🔓 A libertação

Contos de "Mulher feita", de Marilene Felinto, mostram a passagem da representação da mulher de um estado deficitário para um de plenitude
Marilene Felinto, autora de “Mulher feita e outros contos”
01/02/2023

Uma das escritoras mais importantes da literatura brasileira contemporânea, Marilene Felinto é conhecida por seus textos contundentes e combativos, criticando as várias formas de exclusão social. Agora, em Mulher feita, ela mostra sua faceta de contista (ou de retratista literária, como explica Heloisa Buarque de Hollanda na orelha do livro), apresentando momentos diversos da vida de personagens diferentes, através de seus dilemas, memórias, a repetição de certos temas e uma escrita viva que salta a cronologia.

Trata-se de um livro com independência estética, mas que, sem dúvida, também se beneficia da experiência e das percepções da autora. Além de escritora e jornalista, ela também tem mestrado em psicologia clínica e experiência em educação popular de jovens em projetos do terceiro setor.

Já no título, Mulher feita, as iniciais de seu nome se repetem. Mulher feita que lembra a expressão “mulher feia”. A reflexão sobre a aparência, a imposição dos juízos alheios (sobretudo nos corpos negros femininos) e a construção de um juízo próprio, é tema recorrente. As histórias mostram com grande esplendor um tipo de libertação: a passagem da representação da mulher de um estado deficitário — de beleza — para um estado de plenitude — a mulher adulta, completa, que escreve (ou é dona da venda!). De mulher feia a mulher feita, como ensina a professora de desenho no excelente primeiro conto Hipertexto a lápis.

Nessa história, é o pai quem diz e repete que a protagonista é feia. A história se movimenta pelo tempo, mapeando algumas oposições. A rudeza do pai e a sua caligrafia linda, possibilitada, por sua vez, através da ambivalência entre violência da marcenaria e seu lápis apontado com perfeição. A etimologia de caligrafia ajuda: kal – gráphein, escrita bela, mas que é também escrever bem, transmutação que justamente a filha opera em seu hipertexto a lápis. Transformar um trauma, um drama da juventude, em uma imagem plena de si — através da memória e do lápis, duas mídias plásticas e, por isso mesmo, não operam nos planos cartesianos dos sentidos (a “perspectiva” em pintura que a jovem aluna não consegue encontrar nas aulas).

Questões sociais
Felinto é do tipo raro de escritor em que a ligação dura com o realismo social se mistura harmonicamente com os voos exuberantes da ficção. O real não empobrece a ficção, pelo contrário, o domínio técnico do gênero e a potência imaginativa de suas imagens (uma discussão sobre comer tanajuras, um website chamado https:mecânico-definitivo) permitem um acesso refrescado, crítico e desautomatizado ao mundo. As questões sociais estão sempre presentes, mas impactam personagens bem caracterizados. Não são tipos-ideais, mas personalidades que, embora muitas vezes compartilhem uma mesma posição, têm traços próprios, vidas próprias. É uma literatura que humaniza ao mostrar a sutileza e as infinitudes daqueles que passam apenas como figurantes ou personagens de pano de fundo em outros tipos de representação social.

Assim, se há revolta na posição da mulher, por outro lado, Felinto coloca o leitor ao lado de uma jovem que se olha no espelho e se surpreende — se maravilha — com o fato de ter peitos. “Nossa! Mulher tem peito”, afirmação óbvia, mas que na narrativa dá lugar a uma longa rememoração sobre o processo de tornar-se “mulher feita”:

Um dos piores momentos de sua vida, relembrava: “Foi quando me começaram a surgir peitos, nos meus doze ou treze anos de idade…” E dizia “me começaram” porque era assim mesmo que tinha sido, que tinham feito com ela, que não fora ela que fizera aquilo: “Me começaram a surgir peitos!”. E como esconder aquela protuberância enxerida, ela ainda menina que brincava? Coisa embaraçosa, que os meninos olhavam: “Pois vou esfregar meu peito na sua cara, seu besta!” — ela ameaçava, respondendo aos meninos que olhavam. Mas aquela remota possibilidade, aquela cena nua, aqueles mamilos atrevidos, aqueles peitilhos sendo esfregados na cara do menino… tudo aquilo lhe produzia um intenso calor corpo acima e corpo abaixo. O que era?

