João Paulo Cuenca

“Se tenho dez mil leitores, tenho dez mil livros. É maravilhoso. Nenhuma outra forma de arte chega a esse nível de subjetividade.”
João Paulo Cuenca no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias
01/11/2008

No dia 8 de outubro, o Paiol Literário — projeto promovido pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba — recebeu o escritor carioca João Paulo Cuenca. O encontro aconteceu em Curitiba, no Teatro do Paiol, e contou com a mediação do jornalista Rogério Pereira, editor do Rascunho. Cuenca, que já foi cronista da Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil, hoje assina textos veiculados no suplemento Megazine, de O Globo. É autor dos romances Corpo presente e O dia Mastroianni e co-autor de Parati para mim, escrito sob encomenda para a primeira edição da Festa Literária Internacional de Parati (Flip). Também tem textos publicados nas coletâneas Dentro de um livro, Contos sobre tela, Prosas cariocas e Cenas da favela, entre outras. Durante o bate-papo com seus leitores, Cuenca falou sobre o peso da literatura em seu dia-a-dia e sua formação como escritor, opinou sobre o mercado editorial e o desinteresse dos brasileiros pela literatura nacional contemporânea e comentou o projeto Amores Expressos, do qual foi coordenador editorial.

• Mais que um norte, um sentido
Em geral, a importância da literatura na vida das pessoas é nenhuma. Tem uma história engraçada. Um estilista de São Paulo me convidou para escrever um texto para a sua butique. E perguntei: “Quanto você vai me pagar?”. E ele: “Posso pagar em roupa”. Os escritores às vezes têm que fazer esse tipo de coisa. E fiz. Depois, fui pegar a roupa na tal loja e expliquei às balconistas: “Escrevi um texto e estou aqui para pegar tantas peças de roupa”. E elas: “Ah, você é o escritor? Uau, mas que coisa antiga”. Era quase como se eu falasse que luto esgrima ou jogo críquete. Então, infelizmente, hoje em dia, o alcance da expressão literária não é tão grande quanto já foi, por n motivos que não me cabe discutir — quer dizer, me cabe, sim, mas vamos cortar essa parte. Já na minha vida pessoal, a importância da literatura é total, porque vivo o tempo todo pensando nisso. No romance que estou escrevendo, na crônica que tenho de escrever, no que estou lendo. E isso me deu mais do que um norte na vida quando comecei a trabalhar como escritor em tempo integral. Me deu um sentido. Nem sei se estaria vivo.

• Perdendo a briga
A gente tem que ter consciência de que o público leitor é pequeno. Os escritores, hoje, têm uma função quase que de evangelizadores. Você tem que chegar aos lugares e falar sobre você e seus livros. E essa tem que ser uma atividade constante. Ocupar os jornais, a imprensa, a televisão, o cinema. Ocupar todos os espaços e brigar por isso, porque a gente está perdendo a briga. Para a tevê, para o cinema, para a internet e todo o resto.

• Entre as freiras
Fui alfabetizado em casa. É uma história meio louca. Minha mãe é meio louca. Ela me alfabetizou com uns bloquinhos de madeira com letrinhas. Então, cheguei ao colégio e já sabia ler o básico. (…) Quando eu tinha uns oito anos, e já sabia que era uma pessoa completamente alienada — e que o seria para sempre —, comecei a ler muito. Ia à biblioteca. Havia duas bibliotecas que eu freqüentava. Uma era no Sion, um colégio de freiras onde estudei, no Rio. Eu tinha que brigar com a irmã Laura, sempre queria pegar os livros que ela não queria que eu lesse. Fernando Sabino era uma coisa obscena. Então, eu tinha que driblar essa senhora para poder ler. Às vezes, eu roubava livros. Depois devolvia, mas eu tinha que traçar estratégias para pegar o que eu queria. E a outra biblioteca ficava no Leblon, onde hoje há a Livraria Argumento. Era uma biblioteca municipal, que eu adorava. Eu pegava dois, três livros por semana. E nunca tive nenhum tipo de hierarquização. Se hoje não tenho, naquela época tinha menos ainda. Eu lia de tudo: Agatha Christie, Georges Simenon, Júlio Verne, Robert Louis Stevenson, Machado de Assis. Eu gostava muito de crônicas. Já lia as do Sabino, as do Vinicius. Lia muitas histórias em quadrinhos e ia muito ao cinema. Era uma mistura dessas coisas. Depois parei. Acho que, dos 8 aos 14 anos, eu lia muito mais do que leio hoje em dia.

