🔓 O país das maravilhas

Conto inédito de Paulliny Tort
Ilustração: Marcelo Frazão
01/04/2023

Can I touch him? A americana de olhos azuis e cabelo amarfanhado pergunta antes de intentar com as mãos, se agachando, se aproximando. Sorina abaixa e levanta a cabeça coberta pelo lenço verde-pálido, autoriza. Não entende a língua da americana, apenas sabe o que ela quer. Dou um pulo à frente, para fora desse tecido que é todo meu pasto, mas Sorina me detém pela coleira. Ah, sempre me esqueço da desgraçada coleira que me enlaça pelo peito e me mantém humilhado como um cachorro. De relance, vejo sapatos de salto passarem apressados. Galochas, botas, tênis, pernas que se entrecruzam costurando a cidade. As pessoas são agulhas de bordar sobre uma colcha de retalhos feita de pedra, concreto e asfalto. Depois da calçada, correm faróis acesos à luz do dia, motocicletas, bicicletas, carros. Choveu pela manhã, os pneus chiam na pista, um depois do outro, um depois do outro, um depois do outro, até um sinal fechar. Reconheço um bueiro no fim da faixa de pedestres. Há tempos quero escapar por um bueiro. Antes que eu possa tomar novo impulso, Sorina me puxa para perto de si, me imobiliza. Na ponte, um casal de chineses vestidos de branco posa para um fotógrafo. A mulher pesadamente maquiada, com uma estola de pelúcia sobre os ombros, e o homem enforcado numa gravata azul-bebê. Ridículos, os dois. Todos vocês são ridículos! É o que grito do meu silêncio, sacudindo os pés, esquecido da americana e perturbado por esses outros transeuntes. Quem dera pudesse mandar essa gente à merda. Quem dera Sorina o fizesse, porque também ela, velha, cansada, sentada num pedaço de pano, desperta uma curiosidade perversa e os turistas só não lhe passam a mão como fazem comigo porque têm nojo. Se até as pessoas têm nojo das pessoas, por que eu não teria? Intento uma última escapada, mas a coleira me agarra firme. Não há remédio. Sem me resignar, porque não há um pingo de aceitação nessa derrota, desisto de fugir por enquanto. A americana me devora. Enfia as garras por baixo do meu casaquinho de lã (Sorina o tricotou) e me assanha, me apalpa. Repuxa as minhas orelhas para trás, vendo nesses gestos um carinho que eu retribuiria à bala, se pudesse. Mordo ou não mordo? Encolhido sob seus dedos armados de anéis, sinto um perfume forte demais e espirro.

Satisfeita, a americana atira uma moeda de um euro num copinho de papel que Sorina mantém ali, sempre com pequenos valores, para estimular a clientela. Quando a moeda bate contra o fundo do copo, os sinos da Notre Dame soam, espantando as aves na borda do rio. Depois que a americana se afasta, Sorina mete os dedos no copo, cata a moeda e guarda no bolso. Deixa apenas os valores miúdos mesmo, pois é preciso estimular sem parecer que goza de boa situação. Bebe um gole d’água, da garrafa que mantém por perto, enche meu pote e pega um punhadinho de ração na bolsa. Junta esse punhadinho ao capim de trigo e à cenoura que faz questão de manter à vista, sobre o tecido. Ajeita a placa em que pede dinheiro para me alimentar, um pedaço de papelão em que se lê a mesma mensagem em quatro idiomas distintos, incluindo o romeno, único que ela entende. A placa é decorada com dois ícones bizantinos. Embora não costumem se apiedar da velha, que é bigoduda e muito enrugada, se apiedam de mim, então, para Sorina, é um negócio razoável. Uma vez, ela disse para Ion que isso nunca aconteceria no país deles, alguém oferecer dinheiro a uma pessoa só porque ela está sentada no chão com um coelho, mas aqui parece dar certo. Paris é muito diferente de Bucareste, de Rahova, a França é muito diferente da Romênia, a velha costuma repetir em casa durante a contagem dos cobres. Agora assoa o nariz num lenço de pano, porque está resfriada. Logo aparecem um brasileiro, uma italiana, uma japonesa, e todos me perturbam, me esfalfam; em troca disso, largam suas moedinhas no cofre de Sorina. Os franceses não, os franceses, graças a deus, nunca param. Coelho, para eles, só tem graça na panela. Lapin sauté chasseur, lapin à la moutarde, lapin sauté chasseur à la cocote, coisas assim. Se temos pelos brancos e olhos vermelhos, é irrelevante.

