A arte rara de inventar

Contos de Francisco de Morais Mendes surpreendem pela imprevisibilidade e pela força, apesar da qualidade irregular do conjunto
Francisco de Morais Mendes, autor de “Onde terminam os dias”
01/04/2012

A questão dramática de toda coletânea é que comparações são sempre inevitáveis. Diferente de um romance, onde se lê a obra de cabo a rabo, sem que os capítulos sejam tomados per si, a relativização sempre leva a um ranking de melhores e piores, o que conduz — em todas as circunstâncias — necessariamente a uma injustiça.

Injustiça porque se houver um ou dois contos excepcionais, espetaculares em uma coletânea, estes serão tomados por paradigma, e à luz deles todos os demais serão considerados.

O lado bom de uma coletânea é que os contos julgados melhores ou piores mudarão de acordo com cada leitor, de modo que se relativizam mais uma vez, e assim a justiça pode voltar a reinar, equilibrando a relação interna entre os contos com a relação externa deles com o leitor-paradigma.

A partir dessas considerações prévias, é que inicio a tecer comentários sobre o ótimo Onde terminam os dias, de Francisco de Morais Mendes, ou “Chico” Mendes, como é conhecido em sua terra natal. A trajetória do mineiro de Belo Horizonte já prometia uma boa leitura. Autor premiado, semifinalista do Portugal Telecom de 2003 com o livro A razão selvagem, Chico integra uma safra de autores reunidos sob o Coletivo 21, grupo de escritores que se reuniram em maio de 2011 em um “fórum permanente de troca de idéias e busca de formas complementares” para se aproximarem dos leitores e das possibilidades do mercado.

Iniciando a leitura, no que se refere à forma dos contos, é preciso dizer que Francisco gosta do modo irregular. Há contos grandes, misturados com alguns bem pequenos, subvertendo a conhecida receita de bolo de que um conto bom precisa ter de três a cinco páginas, nem mais nem menos.

Para além da questão estética, no conteúdo os contos são, sem exceção, de uma inventividade rara, de modo que em nenhum momento o leitor tropeça em algum clichê. Ao contrário, Francisco foge do óbvio, corre do fácil. Muito embora o autor lance mão de espaços conhecidos do cotidiano — o escritório, o hotel, o apartamento, o restaurante, o interior do carro, a escola — e de personagens sempre urbanos — o procurador aposentado, a motorista, o alfaiate, o mecânico, o gerente de hotel —, a montagem das tramas é feita de modo a permitir que o leitor assista estupefato a um desenrolar detalhado de acontecimentos impensáveis, o mundo girando em um caleidoscópio infinito de possibilidades.

Para além da expectativa que ronda as histórias, aquela curiosidade deliciosa de saber o que vai acontecer no final, o fio que as une perpassa por altas doses de angústia, constatações dramáticas, circunstâncias absurdas e, especialmente, por uma total imprevisibilidade. Francisco é bom na arte de inventar.

Pétala por pétala
Levando Onde terminam os dias como um convite para uma “caça ao tesouro” literário, veremos que o autor não decepciona. Em todos os contos, a idéia dos dias terminando estará lá, esperando o olhar cuidadoso do leitor, e chega a ser até relativamente fácil, para quem procura com atenção, encontrar em cada um deles a resposta para essa proposição inicial.

Como exemplos mais evidentes, em Pitanga verde o dia termina em um mundo que dá voltas a cada dia, “de cara para uma parede escura onde de vez em quando bate a luz do farol de um carro”; em Vanessa espera, o dia termina quando giramos a cadeira e descobrimos que aquele alguém tão desejado já partiu, não esperou e se foi, deixando a porta entreaberta; em Mundo louco, o dia termina como um cão carente, arranhando a porta e ganindo baixinho; e por aí em diante.

Se em todos os contos, olhando com cuidado, podemos observar nas fendas do texto a resposta para a proposição do título, também neles podemos ver algo do ofício da escrita ou da arte de criar e (re)inventar realidades. O menino de Pitanga verde precisa escrever redações para o colégio e diz que vai “ligando palavras sem sentido porque (…) era bom em juntar palavras sem sentido e montar histórias, ainda mais que (…) tinha as ferramentas da imaginação”. Por sua vez, o protagonista de Vanessa espera revela que não só escreve, mas mergulha “na escrita como quem se atira de um despenhadeiro”.

Francisco distribui, em seus contos, reflexões preciosas sobre as agruras do escritor e seu cotidiano, além de constatações sinceras sobre o homem em seus múltiplos relacionamentos. Também não deixa de mostrar sua maestria no exercício metalingüístico. Um bom exemplo dessa criação superposta é Mitre no Hotel Júpiter. Nesse conto genial, o próprio gerente do hotel é escritor e, muito embora confesse tenha participado de oficinas de escrita criativa e se considere um escritor pífio, conta o episódio de Diogo Mitre, um hóspede em particular que lhe segreda uma história, também inventada. Diogo Mitre também escreve — aliás, tecla — com uma desconhecida na internet, e essa mulher também inventa uma vida diversa da revelada, em um novelo de mentiras sem fim, numa incrível superposição de camadas narrativas sem que, contudo, isso atrapalhe minimamente o sentido da leitura. Ao contrário, além de divertir o leitor menos atento, leva uma flor a ser cuidadosamente desfolhada, pétala por pétala, pelo leitor mais voraz. Aliás, também neste conto, o autor exibe a difícil arte de criar uma história com dois personagens principais de igual importância: afinal, de quem é a história? Daquele que narra ou daquele que é objeto da narrativa?