• Dostoiévski desgraçou a minha vida
Os livros que — tenho certeza — desgraçaram a minha vida para sempre, já na primeira adolescência, foram Crime e castigo e Notas do subsolo, de Dostoiévski. Fiquei completamente doente, com febre, sonhava com aquilo. Horrível. O encontro marcado, de Fernando Sabino, também foi um livro importante para mim. Lavoura arcaica, costumo reler. E quando eu tinha 17 anos, li On the road, de Jack Kerouac, numa tradução horrível, mas que foi fundamental para mim naquele momento.

• Experiência sem paralelo
O livro é uma coisa maravilhosa, fascinante. Uma boa experiência de leitura não tem paralelo, não se parece com nada. É muito mais intensa do que a de ver um filme. É uma tecnologia muito mais refinada do que uma projeção 3D, do que a realidade virtual, a internet ou qualquer outra coisa que venham a inventar. Um romance, um livro é inesgotável, você o revisita e aquilo ganha sentidos diferentes em diferentes momentos da sua vida. Você pensa em quem era da primeira vez que leu aquele livro, na diferença dessa segunda leitura, dessa terceira leitura. Memórias póstumas de Brás Cubas é um livro que, a cada vez que leio, leio diferente.

João Paulo Cuenca no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

• Registros escritos
Por causa da internet, hoje, um garoto de sete anos lê e escreve muito mais do que um de 20 anos atrás. Ele está o tempo todo conectado, conversando por meio de palavras escritas. Troca e-mails, mantém um blog ou tem um fotolog, escreve embaixo das suas fotos. E as pessoas vão compartilhando aquelas experiências. Registros que não são literários, mas que são registros de língua escrita. Vou falar da minha experiência pessoal. Comecei com um blog, acho que em 1999. Um blog que hoje acho horrível, mas que na época fez algum sucesso. A partir dele, na minha cabeça, começou a rolar o tal pacto com o leitor. Você publica uma coisa, um leitor tem uma leitura, e outro leitor tem outra. Você começa a se colocar nesse jogo e isso, para mim, foi fundamental. A internet foi muito importante para mim. Depois fiz um blog de bastidores do meu primeiro romance, Corpo presente, de 2003. Expus lá todas as minhas angústias. Depois, esse blog virou uma espécie de depósitos de resenhas, opiniões, debates sobre o livro. Foi muito importante. Até porque, quando publiquei o romance, ele já tinha os seus leitores — por causa do blog. Então, tem um lance mercadológico. E, aí, entra aquilo de aproximar o leitor da figura do escritor. Isso é muito importante para vender a literatura. Mas, às vezes, pode se tornar um inferno.

• Na livraria, na internet, na humanidade
Você não encontra literatura na maioria dos livros que estão numa livraria. Você encontra receitas para a felicidade, para cozinhar um bolo, para cuidar de um cão, para manter um relacionamento. E encontra algumas tentativas de ficção. Ruins, razoáveis, boas. A parte que realmente interessa ali, em minha opinião, é muito pequena. E, na internet, é a mesma coisa. Como é na humanidade em geral. A internet dá voz a uma multidão descontrolada de pessoas que produzem muito irregularmente o que pode ser ou não ser chamado de literatura. Mas acho isso fantástico. Essa necessidade de expressão é fantástica. A garota de 14 anos que escreve em miguxês, aquela linguagem horrorosa. É fantástico: ela está se expressando, usando palavras para se expressar. Outro vai ler e vai passar adiante. Eu não acho isso trágico. Tem gente que acha uma loucura, que a gente está vivendo uma era de caos e destruição, que a internet é o início do fim. Eu acho que não, muito pelo contrário.

