Cinzas

Conto de João Gabriel de Lima
01/04/2012

Para Roberto, que deu a idéia.

A fotografia tem dois planos. No primeiro estão Paulo, Antonia e Dan. No segundo, Victor, Lucas, Tiago, Luísa e Joana.

O ano é 2012. O dia é 19 de fevereiro, domingo de carnaval. A cidade é o Rio de Janeiro.

Paulo está de bermuda, camiseta regata e, no pé esquerdo, calça um chinelo de dedo. Mostra um certo desleixo. Numa foto em que todos se produzem, com certo cuidado, para um bloco de carnaval, seu único adereço é um chapéu alaranjado, em forma de chama crepitante. A barba por fazer contribui para a figura largada. Paulo segura uma mangueira. Da mão esquerda pende o esguicho, do qual não sai nenhuma gota de água. A direita está sobre a braguilha da bermuda. Ele ri. Talvez da desilusão de todos, que gostariam de beber água num dia quente como costumam ser os de carnaval. Talvez da piada óbvia, a mangueira mole e seca imitando um sexo flácido.

Ao lado de Paulo, com a mão enluvada apoiada em seu ombro, Antonia ri da mesma desilusão ou da mesma piada. Ela está claramente mais adiantada no trabalho de paramentar-se para o carnaval — ou talvez tenha investido mais tempo e energia nisso. Antonia usa um vestido brilhante, colares de contas, e tem na mão esquerda uma piteira. O conjunto dá a ela um ar de melindrosa da primeira metade do século 20, e ela parece ter entrado no personagem — mostra isso quando leva a mão à boca aberta, num gesto coreograficamente escandalizado. A perna esquerda dobrada ajuda no gestual. Ela usa ainda sandálias de salto alto e fino, máscara de comédia italiana e uma pluma escura no cabelo.

Mais à direita, Dan usa um vestido de noite escuro, uma luva que pode ser o par da luva de Antonia, e peruca crespa. Ele está claramente mais preocupado com a fantasia do que Paulo, e claramente mais atrasado na indumentária do que Antonia. O vestido ainda está aberto, deixando entrever uma cueca branca, e faltam os sapatos para compor o personagem da mulher escrachadamente fatal. Dificilmente Paulo irá acrescentar algum outro elemento ao seu look casual. Já a fantasia de Dan não ficará completa sem um sapato de salto alto, e nota-se essa falta.

A fundo, Victor usa um quimono japonês. O rosto pálido, com uma leve camada de maquiagem branca, e o batom cuidadosamente aplicado na parte central da boca reforçam a fantasia de gueixa. A placidez zen evocada pela indumentária oriental contrasta com a expressão de seu rosto, que é desafiadora, e com o gesto que faz com a mão direita, cujo significado, perdido no passado, eu desconheço. Mas que é provavelmente obsceno, o que faz de Victor o personagem com mais atitude na foto.

Ao seu lado está Lucas. Não dá para saber se sua expressão é desafiadora ou plácida, pois ele a esconde sob uma máscara de zebra. Ela combina perfeitamente com uma gravata do mesmo padrão, sugerindo que as duas peças foram compradas na mesma loja, provavelmente as Casas Turuna, referência carnavalesca na época. Lucas usa uma camiseta amarela, provavelmente de futebol. Existe um espelho no canto superior esquerdo da foto, que mostra que a manga da camiseta acaba numa faixa colorida, detalhe típico de um uniforme esportivo. O espelho mostra também que o cabelo de Lucas é grisalho. Ele parece ser, assim, ligeiramente mais velho do que os outros. Mais velho e menos ansioso. Sua postura é a de quem já terminou o trabalho de fantasiar-se, afastou-se da mesa e deixou o espaço livre para os que ainda estão na função.

Tiago, que está ao lado dele, talvez já tenha chegado de fantasia. Seu costume é inteiriço, e não uma composição de diferentes elementos, como as roupas de Antonia e Dan. A única peça de roupa inclui camisa e capuz, com um símbolo à altura do peito que parece uma coroa. Em Antonia, Victor e Lucas identificamos, apesar da precariedade e incompletude dos trajes, a melindrosa, a gueixa e a zebra. A fantasia de Tiago, ao contrário, não nos remete a nada. Tem uma vaga aura religiosa — um cruzado medieval? Um integrante da Ku Klux Klan? Tiago tem barba rala e aperta um lábio contra o outro, como se não se sentisse muito à vontade na cena. Óculos engraçados quebram um pouco a seriedade do conjunto formado por folião e fantasia. Um improvável quadro da Mona Lisa com uma cabeça de pato, ao lado do rosto de Tiago, também ajuda a conferir um ar divertido a esse pedaço da foto.