Divertindo-se com a condição de inventor, Francisco descreve um personagem que, de tão criativo, inventa até por encomenda, a pedido do amigo que lhe inveja sua companhia imaginária: “Sabe o que eu vou fazer pra você esquecer a minha mulher? Vou inventar uma pra você. Vai escutando”. Chico inventa também um homem que, de se fantasiar de cachorro, acaba agindo como tal. Inventa alguém que inventa ser outro, para ver se o destino de mudar de pele pode ser alterado. Será que o escritor, ao mudar de pele e vestir seu personagem, também altera seu próprio destino? Francisco é mesmo bom no que escreve, no que revela, no que esconde, em cada diálogo, em cada volta que dá antes que o dia termine.

Voltando aos dias mais soturnos do autor, há os que terminam como em Os bonecos, feito um caminhão, ligando o motor e partindo, se distanciando, levando para longe nossos afetos, indo estacionar em outras paisagens e trazendo algumas sombras para umedecer os olhos. Há ainda os que terminam “Cansados, falando das poucas jogadas, da mixuruquice do jogo”, ou até mesmo alguns dias, infernais — e que chegam a ser densos, palpáveis —, quando um homem forte, um pai de família, um verdadeiro Davi, se senta à cadeira fechando as pálpebras e inclinando eternamente sua cabeça no encosto da poltrona.

Os dias do escritor talvez também terminem assim, um tanto nebulosos, com bordas mal delimitadas, olhando para um teto branco e escuro, ainda que algumas vezes iluminado por fachos breves de luz. Ou, com alguma sorte, os dias terminariam com mulheres desejadas à sua nuca, histórias perversas rondando seus ouvidos e os fantasmas da própria mãe a persegui-lo.

Contos ofuscados
Nessas coletâneas de dias, lembro que, como dito antes, há os excepcionais e os que, à sua luz, se apequenam. Assim como na vida, há dias esplêndidos, outros péssimos e, naquela área cinza e indefinida, a maior parte deles: os dias comuns. Desse modo é que, diante da genialidade de alguns dos contos de Francisco, há outros poucos — mais comuns — que minguam, tristemente ofuscados pela força narrativa dos demais.

Começo pela parte boa. Os contos em que o autor invoca personagens da infância são os que mais se destacam, sendo Pitanga verde e A luta do ano de rara beleza e intensidade. Nesses contos ímpares, vestindo o personagem criança como ninguém, o humor se une de forma simbiótica com as constatações cruéis do abandono, da loucura, da superstição, do acaso, com sentimentos que, de tão reais, fazem com que a narrativa pareça a exata representação da realidade, transportando integralmente o leitor para outra dimensão de tempo e espaço, em um truque de mágica digno de cinema. Nesses contos, Francisco faz o leitor rir às gargalhadas e sentir o peito contorcer-se, solapado de uma realidade tão áspera que chega a dar um nó no estômago, faz suar para dentro, traz um choro quase mudo e faz sentir o mundo dando várias voltas em um só dia, a cada parágrafo.

Abro um parêntese para a bela imagem do estudante que se espanta com o mundo dando voltas a cada dia, porque essa não deixa de ser a grande verdade para a qual ninguém se lembra de olhar: o mundo dá mesmo — para todos que vivem nele — uma volta inteira a cada dia, e isso fica totalmente esquecido pelos adultos que vêem nesse mesmo mundo uma linha temporal contínua, linear, ininterrupta. Acontece que justamente essa última noção é que é ficção, absurdo, impossibilidade: vemos uma linha reta enquanto o mundo está dando voltas, e é preciso que um mestre venha nos abrir os olhos.

Os contos mais amargos não falam de lembranças ou de histórias absurdas, mas apresentam a própria morte com uma verdade tão intensa que criam um impacto de angústia no leitor, quase como um conto de terror, desses que dão pesadelos à noite. Assim acontece com Um cavalo e O sumiço do gigante verde. No primeiro, a morte de um animal belo e inocente é um retrato de algo extremamente brutal e assustador. No segundo, a história é de um mundo que entra em colapso, de um sistema que se desarticula com a falta de uma peça, de um gigante verde que desaparece e, junto com ele, uma vida de princesa que desmorona — a princesa que vivia reclamando ter sido raptada pelo gigante.

Fecho o texto ciente da injustiça. Os contos mais comuns são, retirados do critério comparativo, ainda assim excelentes. Em O tempo dos sinais e Para inventar Leila, por mais que executados com o melhor rigor da técnica das narrativas breves, apresentam bons exemplos de narração reflexiva, enquanto A moça do andar de baixo é um conto totalmente construído em diálogo, sem espaço para a voz interna do narrador ou de um personagem.

Felizmente, eu não sou a única leitora — felizmente, a justiça poderá ser restaurada a partir dos olhos alheios.

Onde terminam os dias
Francisco de Morais Mendes
7Letras
148 págs.
Francisco de Morais Mendes
Nasceu em Belo Horizonte, em 1956. Formou-se em jornalismo e cursou mestrado em Literatura Brasileira, na Faculdade de Letras da UFMG. Já publicou os livros de contos Escreva, querida (Mazza, 1996) e A razão selvagem (Ciência do Acidente, 2003). O primeiro ganhou os prêmios Cidade de Belo Horizonte, da Prefeitura, e Minas de Cultura, do governo do Estado. A razão selvagem foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom em 2003. Resenhou livros para os jornais Correio Braziliense e O Tempo e publicou contos no Rascunho. Atualmente, trabalha como escritor, colaborador, e atua como jornalista da Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

Rascunho