• Economista abandonado
Minha família nunca teve muito dinheiro. E eu queria ter dinheiro, para viajar. Por isso, fiz vestibular para economia. Obviamente, não deu certo. E acabei ganhando dinheiro — não vou dizer “dinheiro” —, mas acabei comprando minhas cuecas com o dinheiro da literatura. E isso é uma improbabilidade total nesse país. Mas a economia me abandonou, não fui eu que a abandonei. Fui demitido em 2005. Entrei de férias e meu chefe percebeu que eu não era necessário. Em absoluto. Eu contratava meus amigos como estagiários. Tinha uma vida muito boêmia e chegava todos os dias à uma da tarde, porque meus amigos já tinham adiantado todo o meu trabalho. Bons amigos (risos). Mas eu já escrevia naquela época. Escrevi trechos do meu primeiro romance no trabalho, naquela alienação do escritório.

• O pingente do jornal
A crônica tem muito mais a ver com o registro da minha semana. Com que eu vi, com o que senti, com o que sonhei na semana. O romance tem um fôlego maior. Você pode ficar três anos escrevendo um romance, com uma diferença simples: quando você começa a escrevê-lo, não sabe se vai acabar ou se vai ser publicado. Não sabe nada. E a crônica é uma guilhotina. Você tem que entregar aquele texto até tal hora de tal dia. Se não entregar — nem sei o que pode acontecer, nunca fiz isso. O que será que acontece? (risos) Mas, infelizmente, o espaço da crônica de jornal vem sendo ocupado por um certo colunismo que é uma reflexão mais ou menos banal, de acordo com o quilate do colunista, sobre os acontecimentos políticos e sociais da semana. Então, o espaço da ficção dentro da crônica — que chamo de crônica sem rodapé, um tipo de crônica que pode ser publicado daqui a dez anos —, essa crônica está morrendo nos jornais. E o espaço da crônica no jornal é o espaço do descanso, da ficção. É o pingente do jornal.

• Preciso da crônica
Preciso da crônica porque ela é minha âncora com a realidade temporal das outras pessoas. Tenho esse lembrete semanal de que existe o mundo e que existe o tempo que corre. Que as pessoas usam relógios.

• Os cronistas, os romancistas e o país
Certamente, a crônica é um registro quase antropológico. Adoro João do Rio, por exemplo. Você pega os livros dele, suas crônicas, e enxerga a Lapa do Rio de Janeiro de 1910, de 1920. Você vê a coisa. É uma memória literária histórica daquele momento, daquela cidade. Quando um cronista acerta, ele pode chegar a esse ponto. Mas, às vezes, a crônica não tem essa obrigação. Ela pode ser uma observação subjetiva, uma coisa atemporal. Pode ter sido escrita dez anos atrás ou dez anos à frente. Ela trabalha nesses dois registros. Agora, se a literatura contemporânea brasileira dá conta disso? Acho que dá. Há uma geração de romancistas novos interessante. É uma geração que não tem manifesto. Não tem construção formal, teórica. Não tem lírica a priori. É fragmentada. Cada um tem o seu caminho. Às vezes, nem sabe direito qual é o caminho, mas o vai desenvolvendo. Não tem combinação. Não existe afinidade estética. De repente, existe alguma, uma afinidade de bar talvez, mas não uma afinidade estética como aconteceu com o modernismo. Não há esse plano. E, mesmo sem plano, essas vozes conseguem dar conta do Brasil. Daqui a 30 anos, se você ler os livros que estão sendo escritos agora, neste momento em que a gente está conversando, vai entender um pouquinho como era o Brasil do início do século.

• Embaixadinha e bambolê
O mais importante escritor brasileiro em atividade é o Sérgio Sant’Anna. É só lê-lo. Este último livro, por exemplo, O vôo da madrugada. Sérgio é um virtuoso. É espetacular. É um estilista, um cara que consegue registros complemente diferentes. Tem uma erudição que não é chata. Dá espaço para o leitor interpretar e tem conceitos e idéias fantásticos. Sérgio Sant’Anna faz embaixadinhas, malabares e bambolê.

• Vida literária
Participo da vida literária a partir do momento em que ela me convoca. Fiz amigos escritores. Chico Mattoso, que publicou agora o seu primeiro romance, Longe de Ramiro, e que acho sensacional. Antonio Prata também é meu amigo. Ele também estava escrevendo seu primeiro romance, que talvez já vá sair. São meus amigos. Joca Reiners Terron — que, apesar de dizer que é da minha geração, acho que é de uma anterior. Eu sacaneio o Joca dizendo que ele é da geração 90 e está louco para fugir de lá. Ele senta na nossa mesa para ficar mais jovem. Tenho orgulho de tê-lo como interlocutor. Além de ser um grande escritor, o Joca é um cara que sabe tudo de literatura latino-americana. Ele é um farol. Tem uma verve de crítico ensaísta que eu, por exemplo, não tenho. E admiro quem tem.