Também não dá para identificar a fantasia de Luísa. Não porque seja algo indefinido, como Tiago, mas porque ela é a que está mais atrasada no trabalho de paramentar-se para o bloco. Luísa usa um vestido curto sem alças, do tipo tomara-que-caia. Entre os adereços espalhados pela cena, ela pode escolher vários para compor a fantasia. Existem colares de havaiana no espaldar da cadeira à sua direita na foto. Uma máscara de Hitler — ou talvez de um palhaço de bigode — pende da fantasia de Dan. O único adereço que Luísa escolheu até o momento da foto, no entanto, foi um lenço discreto de cabelo. Cabelo que talvez ela tenha acabado de arrumar, pois traz um secador nas mãos. Vêem-se também vestígios de pintura em sua face. No conjunto, o que se destaca é o sorriso grande, desses que abrem uma caverna entre as arcadas dentárias. O sorriso no qual me viciei, aos poucos, ao longo da vida.

Joana, ao lado de Luísa, não sorri. Seu rosto é sério e sereno, e nele se destacam as sobrancelhas grossas e unidas — não se sabe se naturalmente ou por efeito de maquiagem. A serenidade séria do rosto contrasta com uma certa tensão no corpo, já que Joana empurra um braço contra o outro, numa posição clássica de alongamento para tríceps e peitoral. Entre as mãos ela espreme os galhos de um buquê artificial. Sua vestimenta também se compõe de um colar de contas enormes e várias pulseiras, o que dá ao conjunto um ar vagamente hippie. Ao lado da cadeira vê-se seu pé esquerdo, que calça um chinelo de dedo, e um pedaço de sua canela, que aparece através de uma fenda discreta abaixo do joelho.

O local da foto é uma esquina da Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Naquela época, as praças do Rio de Janeiro eram cercadas com grades, como a que aparece no fundo da foto. Paulo, Antonia, Dan, Victor, Lucas, Tiago, Luísa e Joana se preparam para um evento de carnaval. Em alguns minutos pegarão o metrô para o centro da cidade. Rumo ao Cordão do Boitatá — um dos blocos onde, naquele tempo, os foliões saíam fantasiados. E se produziam, entre outras coisas, para ser fotografados pelos turistas.

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No dia da foto, Luísa se considera namorada de Paulo, mas ao mesmo tempo acha que ama Dan. Paulo não se considera namorado de ninguém, ainda mais no carnaval. Antonia namora Lucas, mas acha que ama Paulo. Joana namora Tiago mas não o ama — na verdade, não ama ninguém. Ela gostaria de namorar Paulo ou Victor, mas pode ser qualquer um do retrato, até o fotógrafo — o que ela quer mesmo é fazer parte da turma. Victor oscila entre dois interesses românticos: Joana e Dan.

Estou me adiantando. Voltemos aos fatos. E à foto.

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Embora haja vários casais na cena, eles não interagem no momento do clique. Com uma única exceção: Paulo e Antonia. Que nem eram um casal no dia da foto. Ou talvez fossem.

No dia 18 de fevereiro, sábado de carnaval, véspera da foto, Lucas resolveu ir ao desfile das escolas de samba do grupo de acesso. Lucas havia comprado arquibancadas para ele e para Antonia, sua namorada. Para os três dias — não apenas domingo e segunda, quando já então desfilavam as agremiações do grupo especial, mas também para o acesso no sábado. Lucas precisava ver todos os desfiles, pois fazia uma pesquisa sobre o assunto para a universidade onde dava aula. Antonia, bem menos interessada no tema do que Lucas, pediu alforria do primeiro dia, alegando que não agüentaria três noites seguidas sem dormir.

