de ponte, que conecta mundos que, a princípio, parecem totalmente separados. Uma costura que, armada entre o real e o irreal, descortina mundos possíveis.

Espanta-nos, ainda hoje, o constrangimento de Defoe diante da revelação de sua “mentira” — como se tivesse cometido um pequeno pecado. Já era um homem de quase sessenta anos de idade, não mais um jovem perdido. Mais de um século antes, Miguel de Cervantes havia apresentado ao mundo seu Dom Quixote, considerado, em geral, o primeiro romance moderno. Trabalhava Defoe, portanto, com uma “mentira” não só conhecida, mas já consagrada. Por que ocultar que fazia ficção? Por que se envergonhar disso? Por que se julgar um mentiroso? É essa pergunta estarrecedora que Pamuk nos traz de volta. Não só como uma relíquia do passado, mas como um elemento que ainda hoje governa (e desgoverna) o fazer literário.

Argumenta, mais à frente, Pamuk: “Durante centenas de anos, escritores e leitores têm tentado, sem sucesso, chegar a algum acordo sobre a natureza da ficcionalidade do romance”. Não há, porém, acordo possível. Trata-se de um impasse que não permite solução. Trata-se de um enigma. A leitura de Dom Quixote, ou de livros da grandeza de Moby Dick e do próprio Robinson Crusoé, ainda hoje, em pleno século 21, despertam um incômodo. Acreditar ou não acreditar? Verdadeiro ou falso? Até que ponto o escritor se inspirou em uma experiência real, a partir de que ponto inventou essa experiência? Como chegar a uma conclusão que nos satisfaça e alivie?

Não há alívio possível. A arte de escrever ficção consiste justamente em trabalhar com esses desejos contraditórios — e, apesar disso, continuar a escrever, argumenta Pamuk. Consiste em suportá-los e, apesar do paradoxo, ou deixando-se empurrar por ele, simplesmente seguir em frente. A contradição está no centro da ficção. Não oscilasse de um lado para o outro, não despertasse uma dúvida intensa no leitor, não o deixasse sempre desconfiado e indeciso, e ficção ela não seria. Diz ainda Pamuk: “Não quero dar a impressão de que tenho alguma esperança em relação a esse acordo. Ao contrário, a arte do romance tira sua força da ausência de um consenso perfeito entre escritor e leitor”. O impasse — o insolúvel — está no centro da escrita. Mais ainda: é o que a move.

Por isso soam tão anêmicas, tão desprovidas de força, as ficções contemporâneas que desejam produzir retratos fiéis do “mundo atual”.

Verdade e mentira
Houvesse uma solução, ou uma explicação, e as ficções desmoronariam. Por isso são tão sofríveis os romances contemporâneos em que os escritores — se comportando como jornalistas, ou antropólogos, ou mesmo retratistas do real — lutam para descrever “fielmente” os fatos do contemporâneo. Mesmo os grandes romances do realismo, como a Madame Bovary, de Flaubert, tiram, ainda assim, sua força dessa oscilação entre verdade e mentira. No fim das contas, esse sentimento de estar à deriva é uma grande fonte de prazer. É a ele que o leitor se entrega — e é nele, também, é graças a ele, que o leitor se intriga. É justamente essa perplexidade que o faz avançar. Que alimenta e engrandece a leitura. Que a encorpa e tonifica.

“Um romance não é nem completamente imaginário, nem inteiramente factual”, resume Pamuk. Esta é a regra do jogo: o leitor precisa aceitar que ler é caminhar sobre um pântano. O avançar da leitura gera sentimentos contraditórios que, se incomodam, atraem também. Um romance “inteiramente ficcional” passaria, ele sim, por mentiroso. Mas um romance “inteiramente verdadeiro” também. “Perguntar-nos que partes se baseiam em experiências concretas e que parte são imaginadas é apenas um dos prazeres que a leitura de um romance nos proporciona”, conclui Pamuk. O prazer vem da dúvida, e não da certeza. Vem da incerteza, e não da convicção. É esta hesitação que torna um romance “verdadeiro”. Que o faz mais parecido com a vida. Que o torna, enfim, parte da própria vida. Só ao oscilar — como o peito de um humano vivo — a literatura, de fato, respira.

Por isso soam tão anêmicas, tão desprovidas de força, as ficções contemporâneas que desejam produzir retratos fiéis do “mundo atual”. Relatos que emparelham com a realidade, na esperança de capturá-la e de esgotá-la. Narrativas que rivalizam com o cinema, o vídeo e a informática — ou, mais ainda, que se produzem na esperança imediatista de se tornarem simples captura. Textos feitos por escritores que trabalham movidos pelo desejo da glória discutível das “adaptações”. A literatura não é adaptável. Não é também adaptativa. O escritor — ao contrário do que dizem as normas de hoje — não é um “produtor de texto”. Quando escreve, se escreve para valer, ele não tem pleno controle sobre o que escreve. Não escreve em busca de resultados, ou de efeitos determinados — mas para arrancar como pode, precariamente, coisas que tem dentro de si. Para abrir uma ferida no peito. Justamente por isso, a dúvida de Defoe perdura, ainda hoje, como uma espécie de guia para o escritor. Ou ele aceita que não controla o que escreve, ou não escreverá.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho