Recentemente, Benjamin Moser, biógrafo norte-americano de Clarice Lispector, publicou na revista The New Yorker uma possível entrevista “perdida” da autora de A paixão segundo G. H., concedida ao Museu da Imagem e do Som (MIS), do Rio de Janeiro, no ano de 1976. Logo, diferentes portais de notícia, inclusive os brasileiros, replicaram a informação, para o delírio coletivo de uma massa de leitores que pôde se debruçar avidamente no mais longo registro público de Clarice feito para os entrevistadores Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro.
O problema da notícia revelada por um dos maiores divulgadores de Clarice Lispector nos Estados Unidos e, possivelmente, no mundo, está justamente na falta de verificação da fonte ou, talvez, no ponto de vista textual, de vocábulos que primam por uma boa relação com a semântica do material discursivo.
Afinal, não se trata de uma entrevista rara, muito menos perdida, ao menos em língua portuguesa, uma vez que a mesma fora transcrita na íntegra em duas obras editadas no Brasil: a primeira em Encontros: Clarice Lispector, da Azougue Editorial, organizado por Evelyn Rocha, que resgata de forma cronológica um número relevante de entrevistas da escritora concedidas para a imprensa brasileira; e a segunda em Com Clarice, livro escrito por Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti, autores que participaram do encontro realizado pelo MIS.
Como pesquisador da vida e obra da escritora ucraniana naturalizada brasileira, Moser nunca teve acesso ou conhecimento de tais livros? Caso não, como se chega à confirmação cabal de que o assunto tratado seja de natureza genuinamente recém-descoberta? E, se realmente recém-descoberta, para qual público ou língua estamos falando?
Existe uma profunda diferença ao anunciarmos uma entrevista como “rara ou inédita” para “rara ou inédita ao público norte-americano ou de língua inglesa”. Então seria um problema puro e simplesmente semântico? Um pequeno deslize cometido por parte de uma das maiores autoridades midiáticas no assunto Clarice Lispector?
De fato, não há como não falar de Moser sem pensar em sua musa, considerada um dos nomes femininos mais relevantes da literatura brasileira e mundial. Porém, não é de agora que o biógrafo norte-americano vem apresentando certa contradição entre os pesquisadores clariceanos ante as afirmações voltadas ao seu material biografado.
Já é de conhecimento de alguns sua omissão em fontes verificadas que legitimam a autenticidade de seu discurso. Assim ocorreu quando ele afirmou na biografia Why this word? (em português, Clarice,) que Mania Krimgold Lispector, a mãe da autora, teria adquirido sífilis em deccorrência de uma violência sexual sofrida na Ucrânia, antes de autoexilar-se com a família no Brasil. E, por conta disso, a paralisia que acometera parte de seus movimentos. Neste sentido, Clarice teria sido “concebida” para salvar a mãe de tal problema, seguindo a crença popular da época. A narrativa aponta uma certa frustração que a escritora teria carregado ao longo da vida, já que ela foi gerada, mas não conseguiu curar a matriarca da família Lispector de sua condição no momento do parto.
Com relação ao seu nascimento, algumas crônicas de Clarice apresentam uma versão medianamente próxima a de seu biógrafo, embora cheias de borrões e lacunas, dificultando a fundura dos detalhes. Logo, o ideal, partindo do ponto de vista de quem reescreve a história de alguém, é trabalhar com o campo da possibilidade e não da afirmação, já que não há documentos ou qualquer outra fonte que comprovem tais fatos.
É legítimo que o áudio da mais longa entrevista de Clarice Lispector ganhou uma edição remasterizada e encontra-se agora disponível para o grande público, o que foi muito bem pontuado no texto de Moser para a New Yorker. Mas encará-lo como uma descoberta primária seria o mesmo que dizer que o Brasil fora “descoberto” pelos portugueses. Só que não.