No dia 11 de abril, o Rascunho comemorou seis anos de vida. Como é da natureza do jornal, nada melhor que uma boa discussão para comemorar a data. No palco do Teatro do Paiol (prédio que já abrigou um paiol de pólvora), em Curitiba, reuniram-se Moacyr Scliar e Cristovão Tezza, sob a mediação de José Castello. Durante quase duas horas, falaram sobre crítica literária, a literatura, a importância da leitura na vida cotidiana, entre outros assuntos. Confira os melhores momentos deste encontro.
Elogios e críticas
Scliar
Todo autor quer ser elogiado, quer aplauso, quer que os outros digam que ele é inteligente, criativo e genial. É o sonho de todo escritor. E a verdade é que quem escreve são pessoas desamparadas, que têm, diante da vida, uma insegurança que deriva de uma situação existencial. Tem uma frase — não lembro de que autor — que diz o seguinte: pessoas inteiramente felizes não escrevem. Para escrever, a gente tem que se sentir um pouco triste. Há um grau ideal de desconforto que nos ajuda. Sinto isso também como médico. O exercício da medicina, que também tem um componente angustiante, muitas vezes faz com que médicos escrevam — nem sempre bem — para neutralizar essa ansiedade. Então, quando terminamos de escrever, achamos que fizemos uma obra genial. Que mudou o rumo da literatura, que vai marcar o cenário literário do nosso tempo. E ficamos muito infantis. No fundo todo escritor é aquele menininho que anda de bicicleta e daí olha e fala: “Mamãe, sem as mãos, ó!”. E mostra como é hábil. Sei disso porque meus primeiros textos literários eu mostrava para os meus pais. Eles ficavam muito admirados, mostravam para os vizinhos e parentes e diziam: “Esse vai ser o nosso escritorzinho”.
Scliar
A pergunta básica que um escritor tem que fazer diante de uma crítica, elogiosa ou não, é: isso aí é verdade? Vocês vão dizer que o escritor não sabe se é verdade ou não. Mas sabe. Antes de ouvir a crítica ele já ouviu o seu crítico interior. Todos nós temos lá no fundo da nossa mente um conjunto de críticos literários que já analisou a nossa obra e já nos disse o que nós tínhamos que saber. Agora, há vezes em que a crítica é governada por outros fatores que não os da apreciação literária, em que o crítico está se vingando de seus pais, do mundo cruel, da namorada que o corneou. O que fazer nesse caso? […] Eu vou ficar com pena dessa pessoa, mas vou desejar sinceramente que ela melhore e descubra outras compensações na vida, que não a de malhar o trabalho dos outros. Porque, se uma pessoa não gosta de um livro, ela não é obrigada a escrever uma resenha ou uma crítica. O silêncio nesse caso pode ser tão significativo quanto uma coisa negativa.
Scliar
José Castello é uma pessoa capaz de analisar um livro e, ao apontar os seus defeitos, é capaz de ensinar uma lição de literatura. Lembro de um livro que eu lancei há muitos anos e ao qual ele fez restrições: Sonhos tropicais, uma biografia romanceada de Oswaldo Cruz. Quando le a crítica eu disse: “Castello tem toda a razão. Ele disse o que tinha que dizer, e vou melhorar no próximo livro”. Acho que melhorei, não é?
Castello
Quando você não gostou de um livro e escreveu negativamente sobre ele, fica com um frio na barriga no momento em que você vai reencontrar aquele autor pela primeira vez. Você nunca sabe qual será a sua reação, se o cara carrega uma faca ou sei lá. E cruzei com Scliar um bom tempo depois, em Porto Alegre, na Rua da Praia. Ele veio, me chamou para um café e disse: “Tenho que lhe agradecer pelas coisas duras que você escreveu a respeito do meu livro e que me fizeram pensar”. Essa é a idéia da crítica: fazer pensar.