Despediu-se de Lucas com um beijinho. Começou a noite assistindo a séries americanas no DVD do pequeno apartamento no Leblon onde vivia sozinha. Embora em início de carreira, ela podia pagar o aluguel num bairro nobre, graças ao bom salário de jovem talento da redação publicitária. Enquanto Lucas assistia ao desfile, Antonia planejava passar o carnaval assistindo a uma maratona de séries. Um “House” e dois “Mad Men” depois, no entanto, mudou de idéia. Achou melancólico ficar em casa no carnaval e resolveu sair para tomar um chope.

Vestiu uma camiseta e uma calça jeans e foi ao Jobi, bar famoso por fechar tarde — naquela época, a noite boêmia na Zona Sul carioca terminava cedo. Não combinou nada com eventuais amigas ou amigos. No Rio aristocrático daquele tempo, todos os bem-nascidos freqüentavam os mesmos bares. Certamente encontraria alguém. E encontrou Paulo, um antigo colega de faculdade. Perguntou por Luísa, ele desconversou, ela entendeu que era carnaval e mudou de assunto. Beberam várias tulipas do chope leve e geladíssimo. Comeram lula ao vinagrete. Beberam mais. Comeram mais. Antonia falou sobre as intrigas no mundo da publicidade, os desafios na agência, as noitadas trabalhando, os uísques, as drogas, as viagens, as reuniões com clientes, e de como amava tudo aquilo. Paulo, que tinha se formado no mesmo curso mas nunca havia trabalhado, ouvia com a atenção dos profissionais de sedução das mesas de bar — cuja conduta, até hoje, é parecida com a dos psicanalistas. Acrescida, claro, dos sorrisos nos momentos certos e das perguntas de encorajamento.

Bêbada, Antonia se lembrou de como contava as mesmas coisas para Lucas, e como tinha a sensação de que ele achava tudo fútil. Diante de Lucas, Antonia tinha freqüentemente a sensação de que sua conversa parecia rasa demais para um professor de antropologia da universidade. Já Paulo parecia impressionado, sorrindo nos momentos certos e encorajando-a com perguntas. Antonia falava e falava e falava, e enquanto falava seu cérebro colocava Paulo e Lucas em duas colunas paralelas de uma planilha. Tinham ambos o mesmo charme dos homens muito calmos. O silêncio de Lucas, no entanto, afetava um certo cinismo misturado com esnobismo, enquanto o de Paulo entregava o deslumbramento próprio dos ignorantes — mas de uma ignorância doce e despretensiosa. Achou divertido o fato de ele ainda morar com os pais, ela que costumava desprezar os que, ao contrário dela, acomodavam-se a rendas ou heranças que, afinal, nem eram suficientes para pagar um aluguel. Antonia mantinha seu próprio apartamento — e por isso decidiram que o final da noite seria na casa dela. Na cama, Antonia colocou o homem presente e o ausente na planilha e concluiu que os estilos de Paulo e Lucas eram completamente diferentes. A excitação pelo novo a entusiasmou no começo — mas, no final, sentiu falta da posição favorita com Lucas, que Paulo não conhecia. O repertório de Lucas era mais vasto, embora o de Paulo se compusesse de alguns números deliciosamente virtuosísticos.

Paulo, que sabia onde Lucas estava, despediu-se cavalheirescamente antes da última escola do grupo de acesso. Eles iriam se reencontrar pouco depois na Praça Nossa Senhora da Paz. Só no momento da foto Antonia teria certeza de que não havia perdido o amigo. Paulo continuava a ser o que fora sempre — discreto, tranqüilo, cavalheiro, calmo e piadista com a mangueira na mão. Não, não perdera o amigo. Ganharia um namorado?

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No momento em que Antonia e Paulo voltam para a cena da foto, é útil pensar em quem está do outro lado da câmera. O fotógrafo é conhecido de todos, ou quase todos — e não um dos milhares de colecionadores de instantâneos de carnaval que, naquela época, caçavam nos blocos, com seus celulares, imagens coloridas para enfeitar seus perfis nas antigas redes sociais. Isso fica claro quando se examina a cena. Se o fotógrafo fosse desconhecido, ninguém olharia para a câmera, ou talvez alguns olhassem, mas com indiferença. O que acontece é o contrário disso. O fotógrafo como que interrompe a cena. Os que estão nela reagem à câmera. São reações diferentes — e, por elas, é possível saber o grau de envolvimento de cada um deles com o fotógrafo, e o grau de pertencimento de cada um à turma.

O pas de deux entre Paulo e Antonia não é apenas reflexo da noite de sexo que eles haviam tido horas antes. Trata-se de uma cena claramente armada para a foto, Paulo fazendo uma de suas famosas palhaçadas, e Antonia, cúmplice, posando de melindrosa escandalizada. Seu desequilíbrio proposital — o pé esquerdo no ar, o corpo se projetando para frente com a mão enluvada se apoiando no ombro de Paulo — é um indício de que ambos conhecem o fotógrafo e querem diverti-lo. Isso faz com que o canto esquerdo seja o de maior movimento no quadro do retrato.

No lado oposto, abaixo do bico do pato, Luísa recebe o fotógrafo com uma risada. O sorriso grande, já sabemos, é sua marca registrada. Mas ela não costuma entregá-lo assim, de mão-beijada. Do que Luísa ri? De ter sido surpreendida de secador de cabelo na mão, em pleno processo de fantasiar-se para o carnaval? De ter sido surpreendida com um vestido que deixa o colo de fora, usando o secador para tapar um eventual bico de seio rebelde ao decote do tomara-que-caia? De ver seus amigos surpreendidos ainda no making of da fantasia? Ou será que Luísa conhece o fotógrafo, gosta dele, e o sorriso é de genuína felicidade por sua chegada? E, neste caso, o fotógrafo irá se juntar a eles? Seria o nono amigo atrasado, aguardado por todos para completar a turma que seguiria de metrô para a Estação Carioca?

Se a reação de Luísa é claramente positiva, há dúvidas sobre Victor e Dan. Victor, em seu quimono de gueixa, arma olhar e gesto desafiadores. Pode não gostar do fotógrafo por alguma razão. Pode também ser, no entanto, apenas um reflexo de sua atitude habitual diante da vida. Da turma toda, Victor é o mais inteligente, o mais bem encaminhado, o que vai contribuir para o futuro do país — embora Antonia ganhe mais do que ele na época da foto. Embora ainda não tenha provado isso, Victor sabe que será bom em tudo o que fizer, e por essa certeza desenvolveu uma atitude de superioridade em relação ao mundo. Ele não tem paciência com os preguiçosos, os irrelevantes, os poucos agraciados com inteligência. Pode ser que ele coloque o fotógrafo nesta categoria. Ou pode estar apenas expressando seu enfado com a humanidade.

A reação de Dan é mais enigmática. Nos casos de Luísa e Victor, é pelo olhar que se identificam simpatia ou hostilidade. Os olhos de Dan, no entanto, estão escondidos por óculos escuros intencionalmente ridículos. Sua boca aberta denota surpresa ou desagrado. Talvez porque, entre todos, ele é o que foi apanhado com a fantasia mais incompleta. Faltam, como eu já disse, os essenciais sapatos, e para piorar o fotógrafo o surpreendeu com uma roupa íntima aparecendo sob o vestido ainda aberto. Mas o contorno de sua boca, emoldurada por bigode e cavanhaque, pode também manifestar desagrado — no caso, em relação ao fotógrafo, a quem ele claramente conhece. Qual seria o motivo de tal reação?

(Uma ilação. Dan e Victor são os dois personagens gays da foto — Dan sabe disso, Victor ainda não. Seria coincidência a reação negativa de ambos em relação ao fotógrafo, no caso de o fotógrafo ser homem? Ou seria alguma trama de amor e ciúmes?)

A reação dos outros três personagens do quadro é bem menos expressiva. Tiago e Joana aparentemente não o conhecem. Diante da possibilidade da foto, Tiago se perfila como se posasse para um retrato de futebol, tórax empertigado e braços cruzados. Não podemos ver seus olhos, mas os lábios apertados — que lembram também uma foto esportiva — indicam que ele está pouco à vontade. Já o olhar de Joana é de clara curiosidade, apesar da ausência de movimento da reta contínua das sobrancelhas. Ela não sabe quem é o fotógrafo, pende a cabeça para a direita como um cachorrinho que olha para alguém que não é o seu dono, e força uma pose tensionando os braços e esmagando o buquê.

Num primeiro exame, parece que Paulo, Antonia, Victor, Dan e Luísa conhecem o fotógrafo — e, conseqüentemente, pertencem à mesma turma. Joana e Tiago são de fora. Resta Lucas, expressão impenetrável sob sua máscara de zebra. Não dá para dizer nada sobre ele apenas olhando a foto. Por enquanto, o que sabemos é que Lucas é um pouco mais velho. E que foi Antonia, sua namorada, quem provavelmente o apresentou à turma.

