Em Ribeirão Preto, participo de uma mesa de debates organizada pela Oficina Cândido Portinari. Tenho a honra de dividi-la com Luiz Costa Lima, um de nossos mais importantes teóricos da literatura. E a sorte de ter a nosso lado um mediador de luxo: o escritor Menalton Braff.
O tema que nos oferecem: “crítica literária”. Falamos em crítica e logo pensamos em avaliações, aferimentos, aprovações ou reprovações. Atitudes — mais de julgamento, que de interpretação — que, em geral, são apresentados como crítica. Não falo, também, dos escritos irônicos, rancorosos, ou sarcásticos que, muitas vezes, são confundidos com a crítica. Não passam de desabafos, maledicências, rancores, jogadas de grupos. Nada mais.
Enfim: os organizadores do evento de Ribeirão Preto vêem a mim e a Costa Lima como dois praticantes da “crítica literária”. Mas será? Viajei para Ribeirão me perguntando se tal coisa, “crítica literária”, ainda existe mesmo. Para pensar melhor, reli durante a viagem um precioso artigo de Flora Süssekind, Rodapés, tratados e ensaios, guardado em Papéis avulsos, livro que editou pela UFRJ em 1993.
A crítica literária “de rodapé” proliferou no Brasil em meados do século 20. De seus grandes nomes, apenas um, Wilson Martins, que foi durante muitos anos colunista do Prosa & Verso, d’O Globo, chegou ao século 21 — faleceu em 2010. O advogado e jornalista Álvaro Lins morreu em 1970. Pintor, poeta e tradutor, Sérgio Milliet faleceu em 1966. O jornalista e ensaísta Otto Maria Carpeaux, em 1978. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, em 1982. Professor e pensador católico, Tristão de Athayde morreu em 1983. Homens do século 20. Posso concluir: crítica literária, atividade do século 20 também.
A diversidade de formações me sugere um único atributo que os aproximava: a não-especialização. Na verdade, o mais importante entre todos os críticos de rodapé, o professor universitário Antonio Candido, nascido em 1918, ainda está vivo e muito lúcido — como tivemos a oportunidade de verificar na Flip deste ano, em Paraty. Em sua fala, Candido, que foi durante longo tempo professor de Teoria Literária na USP, recordou que lhe coube introduzir a crítica literária, antes praticada apenas nos jornais, no meio universitário.
No ano de 1951, o ensaio de Flora me ajuda a pensar, Afrânio Coutinho (1911-2000) criou, na Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette, no Rio, a primeira cadeira de Teoria Literária. Até 1965, quando a UFRJ funda a primeira faculdade de Letras do país, os cursos de Letras não passavam de departamentos abrigados nas faculdades de Filosofia. A literatura era um subsaber.
1965: eis um ano de ruptura. Sob a forte influência do estruturalismo, a Teoria Literária prolifera nas faculdades de Letras, que por sua vez se espalham por todo o país. Quantas serão hoje? Não sei responder. Sei que somos um país de grandes teóricos da literatura. Penso em Silviano Santiago, em Leyla Perrone-Moisés, no saudoso João Alexandre Barbosa, em Alcir Pécora, em David Arrigucci, em Antonio Carlos Secchin, e no próprio Costa Lima. Teóricos de linhagem e formação distintas, de temperamentos às vezes incompatíveis, mas ligados pela paixão da teoria.
Volto, enfim, à mesa de debates de Ribeirão Preto. Diante do tema, “crítica literária”, uma pergunta não me deixava: mas tal coisa existe mesmo? De um lado temos os teóricos da universidade, que fazem percursos rigorosos, se submetem a leituras metódicas e se filiam a essa ou àquela nobre corrente de pensamento. De outro, existem hoje os resenhistas da imprensa, igualmente respeitáveis, escrevendo desde a perspectiva da “não-especialização”. Mais ensaístas que teóricos. Em boa parte dos casos, mais comprometidos com a informação (que é o sangue do jornalismo) do que com a reflexão.
Muitos teóricos importantes — penso em Beatriz Resende, em Alcir Pécora, em Antonio Carlos Secchin, em Davi Arrigucci, e na própria Flora Süssekind —, vez por outra, escrevem artigos para os suplementos literários da imprensa. Esses suplementos, é natural, estão dominados por jornalistas — entre os quais eu mesmo me incluo — que cultivam uma relação livre e intuitiva (alguns dizem “impressionista”) com a literatura. Escrevem (escrevemos) resenhas: ao contrário dos teóricos da academia, não temos compromisso algum com tradições teóricas, com sistemas, com conceitos. Escolhemos nossos livros estimulados pelas ofertas do mercado, pelas modas e ainda pelo apreço à surpresa; e não empurrados por esse ou aquele percurso intelectual.
