O Google existe pra gente que não sabe o que é uma mula. Antigamente enciclopédias davam conta. Outras vezes pesquisei e soube, mas esqueço. Isso é comum entre as coisas com as quais não lido sempre. Não reconheceria uma mula, nem que acordasse e a encontrasse tomando café na cozinha, um dia (“bom dia, quem é você?” — pergunta que ouviria de volta ou antes). Essa ignorância ou burrice me foi salva pelo Google, que mostrou explicações da mula. Mas antes de tudo fui salvo pela poesia, que me provocou a necessidade de saber do que não me surpreende na cozinha, nem vive no jardim aqui de casa.
Mulas são animais híbridos, a filha da égua com o jumento ou da jumenta com o cavalo, que se acasalam de um modo geralmente forçado pelo humano. Onde brota poesia disso? Da violência dessa coisa, justamente. E da transformação, sempre.
A poeta Marília Kosby usou como epígrafes das sete partes do livro Genealogia das mulas trechos de um texto do folclorista, especializado na cultura gaúcha, Luiz Carlos Barbosa Lessa — outra ignorância da qual o Google me salvou. Esse texto, Receita para fazer mulas, é duro à beça. Revela, não sei dizer se naturalizada ou criticamente, a violência do processo de criação desses animais híbridos.
Tomei nessa leitura o hibridismo como uma das chaves de leitura dos poemas de Kosby.
Potencial transformador
Na forma e no conteúdo, os poemas trazem versos e estrofes que ora criam imagens e jeitos de dizer o mundo mais oníricos e não usuais, ora metem dedos em feridas, denunciam, desabafam de forma mais direta, como também é característico da poesia mais publicada e recitada na atualidade. Em nenhum sentido, a poeta abre mão da criação de ritmo dos versos e da escolha cuidadosa das palavras, para que isso aconteça. Não entendo nada de mulas. Nem de poesia. Quem entende de poesia, afinal, se poesia não é para se entender? Mas sei o suficiente para intuir que isso que ela faz não é fácil, não é gratuito, sem querer. Pelo contrário, é exigente e proporciona uma leitura de potencial transformador o tempo todo. “Um certo modo de ver”, não é isso?
Estão nos textos as opressões que combatemos, todas, do machismo, do racismo, do elitismo, postos de maneira inaugural, e essa é a característica que, para este resenhista, define o que se pode apontar como boa poesia. É mais do que o gosto-não-gosto, mas uma característica mais pro científico, pro fato. Um traço, uma busca de dizer o mundo do modo mais próprio e, portanto, novo, se a gente parte do princípio que cada pessoa, cada ser, é absolutamente única e infinita.
“Tombou uma árvore/ sobre a estrada atrás de mim/ muitas voltas do mundo atrás”. Há de se escrever muito verso na vida para alcançar alguns resultados assim, a concisão imensa de um significado tão largo. E simples, não? Nenhum palavrão nessa estrofe inicial do sexto poema do livro.
As mulas entram aqui e ali, mas os poemas não giram diretamente em torno desses animais. Os temas são variados. Há versos com combinações de palavras como “civilização furreca” e “admoestação alfabetizadora”, ou seja, o hibridismo de registros da língua. E no todo, o sentido da violência imposta pelo sistema sentadaço no ouro, no poder nuclear e na propriedade. Mulas, historicamente abusadas no trabalho pesado, impedidas de procriar, de criar. Mulas e burros, que a gente usa pra xingar.
Os poemas não são grandes, mas se expandem pelo o que a poeta deseja exprimir e comunicar também. Mas o que me salta mais fortemente é sua concisão, que emerge como vulcões em estrofes.
Não é a regra do livro, nem por ser um dos poucos poemas com título nem por ser curtíssimo: dois versos. Mas… “cólera/ a água pode acabar/ com tudo”. A concisão, mesmo quando num poema grande que empilha versos ou estrofes de ampla significação compactada, é o grande lance da poesia como gênero: faz o entender e o sentir se fundirem, implodirem e explodirem ao mesmo tempo, não há química e física que explique em fórmula.
Outra: este exemplo, além de mais uma mostra da tal concisão que me admira, revela que a poeta é implacável consigo própria, uma indicação de que não simplesmente aponta o mundo “errado” como se estivesse fora dele: “Fazer um livro/ esganar algumas árvores com/ as próprias mãos”. Vou fabricar plaquinhas e pregar isto na porta de cada casa editorial e na testa de cada autor e autora desse mundo.
A coleção
A Peirópolis nos mandou além do livro pedido, Genealogia das mulas, a coleção toda da qual faz parte. Foi gentil, mas leio isso com a intenção da própria criação dessa série de livros, exclusivamente de autoras contemporâneas, identidade visual bem marcante, coordenada pela também poeta e importante pensadora brasileira Ana Elisa Ribeiro (cronista deste Rascunho). É preciso, por honestidade, não esconder que sou muito fã dela, das suas produções acadêmicas e literárias, no mínimo.
Há de não se entender nada do mercado editorial para não perceber que há uma coragem admirável da Peirópolis em rodar mil exemplares de cada um dos oito títulos que fazem parte da coleção Biblioteca Madrinha Lua, inspirada na poeta Henriqueta Lisboa. É livro pra caramba, pra armazenar, distribuir, necessariamente vender pra poder viver e publicar outros livros.
Marília Kosby está ao lado, na coleção, de Mariana Ianelli (cronista do Rascunho), Adriane Garcia, Fernanda Bastos, Amanda Ribeiro, Regina Azevedo, Líria Porto e Lubi Prates. É mais um espaço importante no meio editorial brasileiro dedicado à escrita das mulheres, como têm feito o selo Auroras, a Primavera Editorial, a Absurtos, entre algumas outras casas, citando também a livraria dedicada à autoria feminina, a Gato Sem Rabo, em São Paulo. Tudo parte de um movimento de construção & desconstrução, até que as injustiças sociais sejam ruínas.