• Pronto para largar tudo
Quando termino de escrever um livro, nem sei se vou escrever outro. Gosto de me sentir pronto para largar isso a qualquer momento. Terminei Corpo presente e ele foi tão bem recebido, que fiquei quatro anos sem publicar outro livro. Detalhe: escrevi outro livro entre Corpo presente e O dia Mastroianni, mas não o publiquei. Porque o livro era uma doença. Não gosto nem de falar. Um dia, de repente, vai ser publicado. Mas dei uma guinada, porque O dia Mastroianni é completamente diferente do meu primeiro. Um livro que eu não diria ser despretensioso, mas mais leve, mais tranqüilo.

• Eu era puro e me contaminei
Como eu não tinha nenhuma expectativa, não sabia o que era lidar com a crítica literária. Não sabia o que era lidar com esse meio, não conhecia ninguém. Ninguém. De certa forma, eu era um puro. Depois, me contaminei. E o segundo romance é uma crise. No primeiro, você é elogiado ou espinafrado — graças a Deus fui mais elogiado do que espinafrado — por algumas figuras ilustres. E quando vai escrever o segundo, você tem todos aqueles papagaios de pirata, as figuras que o elogiaram, a quem você sente que deve alguma coisa. Você está corrompido. Se você leva por aí, está corrompido.

• Escrever é desconfortável
Acho tudo muito desconfortável. Realmente acho infernal. Tem gente que diz que tem muito prazer quando escreve. Eu não tenho nenhum. Eu tenho quando termino. Termino de escrever um parágrafo, releio aquilo. Não existia antes, agora existe. Eu fiz isso. É um prazer lindo. Agora, na hora que estou brigando contra mim, é um confronto muito violento. Porque sou um leitor horrível do que escrevo. O que publico, eu não posso nem abrir. Já saio rabiscando. Não consigo. Se leio em voz alta, já mudo as coisas de lugar. É horrível. Tenho de publicar para parar de revisar, de ficar fuçando.

• Então, por que escrever?
Porque se eu não escrever sofro mais. Se eu não escrever é pior. Desde criança, invento histórias o tempo todo. Eu imaginava, enquanto estava fazendo as coisas, que estava contando aquelas coisas. Quer dizer, eu criava uma narrativa da minha vida, da existência ou de outras existências. Era uma maneira de inventar um sentido. Penso muito na morte todos os dias, o tempo todo, e isso faz com que eu me distraia. É como se apaixonar por uma mulher. Você esquece da morte.

• Para quem?
Antes de tudo, eu escrevo para mim. Comecei a escrever sem nenhuma perspectiva ou desejo de mostrar para outros. Aí, comecei a mostrar. E isso é um jogo. Comecei a gostar do jogo e falei: “Vou jogar”. Mas um romance é uma coisa muito vertical, não posso pensar em agradar naquele primeiro momento. Depois, há um segundo momento, em que pego isso que escrevi e penso: “Será que isso faz sentido para alguém que não seja eu?”. E aí converso com meu editor, com um pequeno grupo de pessoas que lêem aquilo, e reescrevo. E a coisa vai. Agora, com a crônica, não. Raramente tenho que pensar no infeliz que está tomando o seu café-da-manhã, que vai abrir aquele jornal e vai falar: “Ué, do que ele está falando? Está bêbado?”. São expressões diferentes. Uma, eu começo e não sei se vou terminar. Não sei mesmo. Agora, estou escrevendo um romance baseado numa viagem que fiz para Tóquio, no ano passado. Estou no final do livro, mas não sei se ele vai acabar. Estou escrevendo desde abril do ano passado. Ele vai bem. Na medida do possível.

• Animal da rua
Nos últimos dois anos, fiquei mais de um ano fora, viajando. Então, escrevi muitas crônicas sobre as cidades onde estive. E vou escrever uma crônica sobre Curitiba também. Amanhã vou passear. É fácil escrever quando se está viajando, porque nossa sensibilidade fica muito aguçada. Mas, quando não se está viajando, às vezes a crônica vem até você, quando você está andando na rua. Cronista tem que andar na rua. O cronista não é um animal que fica trancado numa biblioteca. Ele tem que se confrontar com a realidade urbana.

• Sacudo do Brasil
O brasileiro não parece muito interessado na arte que vem sendo feita no Brasil. O brasileiro, hoje, está de saco cheio do Brasil. Prefere ler sobre o cabeleireiro de Cabul. Ele quer ler sobre o Afeganistão, não quer ler sobre o Brasil. (…) O brasileiro tem um preconceito bizarro contra os escritores. Ele encara o escritor de duas maneiras: ou o escritor é um gênio ou é um picareta. Não existe um meio-termo. É um gênio porque é uma criatura iluminada, inspirada, tocada por Deus, e aí tem uma obra que provavelmente vai ser reconhecida só depois que ele já estiver sete palmos abaixo da terra. O outro é um picareta porque, como assim, ele está escrevendo por vaidade, por beletrismo? Como assim? O cara vai escrever um romance por vaidade? Que tipo de vaidade há em ter um livro publicado? Queria que alguém me explicasse. Cadê minha limousine? E as groupies no caminho do palco? Então, estamos nessa espécie de vale-tudo. Não entendo essa esquizofrenia. Você acha que eu estou errado? Eu estou exagerando, não é? Eu exagero muito, cara.

• Marçal contra o faxineiro de Cabul
Meus livros vendem o que a média da ficção brasileira contemporânea vende: pouco. Como vende o Marçal, como vende o Ruffato, como vende o Sérgio Sant’Anna. Eles devem vender um pouquinho mais, não é? Mas é uma faixa. As pessoas vendem praticamente a mesma coisa. Essa faixa não é grande. A faixa do faxineiro de Cabul é dez vezes maior. O Marçal Aquino não ser um best-seller é uma coisa que me assusta. O Marçal, dos nossos pares, é um cara que, além de ser extremamente talentoso, tem chegada, escreve livros fáceis de vender e de serem lidos.

• A seita dos três mil
Não sei onde está o problema. Muita gente gosta de responsabilizar os autores. A gente vai entrar num terreno pantanoso, hein? Não acho que a culpa seja dos autores. Acho que existe um vácuo aí, um buraco de alcance, de troca. É uma coisa em que os dois lados saem perdendo, tanto a literatura brasileira contemporânea quanto o público leitor. Os leitores sairiam dessa muito mais enriquecidos se, por exemplo, lessem um livro do Bernardo Carvalho ou do Marçal Aquino, e não lessem os livros de Cabul. Nada contra Cabul, nunca fui lá, só estou dando um exemplo. Mas é assim no mundo inteiro, sabia? Este ano, fui a Portugal e à Espanha, participar de encontros literários com a minha geração de escritores de 30, 40 anos. E todos reclamam e vendem a mesma coisa. Isso que as pessoas vendem aqui, no Brasil, lá é igual. Um pouquinho mais, um pouquinho menos. As tiragens são as mesmas. Então isso me assusta, porque a literatura contemporânea, salvo exceções, está virando uma espécie de seita, de pequeno círculo, onde os escritores escrevem para os seus pares. Livros para outros escritores. Cada vez mais a tendência é que o número de leitores alcance o número de escritores. Até que todos sejam escritores e leitores. O que seria lindo, se fossem milhões. Mas, como serão só três mil, é trágico.

João Paulo Cuenca no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

Amores Expressos em Tóquio
Fui convidado para ser coordenador editorial do projeto Amores Expressos pelo Rodrigo Teixeira, um produtor. Ele já fez um projeto de livros sobre futebol que se chamava Camisa Treze, produziu alguns filmes… E me chamou para fazer esse negócio. A gente convidou alguns escritores para viajar e escrever histórias de amor sobre essas viagens. Houve uma pequena polêmica acerca do uso da Lei Rouanet no projeto — e nem teve Lei Rouanet, foi tudo feito com o dinheiro deles mesmos. Sei lá qual foi o anjo que enviou esse dinheiro para ser aplicado em literatura no Brasil. Uma coisa muito rara. Mas, enfim, bancaram integralmente as viagens. E eu acho que fui o único autor que escolheu para onde foi. Era um sonho da minha infância ir a Tóquio, tenho muitas referências da cultura japonesa. Desenho animado, Espectreman, Yasujiro Ozu e Kurosawa, Kenzaburo Oe, Haruki Murakami e Junichiro Tanizaki — que, acho, é o escritor de que mais gosto. Foi muito difícil, o Japão. É uma experiência bizarra porque lá você é um estrangeiro, um alienígena. E, como já cheguei com alguns contatos japoneses, tentei me meter em lugares onde não seria bem aceito. Lá, é muito forte a presença de um ocidental. Então, você já se sente estranho normalmente. Agora, estou escrevendo um romance em que o narrador é japonês. É uma irresponsabilidade, quase uma arrogância minha me colocar na cabeça de um japonês. Mas eu gosto de desconforto, de não saber direito onde estou me metendo. Esse desconforto me faz andar. É a história de um japonês que se apaixona por uma romena. Em algumas boates de Tóquio — e nas ruas —, você vê muitas modelos do Leste Europeu, que são em média 30 centímetros mais altas que os japoneses. São como girafas douradas flutuando por aquela cidade. São muito estranhas. E eu estou escrevendo sobre esse casal, que é improvável também, porque normalmente os japoneses não saem com estrangeiras. Pelo contrário: as japonesas é que adoram um estrangeiro. Enfim, esse personagem é filho de um poeta japonês consagradíssimo, que parou de escrever há uns 30 anos. E a namorada desse poeta é uma boneca de silicone, uma dessas love dolls, que são muito realistas e caras, custam 30 mil dólares. Um dos narradores do livro é a própria boneca. Dentro dela, estão as cinzas da mãe do meu protagonista, que foram colocadas ali durante uma cerimônia budista. É um livro completamente louco. Uma história de amor. Deve sair ano no que vem, com sorte. Se eu não acabar com ele, ele acaba comigo.

• A lanterna da linguagem
Tive a sorte de conseguir transformar essa compulsão ou necessidade de expressão, de criação de sentido, numa atividade prática e — aspas, muitas aspas — “profissional”. Isso é sorte. É como se eu fosse uma pessoa numa caverna muito escura, usando uma lanterna. Para mim, essa lanterna, que me faz ver qual será meu próximo passo, é a linguagem. Essa luz é a linguagem. A lanterna é a literatura que tento produzir. Às vezes, a pilha fica fraca e não vejo nada. Às vezes, ela abre um pouco e, aí, consigo dar um passo.

• Meu filho num caiaque
Se deixaria um filho de 10 anos de idade ler Rubem Fonseca? Acho que não. Mas talvez eu estivesse errado em não deixar. Para mim, essa coisa desconexa de poder ler histórias em quadrinhos e literatura russa ao mesmo tempo foi importante. Enfim, de alguma maneira, a literatura é a cura, mas também é uma doença. É a cura e a doença ao mesmo tempo. Eu entrei nesse jogo. Se eu tiver um filho, não sei se vou querer que um dia ele entre também. De repente, prefiro que ele seja um nadador, um cara que rema num caiaque.

• Continente literário
Engraçado. Lá fora, o Brasil é muito cool e dá muito certo com a música, com as Havaianas, com as sandálias. O travesti também é uma tecnologia que o Brasil exporta muito e com muito sucesso. Mas a literatura ainda não, é uma pena. É um desperdício. O Brasil tem uma literatura de que tenho muito orgulho. É uma das melhores do mundo. O Brasil é um continente literário. Tem Clarice Lispector, Graciliano, Guimarães Rosa. O Brasil criou uma expressão: a crônica. O alcance literário que a crônica de jornal conseguiu no Brasil não tem paralelo. Ninguém tem um cronista como Rubem Braga. Tenho muito orgulho da nossa literatura do século 20. Mas, sei lá, as pessoas não conhecem Clarice Lispector. Essa cegueira é um grande desperdício. O papel de qualquer escritor brasileiro, de qualquer brasileiro, mas de um escritor ainda mais, tem que ser um pouco o de militante, não na hora de escrever, mas na hora de atuar. De criar pontes.