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Era claro que, no sábado de carnaval, véspera da foto, Paulo não procuraria Luísa. Embora ela achasse que fossem namorados — como a maior parte dos amigos de ambos — suspender o relacionamento durante os quatro dias de folia fazia parte do protocolo da época. Mas Luísa, que eu conheço bem, sempre foi sonhadora. Decidiu que se vestiria para uma festa. Imaginou que Paulo poderia fazer uma surpresa e levá-la para um dos vários bailes que animavam a cidade. Segundos depois, temeu, sensatamente, que ele talvez não aparecesse. Ponderou, no entanto, que não teria nada a perder. Arrumar-se seria no mínimo um ensaio para uma festa futura. Era assim que já funcionava, naquela época, a mente de Luísa. Que classificava todos os acontecimentos em duas categorias: ensaios e performances, bastidores e palco.

Por volta das dez da noite, Luísa abriu o armário do quarto do apartamento em Ipanema onde ela, filha única, ainda morava com os pais, e tirou de lá quatro vestidos. Um branco e um vermelho curtos, um negro longo e um azul de festa. Descartou o primeiro por excessivamente infantil, o segundo por excessivamente sexy, e o terceiro por excessivamente Oscar. Ficou com o azul — que era de festa, mas não tinha a ver com carnaval nem com o ano de 2012. Parecia figurino de filme do século passado, com barra pouco acima do joelho e várias camadas de franjas. Criou todo um look a partir dele — sapato de baile combinando, maquiagem leve, batom suave e olheiras cuidadosamente desenhadas. Luísa acreditava que quando alguém veste o figurino certo a peça de teatro se materializa. Ela estava pronta para a festa — e, de certa forma, a festa veio até ela.

A campainha tocou. Luísa estava sozinha em casa, os pais haviam fugido do carnaval para a casa na serra. Ela abriu a porta e viu um homem alto, de terno de linho, gravata clara e sapatos com polainas, elegante como um sambista antigo. Luísa que, pequena, gostava de homens grandes, por um minuto sonhou que fosse Paulo — mas Paulo não era grande. O homem alto era Dan, seu melhor amigo. Convidou-a para ir a um baile numa gafieira. Luísa aceitou, e os dois pegaram um táxi até o Clube Democráticos. Dan, que dançava muito bem, era o parceiro habitual de Luísa nos salões, dado que Paulo não era versado nas artes do baile. Era comum que fossem ao Clube Democráticos a três. Luísa e Dan dançavam horas, ao som do cavaquinho de Galotti ou das vozes de Wilson das Neves ou Madalena Bernardes, estrelas da gafieira naquele tempo. Enquanto bailavam, Paulo pegava uma cerveja e sumia no salão durante horas. Reaparecia no final da noite, reivindicando a namorada. Neste momento, Dan fazia uma reverência e dizia a Paulo: “Aí está sua donzela, intacta”. Chamava isso de “ritual de entrega”. E depois seguia para alguma rave.

Nesta noite, em que Paulo não estava, Dan e Luísa dançaram mais horas do que de costume, ou então as horas passaram mais depressa. Em um determinado momento Dan saiu para pegar cerveja e viu Luísa conversando com outro — um homem mais ou menos da idade dela e mais ou menos parecido com Paulo. Como ele, do tipo que vai para um salão de baile de bermuda, camisa regata e tênis. Mas mais bonito, mais forte e bom dançarino — Dan já o havia observado anteriormente numa de suas varreduras de radar. Para não atrapalhar, o amigo de Luísa ficou observando de longe enquanto a conversa evoluía até a inevitável dança. Visualmente, Luísa e o desconhecido eram um par improvável, ela saída de um filme antigo, ele de um boteco depois da praia. Improvável mas sincronizadíssimo, com aquela química rara que, nos salões, faz com que os outros pares parem de dançar para apreciar. Dan sentiu um pouco de ciúme, e um pouco de alívio — poderia fazer seu “ritual da entrega” e seguir para uma rave, as do carnaval eram ótimas. Viu o quanto eles conversavam e riam durante as músicas, e quando eles anotaram os telefones nos respectivos celulares.