Tezza
Quando escrevi Trapo, em 1982, levei seis anos até desistir de publicá-lo em Curitiba. Disse: “Não, ou eu publico fora ou vou morrer inédito”. Cheguei a ter quatro livros na gaveta. E quando o publiquei, pela Brasiliense, em 1988, saíram resenhas em São Paulo e no Rio. E eu já estava com uma casca muito grossa, ou seja, era totalmente indiferente para mim o que dissessem sobre o livro. […] Mas com cada livro, claro, você tem uma expectativa, não vai fingir que não é com você. “O que esse idiota está falando do meu livro?”. Você leva dois, três anos escrevendo e vai alguém em 40 linhas dar uma opinião. Nessa aventura, é claro que você leva pauladas. O fotógrafo, que foi meu livro de maior sucesso, começou muito mal. Levou uma paulada da revista Bravo! e outra de Wilson Martins. Rascunho falou bem. Então nessa relação com a imprensa é preciso manter uma certa distância, ter uma certa maturidade, porque a literatura é uma arte muito lenta, e a atividade do escritor não foi solicitada pela sociedade. Se você abre lá os classificados da Gazeta do Povo, eles precisam de tudo no mundo: Encanador, vendedor, professor… Mas não tem lá: “Precisa-se de um poeta”, “contrata-se romancista”. É uma atividade não solicitada. Ela não tem nenhuma relevância social. Ela tem a posteriori.
Literatura, mídia e tempo
Tezza
Se você não desenvolver uma relação ética com a arte de escrever, pode ser destroçado pela literatura. Ela perdeu brutalmente o terreno que ela tinha. Em meados do século 19, ela era a grande arena de discussão de todos os grandes temas da humanidade. Hoje não é mais. Está quase virando ou uma literatura de massa, que vai preenchendo outro tipo de recepção, ou um espaço especializado. Tenho grande esperança de que o romance vá recuperar um espaço de relevância social…
Tezza
A literatura é uma arte que exige silêncio e solidão, você precisa estar sozinho. A solidão hoje é um valor totalmente negativo. Veja a televisão, as propagandas. Veja se em algum momento a idéia de que alguém estar sozinho é uma coisa positiva. Não é. A televisão está sempre cheia de gente dando risada. A literatura vai exatamente na contramão disso. O puro ato de ler já é um ato de isolamento. E tudo, hoje, leva você a não ler. É claro que o espaço ficou muito estreito nesse sentido, aí acrescido da tragédia social brasileira. Uma faixa muito estreita da população transita na palavra escrita, lê livros e escreve. Então, se o escritor não interiorizar o trabalho dele numa dimensão mais sutil, mais solitária, mais íntima, vai quebrar a cara.
Tezza
O que faz a literatura ser o que ela é? Ela é a única linguagem não-oficial. Ela transita por todas as linguagens sociais, é um ponto de encontro entre todas as linguagens sociais que estão por aí, não pode se oficializar nunca. Então é aquela voz sempre errada, fora do prumo, alternativa, é uma representação do mundo, uma maneira de botar ordem no mundo e ao mesmo tempo reescrevê-lo, colocá-lo em outra dimensão. Não vejo saída civilizatória sem a palavra escrita e sem a literatura.
Espaço e função da literatura
Scliar
Por que um estudante de medicina tem que estudar literatura e ler livros de ficção? A resposta nasce de uma necessidade pragmática. Não é por que os americanos (que a têm estudado) acham que a literatura é bonita. A medicina, nos Estados Unidos, está se tornando, cada vez mais, uma ocupação científica e tecnológica. É colocar o paciente num tomógrafo, dosar os elementos do sangue dele, é fazer um diagnóstico, dar uma receita e estamos conversados. O resultado é que as pessoas estão se revoltando muito contra esse tipo de assistência. Sentem-se objetos. E americano, quando se sente mal, não fica chorando num canto. Vai para o tribunal. E aí os processos contra médicos estão crescendo exponencialmente nos Estados Unidos. Eis que eles examinaram esta situação e chegaram à conclusão de que o jeito era mexer na formação médica e reforçar o lado humanístico da profissão. E a melhor maneira de fazer isso é através da literatura. Então, textos de ficção como A montanha mágica, de Thomas Mann, A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, e O alienista, de Machado de Assis, são coisas que ensinam para um jovem estudante de medicina como é estar doente. E quais os erros que os médicos, os familiares e os amigos cometem com relação a uma pessoa que está doente. Quer dizer, a literatura passa a ser uma coisa muito importante. Um poeta americano, médico, William Carlos Williams, escreveu muito sobre literatura e medicina, e tem um poema que diz mais ou menos o seguinte: “Não esperem grandes novidades dos poemas”. No entanto, diz ele, as pessoas morrem por falta das coisas que ali elas poderiam encontrar. Literatura é vital. Não para todas as pessoas, mas para um grupo que, através do texto literário, chega à verdade da existência.