• Festa, rolo e fetiche
O que acho engraçado sobre as festas literárias é que, nelas, existe uma espécie de fetichização da literatura. Não sei se todas aquelas pessoas na Flip são leitoras. Gosto muito da Flip, mas desconfio que as pessoas vão até lá — algumas, não sei qual é a porcentagem —, andam por aquelas ruas bonitas, cruzam com os escritores estrangeiros e acham tudo muito elegante. Isso é surreal. As pessoas entram na internet e compram ingressos, fazem filas para ver um escritor falar. E aí tem a coisa do fetiche da presença daquele eminente senhor. Escutam o escritor, compram os seus livros, autografam as obras e não sei se depois as lêem. Tenho dúvidas. Aliás, acho que, cada vez mais, as pessoas estão comprando livros que não lêem. Eles ficam ali, ocupando um espaço vertical numa estante. É horrível, isso me dá uma angústia. Estou fazendo uma ironia aqui, em cima das festas literárias, mas acho importante que elas existam, porque essa fetichização da figura do escritor é importante. Seria importante que existisse uma revista Caras de escritores. Isso ia ajudar a vender livros. Imagine o repórter ali, e o Sérgio Sant’Anna bebendo um chope em um boteco em Laranjeiras. “Sérgio Sant’Anna relaxa numa tarde em Laranjeiras bebendo chope.” E a figura do Sérgio em meia página. Ou: “Fulano está saindo com Cicrana”. Todo um rolo — não que eu participe dessas coisas (risos). Mas há pessoas que se odeiam, que falam mal umas das outras, que trocam farpas. Acho que isso tudo tinha que ser mais explorado. Estou fazendo ironia, mas acho isso importante.

• Inveja dos poetas
Se eu realmente tivesse talento nesta vida, eu seria poeta. Mas não tenho, e escrevo prosa. É isso. Tenho muita inveja dos poetas. Eles conseguem fazer em três linhas o que um romancista às vezes tenta expressar em um livro inteiro. E a poesia é aquela expressão sintética linda e plena de significado. Imagino que seja muito mais fácil escrever um romance do que um bom poema.

• Que livro vai mudar alguém?
O que me irrita um pouco é que, hoje em dia, existe uma demanda muito forte pelo caráter utilitário das coisas. O cara lê um livro para aprender a ser feliz, a mentalizar, a meditar, a transar, a se relacionar. Ele quer tirar daquilo um ensinamento e, para mim, a literatura só é forte por ser completamente inútil. A arte é isto: é você enxergar a realidade do mundo através de um filtro, de uma visão que não é utilitária, e sim antiutilitária. E, aí, você pode mudar a sua vida.

• Dez mil livros
Sempre achei que eu fosse morrer nos próximos três ou seis meses. Isso me acontece desde os 16 anos e ainda não morri. Então, não sei como é que vai ser. Realmente me sinto esgotado. Você está o tempo todo usando e brigando com a linguagem. A linguagem não é uma coisa fácil de manipular. Não é uma massinha. É uma massinha meio dura, para esculpir aquilo é na marreta. E a idéia pura, não. A idéia pura é uma coisa maravilhosa. Tem aquela coisa que um cara falou: “A melhor coisa que eu já escrevi é o que nunca vou escrever”. Existe a idéia e existe todo o caminho que ela faz até se transformar em texto, e existe o caminho até esse texto chegar ao leitor. Só que a idéia pura nós não conseguimos transmitir. E o leitor também não vai entender aquele texto do jeito que você o escreveu. Porque, graças a Deus, isso é literatura. O que me fascina nela é o fato de cada leitor ler um livro diferente. Isso é incrível. O livro é uma construção coletiva. Eu não sou mais importante que o leitor. O leitor às vezes me fala coisas que nunca imaginei. Já ouvi umas interpretações completamente doentes. E falo: “Que maravilha”. Fico muito feliz. Não me sinto incompreendido, pois acho que o jogo literário pressupõe isso. É um jogo de espelhos. É a minha subjetividade e a subjetividade do leitor e, no meio do caminho, essas duas coisas vão se encontrar. São coisas muito específicas. Então, se eu tenho dez mil leitores, tenho dez mil livros. É maravilhoso. Nenhuma outra forma de arte chega a esse nível de subjetividade.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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