Pelo fim da tarde, com os bolsos pesados, Sorina se levanta. Já recolheu meus comes e bebes e nossa garrafa. O copo de papel que usou para as moedas, atira-o longe, no chão. Como tantos outros, esse copo acabará nas profundezas do Sena. Sem capricho, dobra o pedaço de pano que usamos como tapete, as minhas fezes caem e pipocam na calçada. Franze o nariz ao guardar numa sacola o tecido dobrado (detesta o cheiro do meu mijo). Organizada essa bagagem modesta, Sorina recolhe a mim. Vou embaixo do braço, onde me aqueço na umidade flácida de sua axila. Notre Dame canta os sinos de suas torres outra vez. As pessoas se agitam nas mesas dos cafés, nas barracas de antiguidades, nos automóveis. Vejo aves, vejo cães. Coelhos é que não há, exceto talvez os que jazem nus e sem cabeça nos freezers dos restaurantes. Passamos pela Fontaine Saint-Michel, onde os turistas, onde os pútridos turistas fotografam e ignoram as sacolas e os papéis que boiam na água. No caminho para a estação, ela entra em uma padaria para comprar uma baguete. A padaria tem um cheiro morno, fermentado, de açúcar, o melhor cheiro da França, mas não há nada aqui para mim. Sorina usa as três palavras em francês que conhece, paga e sai. Quando chegamos ao Odeón, antes de descer a escadaria, ela me guarda na bolsa. Então não vejo mais nada.

No trem, sentada em um banco, é que ela coloca minha cabeça para fora. Há homens e mulheres de pé, pendurados nas barras do vagão como bichos de abatedouro. Inspiro esse ar de lotação máxima e, como sempre, olhos se voltam para mim. Há quem sorria, há quem reclame, há quem permaneça indiferente, mas se voltam para mim, depois se distraem de novo e se perdem na escuridão solitária dos túneis. Trocamos de trem duas vezes e essa cena mais ou menos se repete. No último que tomamos, há uma criança, uma menina muçulmana sem os dentes da frente, e ela se encanta com minha presença. A menina pede para me fazer carinho e, embora eu tenha resistido inicialmente, o afago dela é dócil, fácil. Acabo adormecendo como há muito não adormecia. Sonho com o que conheço de longe, a partir da distância infinita dos braços da velha: a grama fresca do Jardin du Luxembourg na primavera, as árvores desfolhadas do Jardin des Tuileries no outono. Sorina se levanta, eu acordo — o trem está completamente vazio. Só então me lembro que estamos a caminho de casa. Memória mais curta, a minha! Todos os dias o mesmo esquecimento, todos os dias a mesma surpresa desagradável. Os vagões voam nos trilhos, enquanto nos observamos no reflexo das janelas. O som do ferro contra ferro aqui parece mais alto.

No apartamento em que vivemos, cabem dois colchões, um fogareiro, três ou quatro caixas de papelão e uma gaiola de ferro. Não há janelas, banheiro e calefação. Por isso, Ion, neto de Sorina, Ion, que vive de vender miniaturas chinesas da torre Eiffel no Trocadéro e cadeados na Pont des Arts, Ion, que vez ou outra foge da polícia com suas muambas, Ion diz preferir a rua. Eu também preferiria. Pelo menos, cá fora vejo o sol, a neve, o rio. Ou mesmo o interior desse túnel sinistro. No apartamento, tudo o que vejo é Sorina. Ela e suas missas imaginárias, seus rosários, seus mistérios bizantinos, seus dentes pouquíssimos, contados. É muito religiosa. Aos domingos e nos dias santos, não trabalha. Passa prostrada diante dos ícones que colou na parede, rezando em romeno. Em tudo, gruda esses ícones, umas figurinhas autocolantes em que figuram uma virgem Maria e um Cristo, ambos sérios, coloridos em tristes tons de sépia. Por ela me considerar uma ferramenta de trabalho, acabo esquecido na gaiola nesses dias, o que é pior que ser exposto aos turistas, pois, preso tanto tempo num espaço sem limpeza, minha comida se mistura às fezes e tenho experiências bastante desagradáveis. Sem falar no ardor do mijo. Mas, para Sorina, tanto faz. Ela só reza e reza. Às vezes me pergunto por que tipo de milagre roga tanto. Como deus a salvaria? A porta do trem se abre, meu peito dispara, tento saltar da bolsa, mas sou empurrado para dentro. De novo, a escuridão.