Tezza
A grande questão que a literatura tenta resolver e não vai resolver nunca — e por isso ela é tão necessária — é: a vida não tem um final feliz. Nós morremos no final. […] Não posso pensar que a literatura vai reformar o mundo, embora tenha ajudado a mudar o seu imaginário nos momentos em que ela tinha esse espaço. No século 19, a literatura pesou muito no imaginário revolucionário, na visão do Dickens, nas denúncias sociais. Esse poder se perdeu, a literatura não tem mais essa função. E se tivesse seria uma tolice, porque não é com 500 exemplares que você vai atingir a massa. A literatura está voltando. Pegue o fenômeno Paulo Coelho e pense que a literatura acabou de cumprir uma função que a Bíblia deixou de cumprir. É como se ela voltasse a ser o discurso religioso de outras formas. E a função da literatura é escapar dessa armadilha, é justamente continuar sendo o seu discurso leigo. É aceitar essa solidão primeira, essa condição primeira como a sua grande matéria para trabalhar.
Castello
Vivemos num mundo cada vez mais especializado e técnico, onde as pessoas esperam respostas prontas para tudo. Não é à toa que a literatura de auto-ajuda tem hoje o peso que tem. E a literatura vai numa direção contrária. É a velha história do Chacrinha: ela veio para confundir, e não para explicar. É algo muito simples e muito complicado, e muito importante hoje, mais do que nunca. É uma vida muito veloz que a gente leva, todo mundo quer tudo pronto e prático. E a literatura não tem nada de prático. Ela nos leva para a solidão, num mundo tão habitado; para a introspecção, num mundo que leva tudo para fora; para o particular, num mundo cheio de regras e normas e modas e tendências. Embora atinja pouca gente, ela é um reduto até de resistência. Porque o contato que você tem com um livro é absolutamente pessoal e intransferível. Não tem como você comprar isso. Ou você tem ou não tem. “Não sei ler bem esse livro, mas vou contratar um critico literário para me ensinar a ler bem.” Isso não existe. A literatura, nesses padrões do mundo, de serviços, desse mundo técnico que a gente vive, não funciona. Acho que a função dela é essa função de contracorrente, de resistência, é ser um ponto de liberdade, sobretudo de liberdade interior.
Para que serve o escritor?
Castello
Fiz uma palestra em Belo Horizonte sobre o meu livro Inventário das sombras. Uma senhora se levantou lá na última fila, muito nervosa, pediu o microfone e falou o seguinte: “Não posso explicar exatamente a história porque é uma coisa muito íntima. Mas queria dizer que a leitura desse seu livro me ajudou a resolver um dos problemas mais graves que já enfrentei na vida. Eu estava quase enlouquecendo e, depois que eu o li, consegui resolver o problema. Então, quero primeiro lhe agradecer e depois lhe fazer uma pergunta: por que é que você não passa a escrever livros de auto-ajuda?”. Eu ri e ela ficou arrasada. Tive depois que ir lá pedir perdão a ela. Enchi a mulher de carinho, dei beijos nela, agradei-a de todas as formas. Essa história motiva uma outra pergunta: que imagem é essa que resta hoje ao escritor? Quem é o escritor socialmente, o que as pessoas esperam dele? Por que escritores vêm aqui falar para pessoas que também são escritores, ou que não são escritores, ou que pretendem ser escritores? O que é que se espera de um escritor?
