Nos tempos cínicos em que vivemos, nos quais se erige um altar tênue e superficial à moralidade e bons costumes e se condena a ironia, é salutar ler um livro como Devaneios ociosos de um desocupado, do inglês Jerome K. Jerome, que a Carambaia publica em edição elegante. Eis uma obra que, por certo, afronta mais de uma tendência, das muitas que vigoram hoje no campo do pensamento.
Eis uma obra de difícil classificação. Conquanto partilhe de semelhanças formais com o ensaio e a narrativa, não se pode classificar essa obra como um volume ensaístico, nem como um romance, ou mesmo uma novela. Para oferecer ao leitor uma noção formal da obra, é pertinente trazer-lhe à lembrança a narrativa dostoievskiana Notas do Subsolo (ou Memórias do Subterrâneo, conforme a tradução): percebe-se entre as obras — em que pesem, obviamente, suas particularidades — uma semelhança considerável. Como na obra de Dostoiévski, em Devaneios… o foco é, antes de tudo, o personagem/narrador. No decorrer das páginas entramos em contato com as opiniões e idiossincrasias desse personagem curioso, que transita entre a ironia e a franqueza, entre o registro prosaico e poético. Como o próprio título da obra sugere, trata-se de acompanhar as elucubrações de um sujeito recostado em seu canto, desfechando suas observações sobre a sociedade, seus costumes, e a vida com agudo senso crítico e mordacidade.
Não é caso de se comparar tal personagem com o Homem do Subsolo dostoievskiano: enquanto este desfila seu niilismo e amargura contra uma sociedade que o repeliu e o destratou, aquele apenas pontua, com a tinta do sarcasmo e da desilusão, as fugacidades da existência, seja individual ou em sociedade. Em comum apenas a criticidade ante a existência e o aspecto formal das obras.
Aliás, a figura desse personagem/narrador é curiosa: embora pontue com visão lucidamente melancólica os desenganos da vida, apresenta-se ao leitor como um bom camarada, bem humorado e jocoso, que não guarda qualquer dúvida quanto a seu lugar no mundo (ou rancor quanto a essa posição).
Conteúdo
O livro é dividido em catorze capítulos/temas, além da dedicatória e prefácio do autor. Tais temas circulam do elemento mais abstrato (Amor, Da timidez) ao mais prosaicamente concreto (De cães e gatos, Do apartamento mobiliado).
Um índice relativamente seguro para se aferir o talento de um escritor é observar sua capacidade de desenvolver os temas, e nesse quesito os mais banais são mais reveladores: a exuberância estética e o interesse crescem, na obra do grande artista, em proporção inversa à banalidade do assunto em si. Dentre tantos, Proust é um exemplo expressivo dessa verdade estética. O autor de Devaneios… não é o gênio francês, mas fato é que Jerome consegue, num estilo por vezes despojado e despretensioso, abordar sempre com grande interesse temas os mais variados.
Vejamos o que tem a dizer de um tema tão batido quanto o amor:
O amor é luz demasiado pura para brilhar por muito tempo entre os gases fétidos que respiramos; mas, antes que seja abafado para sempre, podemos usá-lo como faísca para inflamar o fogo aconchegante do afeto.
Há na frase uma postura idealizadora das experiências da vida (tendência que volta e meia retorna no livro, ainda que de forma irônica), uma posição que beira o romantismo, mas que não se entrega plenamente a ele, porque o que prevalece ante qualquer ideal, por mais puro que se apresente, são “os gases fétidos”, isto é, o mundo e sua força incomparavelmente vasta. Ante tal força, o que resta ao indivíduo senão aquiescer às desilusões e, por fim, ceder?
Tenho para mim, caros Edwin e Angelina, que vocês esperam muito do amor (…) Ah, jovens!, não confiem muito nessa chama bruxuleante. Ela vai minguar com o passar dos meses, e não há como repor o combustível. E vocês testemunharão a brasa se apagar com um misto de raiva e decepção.