O bairro em que descemos é diferente dos arrondissements de Paris. Aqui não há turistas. Franceses, muito raros, só um ou outro. Mesmo de dentro da bolsa, sem ver nada, dá para notar a diferença. Em vez de cheiro de croissant, cheiro de kebab. Em vez de francês, dialetos, romani, árabe. Até o jeito que ela caminha aqui é diferente, mais relaxado, como se não tivesse tanta vergonha de ser uma estrangeira de pernas tortas com um lenço amarrado na cabeça. Nosso apartamento fica na sobreloja de uma tabacaria cujo dono é um franco-argelino chamado Said. Por causa da fumaça dos clientes, uma bruma adocicada feita de vários tabacos, sempre sei quando estamos chegando, mas hoje ouço a voz de Said antes de sentir esse cheiro. Forço os pés contra as tralhas que a velha carrega na bolsa e desponto a cabeça para fora. Vejo Ion de pé na calçada, os dois colchões, as caixas, o fogareiro, a gaiola. Said repete uma única frase em romeno: nicio plată, nici o afacere, sem pagamento, sem acordo. E volta para a tabacaria, desinteressado das moedas e das súplicas de Sorina. As lágrimas dela batem nas minhas orelhas, que estremecem e as espirram longe.

Escureceu. A velha me enfia na gaiola, que permanece na calçada junto ao restante da mobília. Ela e Ion conversam sentados no meio-fio sobre as possibilidades que restam. Como quem evita, mas não encontra outra solução, Ion sugere timidamente tentarem algo na Boulevard Ney. Sorina eriça os bigodes, balança a cabeça. De jeito nenhum viverá nos trilhos com os ciganos, no meio do lixo e dos ratos. Deus intercederá por eles, ela diz e aponta para o céu. O neto continua matutando, com o queixo apoiado nos joelhos. Quem sabe em Aubervilliers consigam vaga ao menos para passar as próximas noites? Sorina faz muxoxo, não gosta de uma ideia nem de outra. E continuamos pela calçada. Tanto os gatos quanto os ratos já saíram das tocas, se esgueiram às sombras noturnas nas fachadas dos prédios. Guincham, miam, brigam, há bastante coisa acontecendo entre eles. Confesso que a ideia de fugir agora me dá uma certa paúra, mas amanhã, se ainda estivermos pelas ruas, amanhã quando for dia e abrirem minha gaiola para atirar um pedaço de cenoura, amanhã pularei com tanta força que ninguém me deterá. A noite esfria, as estrelas prescrevem. As lojas, inclusive a tabacaria de Said, descem pesadas mantas de ferro. Sorina e Ion roem a baguete pura que esperavam comer com sopa. Fora os dois, não vejo mais ninguém. Ela assoa o nariz no lenço, não sei se pelo resfriado ou pelo choro. No futuro, quando eu estiver longe, talvez pense em Sorina sozinha na Pont Saint-Michel, com seu copo de moedas e esse focinho molhado. Talvez ainda ouça o murmúrio de suas preces. Mas não sentirei falta dela. De Ion, muito menos. E não me importarei com o destino deles, pois amanhã serei enfim o que sou. De dentro de uma das caixas, Sorina toma os ícones de papel rasgados, arrancados às pressas da parede. Reza, como de costume. Na sarjeta, ela também cumpre essas obrigações, quiçá com mais fervor que as beatas perfumadas nas igrejas. Considero positivo que reze, que se distraia. Quem sabe depois deus não arranje para Sorina outro coelho? Isso quando eu estiver distante, quando eu tiver aprendido a ser selvagem, como esses gatos e esses ratos que correndo rebrilham na penumbra. Quem sabe deus não a transforme, ela própria, num coelho branco? Somos animais de fuga, cabemos em frestas, escapamos por buracos, encolhemos, crescemos, pode ser uma vantagem. Bom, mas isso não é problema meu. Estarei longe, muito longe. Isso é entre Sorina e deus.

Paulliny Tort

Nasceu em Brasília (DF). É jornalista e mestre em Comunicação e Sociedade pela UnB. Erva brava (Fósforo), seu primeiro livro de contos, foi vencedor do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e finalista do Jabuti 2022. Estreou na literatura em 2016, com o romance Allegro ma non troppo (Oito e Meio), semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura.

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