Scliar
As pessoas esperam que o escritor seja um guru, dono de uma sabedoria que lhe permite dar conselhos. Posso contar uma historinha? Havia um homem, muito angustiado, perseguido pela idéia paranóica de que tinha um terrorista embaixo da cama dele. Então encaminharam-no a um psicanalista. E ele ficou anos no psicanalista tentando descobrir qual era a motivação remota daquela fantasia do terrorista escondido embaixo da cama. E um dia ele simplesmente deixou o tratamento. E aí o psicanalista, tempos depois, encontrou-o. O homem disse que estava bem e não mais precisava de tratamento. Mas ficou bom sozinho? Ele disse não, que ficou bom porque consultou um rabino. E aí o psicanalista: “O que é que o rabino disse?”. “Ele mandou serrar os pés da cama.” Quer dizer, o que a gente espera de um escritor é que ele diga uma frase ou um conjunto de frases que resumam essa verdade. É claro, na maior parte das vezes, isso não vai acontecer, porque escritores podem ser pessoas muito tolas. Eventualmente o escritor vai dizer algo importante. Agora, qual é a melhor forma de chegar à literatura? É através daquilo que o escritor fala ou através daquilo que ele escreve? É através daquilo que ele escreve. Porque a literatura acontece no texto. Ela pode ter começado como uma manifestação oral, mas se realiza no texto.
Criticar
Castello
Escrever uma crítica é oferecer ao escritor e aos leitores uma leitura possível de um livro. Acho que até, muitas vezes, escrevo coisas que não só me satisfazem como ajudam as pessoas a ler os livros que resenho. O problema, hoje, é que a critica ou vem da universidade — e ela vem com muitos propósitos científicos, teóricos e muito medo de errar — ou é praticada na imprensa, em geral, de uma forma muito leviana. E apressada. Eu trabalhei em redação e vi editor de caderno de livros pegar um livro e dizer: “Quem quer resenhar o livro do Moacyr Scliar que saiu aqui?”. Aí levanta um repórter e diz: “Ah, já ouvi falar desse cara, me dá aqui”. Daí escreve e publica. Isso é muito ruim, leviano, fútil e inútil.
Tezza
O (crítico) Manuel da Costa Pinto, uma vez, em São Paulo, me perguntou: “Por que você não experimenta escrever crítica? Você é um cara que gosta de literatura e tem uma boa formação”. Eu comecei e comecei a gostar. É um gênero que acho muito legal. O pessoal fala mal às vezes. O formato da resenha, muito funcional, é até um bom exercício. Em quatro mil toques, você tem que passar ao leitor uma informação consistente sobre um livro. Não é por ser curta que a resenha precisa ser ruim, apressada ou malfeita. Num tempo em que ninguém lê nada, uma boa resenha é uma dádiva, é um gênero que me agrada. E teve um momento em que comecei a escrever mais regulamente, e de repente cheguei a falar mal de dois ou três livros. E me senti mal, talvez pior do que o sujeito que era objeto da minha critica. Fiquei sem dormir. Mas eu não podia simplesmente, como todo convidado a fazer uma crítica, de repente falar mal por acaso. Já tomei por norma que só escrevo de livros que gosto. Dou uma olhada para ver se me interessa. Se não interessar, não escrevo, porque não sou um profissional da critica. Sou um escritor que comenta livros. É uma coisa diferente. Mas é uma atividade necessária. É importante que circule. É o último espaço que resta. Qual o espaço que o livro tem na televisão? É zero. Nas tevês comerciais é zero. Ainda têm uns canais de tevê a cabo com bons programas, mas é muito pouco. Tem aquele espaço em jornal, que é sempre relevante. Qualquer informação sobre o livro como objeto deve ser estimulada. Mas a imagem do escritor é essa. Eu não me conheço direito ainda. Não é simplesmente consertar um sapato, fazer um objeto. Uma atividade que mexe com a linguagem, com a própria concepção de mundo, uma viagem fascinante.
Autocrítica
Scliar
Temos que ser implacáveis com o que escrevemos. Temos condições para isso. A gente tende a se enganar, lê um texto, não gosta muito e fica pensando: quem sabe? Dou uma mexida aqui? Quem sabe tem gente que vai gostar disso? Então, existe essa tentação de autojustificação que deve ser rejeitada. No caso do fazer literário, como na vida em geral, a verdade tem que aparecer. O espírito humano descansa na verdade, ainda que a ficção seja uma mentira, uma mentira profissional. Mas os ficcionistas têm que ser autênticos com aquilo que escrevem. E nesse sentido, o computador foi uma grande invenção. Nele, há uma tecla sublime. A tecla de deletar. Deletar é uma coisa maravilhosa. Aquilo que a gente escreveu, aquela porcaria, some sem deixar traços. Não há ocasião para arrependimentos. Os átomos que se juntaram ali se dispersam e vão para o espaço. E que fiquem no espaço. E a gente que comece de novo. Escritor tem que ter autocrítica. Tem que saber quando não foi bem e, quando não for bem, tem que fazer de novo.