Será que nós, resenhistas, fazemos “crítica literária”? Será que os teóricos da academia fazem “crítica literária”? Quem são hoje os críticos literários? A resposta que venho arriscar, temerária, frágil, mas possível, é: a crítica literária não mais existe. Em meu caso particular — foi o que tentei explicar em Ribeirão Preto —, desde que passei a ocupar, com muita honra, uma coluna do caderno Prosa & Verso, não faço nem uma coisa (resenha), nem outra (teoria). Mas, então, o que faço? Costumo, cheio de temores, me definir como “cronista”. Mas serei isso mesmo?
Escrevo, na verdade, “relatos íntimos de viagem”, não a esse ou aquele país, ou continente, mas a determinado romance, ou livro de poemas. Leio (viajo) e depois, em minhas colunas, narro minhas impressões, falo dos pensamentos que a leitura me despertou, das associações que me motivou, dos livros que me levou a reler. Trabalho, eu sei disso, com um gênero híbrido — que nem é resenha, nem é teoria, tampouco é crítica literária também.
Sempre que me perguntam afinal quem sou (pois vivemos na era dos crachás, das senhas e das assinaturas digitais) opto, ainda inseguro, pelo termo “cronista”. Por quê? A crônica é, por excelência, um gênero de fronteira, localizado a meio caminho entre os fatos e as ficções. É um gênero “trans” — podemos, talvez, falar em um “transgênero”. Além disso, tenho em alta conta os cronistas clássicos — Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Não são magníficas, ainda, as crônicas escritas por Drummond e por Clarice?
Eis o que faço, ou tento fazer: escrever desde essa fronteira, lugar remoto e não muito preciso, habitado por um ser fugidio que chamamos de “leitor comum”. Sim: sou um leitor profissional, não posso recusar esse status. Ele aparece nas folhas de pagamento. Mas, quando leio, luto para ser apenas um leitor comum. Um leitor apaixonado, que agarra um livro, ou ao contrário o abandona, só por impulso. Alguém que lê guiado por sua memória pessoal, por seu temperamento, por seus afetos. Entrego-me, então, ao livro que tenho nas mãos, para que ele, sim, me leia. Ele, sim, faça alguma coisa de mim. Ao relato dessa entrega chamo, na falta de um nome melhor, de crônica. Relato, portanto, de uma viagem subjetiva em que o livro é minha estrada.
Será “crítica literária” o que faço? Pessoalmente, a expressão me incomoda. Não porque não seja digna, ou porque deponha contra mim, ou porque me agrida. Ao contrário! Mas porque, simplesmente, não diz quem eu sou. Tampouco acredito que ela combine com o trabalho mais factual dos resenhistas (que eu mesmo, muitas vezes, pratico). E nem que seja uma expressão adequada ao trabalho severo dos teóricos da universidade.
No fim das contas, só uma coisa une teóricos, resenhistas e cronistas: uma mesma paixão. Só a literatura nos une. Apaixonados pelo mesmo objeto, cada um o vê, dele se aproxima, o descreve e o envolve à sua maneira. Para além de todos os nomes e classificações, impõe-se, sempre, a força do olhar singular. Já não sei se, quando falamos dos teóricos literários, dos resenhistas literários e dos cronistas literários, devemos mesmo usar a expressão “crítica literária”.
Uma expressão que, arrisco-me a pensar, talvez tenha ficado no passado — com Álvaro Lins, com Tristão, com Carpeaux, com Décio de Almeida Prado, com Sérgio Buarque. E que hoje é só uma expressão vazia, que se refere a um objeto inexistente. Talvez venha daí a sincera aflição que Antonio Candido exibiu em sua fala na Flip. Aflição que muitos tomaram como manifestação de pessimismo, mas que tomo como expressão de extrema lucidez.
Talvez a expressão “crítica literária” seja hoje usada mais para amedrontar, para intimidar, do que para dialogar e acolher. Talvez por isso desperte mais suspeitas que confiança. Declarar-se crítico literário é, quem sabe, pretender uma autoridade que, hoje, ninguém mais tem. Se o crítico não é um juiz que aprova ou desaprova, se ele não é um especialista em aferição de qualidades, se não é um severo inspetor de “boa escrita”, como eu penso que ele não é, o que sobra para o crítico? Sobra ser um leitor. Um leitor comum, para quem a paixão dá sempre a última palavra.
NOTA
O texto A crítica literária existe? foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.