A propósito, ao versar sobre o amor, o autor tira observações sagazes sobretudo quanto às atitudes equívocas dos enamorados, contudo o estranho idealismo volta e meia se insinua:
Sejam doces [as mulheres] de mente e alma como o são de semblante (…) Ah, mulher, dispa-se das capas com que se disfarça — o egoísmo, a afronta e a afetação! Apresente-se de novo como uma rainha sob o manto real de pureza singela.
Como dito, um estranho idealismo que causará, sem dúvida, espécie à mulher moderna:
O cavalheirismo não morreu: apenas dorme por falta de ocupação. É tarefa de vocês despertá-lo para ações elevadas. São vocês que devem se mostrar dignas da devoção de um cavaleiro.
É tarefa de vocês serem superiores a nós.
Como se deve ler tais e outras páginas, que beiram a misoginia? Trata-se enfim de tal postura, ou a ironia do autor é tão sutil que induz o leitor a uma concepção equivocada a esse respeito? Eis uma questão para o leitor decidir.
Nem sempre, felizmente, Jerome mostra-se tão polêmico ou expressa-se de maneira tão sisuda. Mesmo num tema tão delicado quanto à privação humana, que leva à miséria e à fome, encontra o autor espaço para a genuína comicidade:
Existem diferentes graus de penúria. Todos passamos por apertos, uns mais, outros menos (…) Neste exato momento, eu mesmo estou precisando arranjar 5 libras (…) E se uma dama ou um cavalheiro dentre os meus leitores pudessem fazer a gentileza de me emprestar (…) poderiam enviar para o endereço dos meus editores, srs. Field & Tuer, peço apenas que nesse caso se certifiquem de fechar bem o envelope.
No trecho acima o leitor terá não apenas uma amostra genuína do humor da obra, como também do estilo despojado. Contudo, não raro, no que toca a este último, cede-se a vez, no decorrer da narrativa, a um manuseio verdadeiramente poético da linguagem:
O coração de um homem é feito fogo de artifício que reluz, breve, ao riscar o céu. Qual meteoro, cintila por um instante e ilumina com sua glória todo o mundo aqui embaixo. E então as trevas de nossa vida cotidiana e infame irrompem e o sufocam.
E como se pode observar, um manuseio certeiro, alinhando uma expressão admirável com um conhecimento lúcido da vida. Deve-se às metáforas do autor a impressão favorável quanto ao conteúdo, de maneira que o raciocínio não enverede pelo moralizante, mas sobretudo pelo lógico.
Jerome, aliás, através de seu personagem, se mostra disposto a rir de si mesmo, porém com mais intensidade se ri das instituições e pessoas ao seu redor: a Igreja, a Sociedade, o Homem e a Mulher, os costumes e sua hipocrisia.
Cabe ressaltar, por fim, que o ataque não é a única faceta da obra. O autor também dedica sua pena à análise especulativa de elementos constitutivos da existência humana. É assim que surgem insights perspicazes em temas tão intimistas quanto a Memória, aliás tópico final da obra:
O mundo se enche de fantasmas à medida que envelhecemos (…) Todas as casas, todos os cômodos, todas as cadeiras que rangem têm seu próprio fantasma particular. Eles assombram as câmaras vazias da nossa existência.
E tais temas, em que pese a presença de alguns um tanto banais, representam o que há de mais misterioso e essencial da condição humana. É neles que reside o interesse maior da obra, embora o humor e descontração sejam os principais fiadores da agradabilidade da leitura. Com o decorrer das páginas, entre uma risada e outra, a impressão que mais ganha força é que se está diante não de um gracejador barato, mas de um autor cujo espírito fino desvela com desenvoltura e graça as incongruências das condutas humanas (inclusas aí as do próprio personagem/narrador) e as desventuras da vida.
É um alento e tanto que tal conjunto seja revestido de um invólucro despretensioso, mostrando que o autor tem plena consciência do que quer em seu trabalho. Quando uma obra é assim bem resolvida, a satisfação do leitor é uma consequência inevitável.