Tezza
O escritor não pode ser complacente com o texto. Temos tantas ocasiões para mentir, a vida toda. Não precisamos mentir quando escrevemos. Então, sou também terrivelmente exigente. Às vezes, vejo defeitos nos meus livros e fico quieto, porque os outros não perceberam ainda. Sou o melhor critico dos meus próprios textos. Às vezes, dois ou três anos depois, vou ler e fico imaginando a resenha que eu faria sobre aquele livro. Não há texto que você escreva direto, de um jato, e que saia uma obra-prima. Isso não existe. O texto escrito com facilidade é lido com dificuldade. Você tem que saber trabalhar, reescrever. Ter uma relação carinhosa com o texto, com a linguagem, chegar ao osso. E ter essa coragem de ir cortando, deletando, limpando o texto. Um trabalho muito bonito.
Scliar
De uma maneira geral, a gente não tem limites em relação ao tempo. É muito raro que o editor diga: “Olha, você tem que entregar o livro até o dia tal”. De uma maneira geral, há tempo. Não há tempo para quem escreve em jornal. E jornal e literatura são duas coisas diferentes. Falo isso porque todas as terças-feiras eu escrevo uma coluna para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. São vários colunistas: Luis Fernando Verissimo, Martha Medeiros, eu. E a gente vai revezando. É algo que inevitavelmente eu tenho que fazer com uma certa pressa, porque tem que se entregue na segunda até as 20 horas, e como é um assunto do dia, não dá muito tempo de fazer e refazer. Então, hoje, terça — isso aconteceu no avião —, me entregaram o Zero Hora, e eu já o abri contrariado. Porque eu sabia que eu ia ler o meu texto e ia ver coisas de que não ia gostar. E não deu outra. Eu li uma frase e me perguntei. Por que eu não mexi nisso? Por que deixei que a publicassem dessa maneira? Essa viagem me fez muito mal.
A qualidade do que se escreve
Scliar
Há maneiras de avaliar a qualidade do que a gente fez que são surpreendentes. Uma vez perguntaram a Ernest Hemingway, o escritor americano, como ele sabia que tinha escrito uma boa coisa. Para mim, tudo que ele escreveu é bom. Mas a resposta dele para essa pergunta foi muito boa: “Sei que fiz uma coisa boa quando os pêlos do meu braço se arrepiam”. O que ele quis dizer com isso? Os pêlos do braço se arrepiarem é algo que não depende da sua vontade. Você não consegue arrepiar os pêlos do braço. Não adianta dizer: “Arrepiem-se!”. Eles não estão nem aí para isso, porque se movimentam involuntariamente. Mas isso traduz a sua verdade visceral. E essa é a verdade mais autêntica. Porque quando o seu corpo reage, você pode ter certeza de que aquilo é mais autêntico do que o seu cérebro, do que o seu raciocínio. Então, se os pêlos do braço se põem de pé para aplaudir uma obra, provavelmente ela corresponde a uma coisa verdadeira da pessoa que a escreveu.
Literatura e educação
Tezza
A escola tem que fazer circular o livro. Como fazer isso é um problema. Tem muita gente traumatizada por um Machado de Assis fora de hora, por ser obrigada a analisar os decassílabos de Camões na quinta série. Mas acho que o Brasil já tem know-how nessa área de literatura juvenil. Vejo o pessoal fazendo levantamentos em que se percebe que a escola acaba sendo a grande fonte de leitura para a maioria dos futuros leitores. É sinal de que pelo menos as melhores escolas, onde o livro circula de fato, estão cumprindo essa função de porta de entrada. Mas isso vai depender muito da biblioteca e dos professores de cada uma. Lembro da minha formação no (colégio) Estadual. Uma biblioteca maravilhosa. Era uma porta de entrada para a civilização e para o mundo. O que o Estado pode fazer pela literatura, no meio de tantas picaretagens e projetos que não adiantam nada? Colocar livros nas escolas, criar bibliotecas em cada escola brasileira. A criança tem que ver o livro, pegá-lo nas mãos, fazê-lo circular desde o primeiro ano. Esse é o trabalho fantástico.