Uma fenomenologia do próprio corpo (um estranhamento que é reconhece-se animal) dá espaço a uma reflexão mais profunda e simbólica sobre o leite, a nutrição e o erótico, a vida que se mantém por esse leite de mamíferas humanas que têm seios. “Sou a própria projeção de mim mesma!” Com seios e de peito aberto, feita para a vida.

Metamorfoses
Mulher feita é um livro de metamorfoses. Embora as histórias não tenham relação necessária uma com a outra, podem ser lidas como um tipo de cronologia das formas e momentos da vida feminina, uma viagem de trem pela memória, também pelos encontros com outras mulheres e outras maneiras de ser mulher. Assim os contos vão construindo uma paisagem: a primeira história, lembrança da infância, é seguida pelo olhar no espelho da segunda, onde narra a mulher já feita. Daí, a lembrança de um primeiro amor, perdido e inesquecível (imagem masculina quase ausente do livro como personagem falante, colocado no plano de fundo da memória). Em seguida, a lembrança de um encontro, já adulta, em uma viagem de trem com outra mulher — mulher de outra cultura, de outra língua, todo um estranhamento, mas também, um reconhecimento de coisas compartilhadas. Adiante, o contato intergeracional da mulher adulta e da mulher velha, reminiscência viva e troca, etc.

Há um homem protagonista, no entanto, um tipo de sátira de um personagem clássico (e cansado) da ficção moderna: o escritor sem reconhecimento, cujo assunto principal é a própria escrita. Mas aqui há uma mudança significativa, pois ao invés de falar sobre seus dilemas, ele desiste e se torna mecânico de automóveis. De certa forma, ele faz o caminho contrário da personagem do primeiro conto, que passa da marcenaria rude do pai à literatura bem escrita. Aqui, não há esperança, apenas resignação e um tipo de alívio cômico. Essa divertidíssima história tem relação com as outras, sobretudo pelo tema da busca da felicidade através da busca por uma profissão.

As profissões são muitas e vão se modificando no livro: desenhista, marceneiro, mecânico, costureira. Todas, no entanto, em relação com a profissão intuída por detrás de todo o texto: a de escritora. Mas sem metáforas clássicas bem elaboradas, como na relação entre tecer e escrever. Aqui, trata-se mais de caminhos de vida, de possibilidades que se abrem e fecham. Uma visão respeitosa, mas não sagrada, do ofício de escritor. (Não é possível nesta pequena resenha, mas caberia aqui uma reflexão profunda sobre a vida da própria escritora e seus dilemas de carreira — vida cuja história se mistura com a própria história da literatura e da imprensa nas últimas décadas no Brasil).

Para terminar, os leitores de Felinto que vêm de As mulheres de Tijucopapo (um acontecimento literário fundamental da nossa literatura) encontram uma escritora mais madura, menos visceral, mas ainda extremamente cortante. Há menos uma grande diferença estilística — muitos aspectos são reconhecíveis, como seu uso das repetições, as citações, o modo teatral e ao mesmo tempo introspectivo das personagens, além das temáticas de família, raça e mulher — do que uma diferença de perspectiva diante da vida e da literatura. Otimismo talvez seja palavra simples demais, mas há uma posição intermediária, uma justa medida em relação às possibilidades da vida. A mulher feita do conto que dá título ao livro também é de certa forma a escritora feita: da pulsão vulcânica de seu livro inicial à maturidade bem humorada e crítica desses contos.

Mulher feita e outros contos
Marilene Felinto
Fósforo
78 págs.
Marilene Felinto
Nasceu no Recife (PE), em 1957, e vive em São Paulo (SP) desde 1968. É formada em Letras pela USP e mestra em psicologia clínica pela PUC-SP. Tem dez livros publicados, entre eles As mulheres de Tijucopapo, vencedor do prêmio Jabuti na categoria autor revelação, em 1983. É tradutora de autores como Ralph Ellison, Virginia Woolf, Edgar Allan Poe, Malcolm X e Hilton Als.
Tomaz Amorim Izabel

Nasceu em Poá (SP). Graduou-se na Unicamp e fez o doutorado em Teoria Literária na USP. É autor do livro de poesia Plástico pluma (Urutau).

Rascunho