Dan bebeu as cervejas sozinho, e depois pegou mais duas. No final da segunda entrada da banda, levou-as para Luísa e seu novo amigo. Mas ela não quis sair do Democráticos com o homem que parecia uma versão melhorada de Paulo. Não naquela noite. Olhou para Dan e disse: “Vamos? Você me deixa em casa?”.

E, naquela noite, Luísa realizou a fantasia de fazer sexo com um homem grande. Dan puxou-a para si com a mesma força e carinho com que, em suas fantasias, sonhava com Victor, também pequeno e frágil, pelo mesmo na comparação com ele próprio. Luísa e Dan se amaram de cortina aberta, no quarto iluminado pelo mercúrio de uma luz externa, sombreada pelos abricós-de-macaco. Foi nessa quase escuridão que, em certo momento, Dan viu Luísa entregar a ele o mais devasso de seus sorrisos grandes.

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Sorriso que voltaria horas mais tarde, na foto. Entregue, desta vez, ao homem — ou à mulher — que provoca o espanto de Dan.

Olhando o retrato agora, à distância de algumas décadas, sorrio e me espanto ao pensar no que todos se transformaram.

Antonia é Antonia Maia Agostinho, executiva da área de publicidade. Victor é Victor Pontes Andrade, economista. Dan é Daniel Estevez, não tem cartão de visitas mas seu nome nunca nos é estranho. Paulo é Paulo Andretta e também não tem cartão até hoje. Lucas é Lucas Soares, professor da universidade. Joana, que já foi Pontes Andrade, voltou a ser Joana Silva, especialista em marketing político. Luísa é Luísa Haupt, foi atriz e depois se tornou escritora. Tiago é Tiago José. Não sei seu sobrenome, sei apenas que é advogado.

A maior agência de publicidade do país se chama AMA por causa das iniciais de Antonia Maia Agostinho. Depois de se tornar uma das publicitárias mais premiadas de sua geração, ela resolveu fazer carreira solo — e repetiu na maturidade o sucesso fulgurante da juventude. Antonia se casou com Lucas e os dois são hoje meu modelo de par feliz. Lucas continua calmo, modesto e discreto, depois de ter percorrido, de forma lenta e sólida, todos os degraus da carreira acadêmica. Victor foi secretário das Finanças, deputado estadual, deputado federal e atualmente pensa se candidatar a prefeito do Rio de Janeiro. Foi casado com Joana, divorciou-se, mas ambos continuam tendo uma relação de íntima confiança — ela é a responsável pela condução de todas as suas campanhas eleitorais. Dan e Paulo são, como se dizia antigamente, figuras cariocas. Paulo se tornou uma espécie de boêmio oficial da cidade, personagem de crônicas e cartuns. Continua vivendo da herança magra dos avós, um pouco engordada pela herança dos pais. A turma achava que Dan seria um grande artista. Inteligente, carismático, rápido e engraçado, ele teve seu momento como vocalista de uma banda de rock, mas nunca conseguiu se firmar. Depois de fazer papéis secundários em filmes e novelas de televisão, vive hoje de pequenos trabalhos, mas continua sendo famoso em seu pequeno circuito — o dos amigos, o dos amigos dos amigos e o dos filhos dos amigos. Tiago, depois do breve namoro com Joana, sumiu da história.

Luísa foi atriz durante um tempo curto, que abarca do pouco antes ao pouco depois da foto, e mais tarde se transformou em bem-sucedida autora de livros infantis — atividade com que sustentou, a vida inteira, o filho único, seu primeiro leitor.

Eu mesmo tenho dificuldade em acreditar que esse retrato antigo, de um grupo de amigos de ressaca num domingo de carnaval, seja uma foto de família. Mas é. E é a minha família: Paulo, Antonia, Dan, Victor, Lucas, Tiago, Luísa e Joana. Uns próximos, outros distantes. Eu sem saber direito quais os próximos e quais os distantes, e tentando adivinhar através de um retrato antigo.

Eu olho e olho e olho a foto — e tento imaginar, esquadrinhando seus cinzas, os segredos que Luísa não quis contar para mim.

Joao Gabriel de Lima

É jornalista e escritor, autor dos romances O burlador de Sevilha e Carnaval.

Rascunho