Scliar
Viajo muito por esse país a convite de escolas e universidades. Sou médico de saúde pública e sei que as pessoas não correm atrás das vacinas. As vacinas correm atrás delas. O livro é uma vacina contra a insensibilidade, o desconhecimento e a ignorância. Mas, nas escolas, ele não deve ser transformado numa obrigação curricular. A idéia que cada vez mais se propaga é a de que os jovens têm que ler para passar no vestibular. Lembro que uma vez meu filho me disse: “Pai, você caiu no vestibular”. “E tu acertou?”, perguntei. “Não sei.” É uma situação difícil. Volta e meia, os filhos de meus amigos me telefonam e falam: “Tio, tu vai cair amanhã no vestibular, me resume aí ligeirinho a tua vida e a tua obra”. Isso, acho, é um desafio que a gente vai enfrentar no dia do juízo final: resumir ligeirinho nossa vida e nossa obra para ver se a gente vai entrar no céu. A pergunta básica não é o que o escritor quis dizer com tal coisa. A pergunta é: o que você sentiu lendo esse livro? Porque, se o jovem sentiu alguma coisa, ele vai entender. Se ele não sentiu nada, não vai aprender nada. A literatura não é física, química ou matemática. É outro tipo de ensinamento, veiculado pelos canais emocionais. É exatamente isso que faz do ensino da literatura uma coisa importante na escola. Ele é o canal do emocional de comunicação do jovem com o professor, com o livro e com o mundo de uma maneira geral.
Literatura e idealismo
Tezza
Se você pegar a literatura romântica brasileira de José de Alencar, tem um exemplo de um ideário de valores num escritor. Alencar talvez seja o exemplo de um tempo muito popular. Ao longo do século 20, ele continuou sendo popular. A literatura moderna é incompatível com esse tipo de tábua moral. Ela é mais implosiva, no sentido de justamente desmontar todo aquele andaime de estar a serviço de um ideário. Você tem alguns momentos da história socialista em que, de fato, a literatura estava a serviço de causas. Mas acho que a literatura vai na direção contrária.
Scliar
Tirando a literatura panfletária ou doutrinária, de uma maneira geral você pode dizer que a literatura é mais crítica e satírica, mais corrosiva do que consoladora. A maior parte dos escritores brasileiros não é de dar tapinhas nas costas do leitor. É como Macunaíma. Não é, convenhamos, um dos livros mais entusiasmantes em relação ao Brasil. Mas é autêntico, e temos que partir da autenticidade para fazer um diagnóstico de nossa situação cultural e, a partir dela, fazer um projeto. Isso é uma coisa importante que ainda não temos. Um projeto de país. Uma coisa que nos envolva, um ideal comum. Seria vital para a nossa sobrevivência como grupo.
Leitores escritores
Scliar
Realmente existe uma espécie de adição ao texto. O Verissimo tem um historia muito boa, a de um cara que era uma autoridade em vinhos. Davam um vinho para ele e ele falava: “Esse vinho é feito da uva tal, plantada no ano tal…” Um dia perguntaram a ele qual era o seu vinho preferido. E ele: “Eu não bebo”. Todos ficaram surpresos. Como é que a maior autoridade não bebia? E ele contou como virou a maior autoridade sobre vinhos. Contou que era um preso político, que ficou preso muito tempo, e que seu maior sofrimento era não ter nada pra ler. Com pena dele, o carcereiro lhe deu um livro, um manual sobre vinhos. Ele leu tantas vezes aquele livro que acabou sabendo tudo sobre vinhos. Leitores compulsivos são assim: não podem parar de ler. Eu me enquadro nessa categoria. Uma vez, eu estava no Japão e não tinha levado livro nenhum. E tudo estava escrito em japonês. A perversidade desse povo: escrever tudo em japonês! Até que finalmente consegui encontrar livros em inglês e ler alguma coisa. A gente lê sem parar, no banheiro, na cama, no avião e tal. Eu leio anarquicamente, leio tudo o que me cai nas mãos. Parto do princípio de que o acaso nos ajuda a descobrir coisas surpreendentes. Eu leio tudo. Acho que quem não lê não pode escrever. A gente se torna escritor porque a gente é, em primeiro lugar, leitor.