🔓 O coração na bandeja

Rita Carelli: "Encontrar as palavras para descrever o cerne das coisas que estou tentando compartilhar: sentimentos, imagens, sentidos"
Rita Carelli, autora de “Terrapreta”. Foto: Patrícia Canola
01/03/2023

Em 2022, a atriz e escritora Rita Carelli venceu o Prêmio São Paulo de Literatura com Terrapreta, seu romance de estreia. O livro narra a história de uma adolescente que deixa a vida de estudante num colégio de classe média em São Paulo para morar em uma aldeia indígena do Alto Xingu.

O prêmio foi essencial para que a autora reafirmasse sua crença na literatura que produz. “Foi fundamental para eu acreditar que o que estou escrevendo faz sentido também para outras pessoas”, diz.

Sua trajetória na escrita vem da infância, quando ser escritora já era um desejo. “Lembro de verbalizar isso pela primeira vez aos oito anos de idade em resposta a uma daquelas fatídicas perguntas de adulto: ‘O que você quer ser quando crescer?’”, relembra.

Além de escritora e atriz, Rita também é ilustradora e diretora de cinema e de teatro. Ela nasceu em São Paulo, em 1984, e estudou Letras na Universidade Federal de Pernambuco e teatro na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq, em Paris.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Me lembro de verbalizar isso pela primeira vez aos oito anos de idade em resposta a uma daquelas fatídicas perguntas de adulto: “O que você quer ser quando crescer?”. Por essa época comecei a fazer meus primeiros livros: inventava as histórias, escrevia, ilustrava e encadernava. É verdade que eu também queria ser arqueóloga, astronauta, bombeiro e cantora… Mas o bom de ser escritora — e atriz (minhas duas profissões) — é que nelas a gente pode ser tudo isso!

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Ler. O tempo todo, sempre que possível, tudo o que me cai nas mãos. Tenho tentado acompanhar cada vez mais a produção nacional contemporânea, especialmente da literatura feita por mulheres, mas a oferta — felizmente — está cada vez mais intensa e rica e não está dando para ficar totalmente em dia. Tinha mania de ler três ou quatro livros simultaneamente: um romance, um livro de poesia, um de contos e um de não ficcional, mas esse hábito anda meio em desuso com duas filhas pequenas, pois a cabeça já não dá conta de desembaralhar todos os fios e o tempo de leitura anda mais limitado.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Atualmente? Bula de remédio fitoterápico pra virose de criança!

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Não vou mentir dizendo que não adoraria ver Lula lendo Terrapreta. Ficaria feliz também se ele lesse os últimos livros que organizei de Ailton Krenak: A vida não é útil e Futuro ancestral, mas acho que ele anda bem servido de livros, pois achei as dicas de leitura que ele deu no fim de ano excelentes: Torto arado, de Itamar Vieira Junior, e Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves — duas narrativas fundamentais sobre o Brasil.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Uma noite bem dormida, poder tomar café à vontade, uma casa vazia, não ter uma obra no vizinho, um recém-nascido e nem ameaças de golpe de estado a cada semana no país. Enfim, tudo o que me falta nesse momento, mas escrever também se alimenta de tudo isso, existe em fricção com a vida e não nas “circunstâncias ideais”. De qualquer forma, duas ou três delas seriam bem-vindas.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Imagino que uma praia deserta daquelas de desenho, com uma rede entre dois coqueiros.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
A redação de duas laudas bem escritas, daquelas inspiradas, mas também bem pesadas e medidas, consistentes com o todo e que a gente sente que vão figurar no resultado final. E, às vezes, a redação de um único parágrafo, mas dos bonzudos, que nos tiram de um impasse, desbloqueiam um momento improdutivo, nos apontam o rumo da trama ou resolvem com maestria uma cena que estava sem contornos. A quantidade de linhas escritas em um dia produtivo de trabalho varia muito, mas a sensação é sempre parecida: desperta o tesão de seguir escrevendo.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Ah, o prazer! Esse ingrediente fundamental pra fazer esse troço tão difícil, lento, dessocializante e não remunerado que é escrever um romance. Cito alguns cumes de ocitocina: descobrir coisas que eu já sabia, mas que não sabia ainda que sabia; ser levada pela história para algum lugar imprevisto; me afeiçoar a um personagem como se ele existisse fora das páginas. Pensando bem, essa lista também poderia se aplicar, em outra escala, aos prazeres da leitura.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O medo. Em várias de suas fantasias: medo de não ser bom o suficiente, medo de não conseguir chegar no final do que está escrevendo, medo de olhar pra dentro de si mesmo, medo do que irá encontrar no abismo da escrita, medo de mostrar para os outros o que encontrou ali… Deixo a lista para ser completada pelos que nos leem e que também escrevem.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não ser respondido por uma editora. É claro que os editores têm suas próprias questões, excesso de originais, etc. Mas quando enviamos um manuscrito para apreciação de alguém, é como se colocássemos nosso coração em uma bandeja. O silêncio é doloroso demais para quem se expõe dessa maneira.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Mais do que um autor, eu ficaria de olho no movimento dos escritores indígenas. Tem muita coisa bonita ainda para nascer dessa seara, muitas histórias para serem contadas.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Descartável eu não sei, devo ter esquecido por falta de espaço do HD, mas imprescindível é difícil citar um só. Dessa vez fico com Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, que movimentou águas profundas dentro de mim.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Subestimar os leitores. Um mal começo. Prolixidade.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Hummm… Acho que dificilmente escreveria sobre extraterrestres. Mas quem sabe?

