Não sei se o leitor pôs reparo, mas, toda tradução do grego clássico vem cheia de palavras-valise, auroras dedirróseas, qualquer coisa com sabor doceamargo (em vez de agridoce, vai ver que por conta da contagem de sílabas para os tais metros poéticos), issos amplitroantes, aquilos belofluentes, outros tantos auriluzentes e que tais? Tudo bem, relaxe e desfrute, se possível. É sempre um alento à inteligência saber que os tradutores não cessaram de produzir material qualificado para recuperar o que resta de importante vindo dos primórdios do que se conhece como uma das principais vertentes da civilização ocidental, ou seja, o pensamento e a poesia da Grécia clássica.
O trabalho meticuloso é de Leonardo Antunes, professor, poeta e tradutor, que se debruçou sobre a poesia lírica de Anacreonte e lhe traduziu os Fragmentos completos, seguidos das Anacreônticas. Ele havia traduzido Sófocles, Édipo tirano, lançado em 2018, e faz o mesmo neste momento pelas epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia.
Há relatos de que Anacreonte tenha passado temporada na corte de Polícrates, em Samos, quando disputou supostamente com o tirano o amor de Esmerdes, e outra temporada na corte de Hípias, em Atenas. Circulou um bocado, em resumo, numa época em que viajar era mais do que transtorno.
A edição bilíngue, além do original grego dos fragmentos restantes da poesia dedicada ao vinho, ao amor, à juventude perdida e à velhice ligeiramente fora do padrão, porque celebrada a todo vapor por Anacreonte (embora exista fragmento em que reclame do entusiasmo de um amante jovem que afinal lhe fadiga), conta ainda com comentário minucioso do tradutor que sempre ajuda o leitor a entender um pouco melhor o contexto da poesia e da cultura gregas do período da Antiguidade. Por exemplo, há menção às Targélias, festividade agrícola em homenagem a Targélio, divindade menor, na qual se praticava o pharmakós, exílio, espancamento ou sacrifício ritual de um ou mais indivíduo(s) que fosse(m) o(s) mais feio(s) encontrado(s) na sociedade local. Pobres dos chamados feios, ou seja, a maioria de nós. O objetivo era supostamente justo: “Expiar os males que afligiam ou podiam afligir a região”. Ah, tá bom.
Lacunas revestidas
Às vezes, no andamento dos trabalhos, é mesmo o caso preencher lacunas e tomar certas liberdades, como Antunes faz na terceira versão do fragmento 346, quando chega a inserir uma estrofe inteira, anotada entre colchetes, justamente para demarcar as diferenças entre “invenção” e os fragmentos restantes.
[Foram-se as naus velozes, negras,
que antes se viam nessas praias.
Foram-se os muros da cidade.]
A próxima estrofe, da qual muito pouco sobra de texto, também foi preenchida pela imaginação inventiva do tradutor.
[Ora de] noite [junto ao fogo
já não se] vê [em mãos o vinho]
doce e [encorpado como o mel,]
Verdade, o original pode ser inteiramente diferente, mas talvez algo da mesma linha de raciocínio permaneça, uma vez que o sujeito revirou toda a obra do avesso para lhe compreender o modo de raciocínio. Talvez não fossem essas palavras usadas no texto de Anacreonte, mas algo do sentido é bem possível que tenha se mantido. Aqui é o território das conjecturas, das hipóteses a serem consideradas e o poder de adivinhação do tradutor é talvez parte dos talentos que lhe confere o acervo acumulado de conhecimentos a respeito do passado grego.
O sentido muitas vezes pode ser justamente a ambiguidade. O fragmento 382, por exemplo, diz: “Tendo paixão pela chorosa lança”, que o tradutor explica poder se tratar de duplo sentido: “É possível que a lança lacrimosa seja parte de uma descrição sexual, talvez de um falo vertendo sêmen”. Assim avançavam os gregos, suponho que rissem como nós das mesmas tolices. Às vezes, a referência é tão direta que fica impossível não ver sugestão, como no fragmento 393: “Ares audaz gosta de uma lança firme”. Somos bobos igual.
Lado mais grave
Como se trata de Grécia antiga, mesmo o mais jovial e divertido dos poetas vai encontrar espaço para se dedicar a temas ásperos, como a ideia de que a morte é solução para uma vida repleta de problemas. É o que aponta Antunes no comentário ao fragmento 347b. E não se trata de qualquer morte, mas aquela por afogamento, o que para um grego tem peso extra, porque o corpo não será encontrado para receber ritos fúnebres adequados. O poema diz:
Ouço aquela moça que se
reconhece facilmente
muitas vezes lamentando
e culpando seu destino:
“Sofreria menos, mãe,
se me carregasse para
o implacável mar e suas
ondas negras, turbulentas.
O mar implacável com ondas negras e turbulentas soa muito potente, se não me equivoco, a qualquer tempo. Essa a vantagem de se deparar com trabalho tão minucioso. Em que pese a possibilidade, que sempre existe, de o leitor pouco afeito a contagem de pés e metros arcaicos se sentir algo marginalizado, se tiver por exemplo pouca familiaridade com dímetros trocaicos acataléticos e quejandos, alternâncias de glicônios e ferecrácios, ufa. Ou se tiver pouca competência para entender a sinalização nada amistosa da súmula métrica ao fim do livro, o que gera um volume extra que só iniciados saberão escandir. O meu argumento é que mesmo esse leitor pouco afeito a tantos detalhes terá como se beneficiar da leitura, se souber passar um pouco à margem da discussão que tem objetivo, afinal muito justificável, de auxiliar estudantes de grego ou de tradução interessados em aprender nuances e cuidados dos problemas do ofício.
O que de fato pode configurar dois senões do livro são as tentativas de Antunes de ir um pouco além do alcance. É sabido que ele estabelece o trabalho no rastro do projeto tradutório dos irmãos Campos, os poetas concretistas que cunharam a expressão transliterar para empreender algumas invenções sagazes no projeto de verter grande poesia para o português e que os situa em patamar elevado na história da literatura (também por isso, claro, quando não pela inteligência poética própria, que não era nada pouca), mas as iniciativas que Antunes toma em duas ousadias tradutórias, nos fragmentos 359 e 376, não resultam bem resolvidas. O que Leonardo Antunes entende como “molde concretista” é justamente o problema que os concretistas apontavam na poesia de Apollinaire, certa tendência a representações gráficas de efeitos tautológicos, para a qual torciam o nariz.
São pormenores muito pequenos para o volume de empenho e trabalho de peso que abrilhantam a comunicação entre culturas tão distintas no tempo e espaço como a grega e a brasileira, que aos poucos preenche lacunas, como pode e dá, das traduções faltantes dos gregos de alto quilate. Ainda bem. É quase possível ouvir o murmúrio da voz poética de Anacreonte a convocar leitores de qualquer época para a grande festa (e o grande problema) que é estar vivo.