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Do dedão do meu pé direito. Ele curiosamente se empina quando eu caminho. Achei que era um bom complemento de descrição de um personagem mesmo sem saber o que isso quer dizer.

• Quando a inspiração não vem…
Escrever mesmo assim. Revisar, reler o que foi escrito, corrigir. É preciso colocar a cabeça no coração do texto para que ela volte no dia seguinte.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Eita. Hilda Hilst acho que daria um café memorável. De preferência na casa dela, rodeada de cães, gatos e livros.

• O que é um bom leitor?
Aquele que sente prazer lendo.

• O que te dá medo?
Não ter coragem de escrever tudo o que ainda desejo. Gente passando fome. A ganância humana.

• O que te faz feliz?
Banho de cachoeira. Banho de mar. Beijo na boca. O riso das minhas filhas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Não se trata de uma certeza, mas o Prêmio São Paulo de Literatura atribuído ao meu primeiro romance, Terrapreta, (mesmo sabendo como as circunstâncias dos prêmios também são muito relativas e não podem funcionar como norte para a produção de ninguém), foi fundamental para eu acreditar que o que estou escrevendo faz sentido também para outras pessoas. Que vale o esforço de trazer à tona as histórias que ando carregando dentro.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Encontrar as palavras para descrever o cerne das coisas que estou tentando compartilhar: sentimentos, imagens, sentidos. Como trabalho muito com a matéria memória, tenho frequentemente a sensação de tentar pegar peixes com as mãos. Encontrar as palavras que me parecem certas é capturar seu brilho sem sufocá-las.

• A literatura tem alguma obrigação?
Acho que qualquer ação nossa no mundo pede uma postura ética. Com os objetos de inspiração de nosso trabalho, com as relações que cultivamos para o nascimento dele, com o tipo de imaginário que estamos cultivando… Sou dessas pessoas que acreditam que a vida é mais importante do que a arte. Acho que a arte pode muito, mas não se pode fazer qualquer coisa por ela.

• Qual o limite da ficção?
Acho que o limite da ficção está próximo desse lugar que eu tateei acima. Quando a gente faz reverência à vida, o limite da ficção se expande.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Hahahahaha, olha os ETs aí! Levaria o cabeçudo ao meu tio, ao meu txai, Ailton Krenak. Íamos gostar de ouvir as histórias do visitante ao pé do fogo do seu quintal. E quem sabe eu fizesse um livro sobre elas depois?

• O que você espera da eternidade?
Nada.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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