Casas vazias traz duas histórias regidas pelo mesmo centro de tensão temática: a maternidade. A primeira delas é narrada por uma mulher cujo filho desaparece, tragando-a para um sorvedouro de autoacusação e desesperança; a segunda dá voz a uma personagem moldada por tipos de violência, que aceita e comete atos reprováveis no afã de ser mãe. Em seu romance de estreia, a mexicana Brenda Navarro constrói estes relatos em sendas paralelas que, a certa altura, se cruzam. A destreza com que a autora articula e imprime um senso contundente de verdade aos testemunhos oferece uma experiência de leitura irresistível por conta do suspense vinculado aos desdobramentos dos fatos, que se desatam do compromisso ficcional para também examinar os dilemas da concepção num ambiente misógino. No entanto, o grande trunfo do livro está em usar de dramas individuais para explicitar mazelas de proporções nacionais, de forma intuitiva, quase sussurrante.
A trama se inicia com o sumiço de Daniel num parque, em plena luz do dia. O instante de desatenção da mãe, ao telefone, basta para lhe faltar o filho de três anos, ativando uma torrente mental de sentimentos sombrios, segredos destrancados e pensamentos subversivos. Casada com o espanhol Fran, que lhe proporciona uma vida confortável de classe média, a personagem nunca desejou a maternidade e, menos ainda, ter de cuidar de Nagore, a sobrinha do marido que foi morar com eles, depois de a mãe ser assassinada e de o pai ser preso pelo crime. Seu papel, no elenco familiar, sempre foi de fingir atitudes e suprimir intenções, descontando na menina e fraudando afeto pelo filho, que manifestara o espectro autista. O desafogo foi encontrado num caso extraconjugal com Vladimir, “um amante que oferecia barganhas sexuais como se fossem presentes”. Era ele quem estava do outro lado da linha anunciando o fim do relacionamento, no momento da perda de Daniel. A raiva e a culpa advêm dessas duas separações — talvez.
De um outro degrau social, ressoa a segunda narradora, uma mulher que sobrevive do trabalho braçal, em meio a penúria e maus-tratos. Rafael, o namorado, um escroque dos mais repulsivos, é mais um perpetuador de abusos que ela tolera, obcecada pela maternidade. Num passado, chegou a engravidar, mas sofreu um aborto, tendo de ser levada às pressas para um hospital sucateado, enquanto o amante a traía com a cunhada adolescente. Ela prefere se cegar, acolhendo humilhações, imersa na expectativa da chegada do filho. E, quando a natureza não atende a sua vontade, decide agir por conta própria. Sequestra um menino, a quem chama de Leonel.
Duas perspectivas
Navarro aposta numa estratégia de escrita usual, que consiste em alternar duas perspectivas para um mesmo conflito, definindo uma a contraparte da outra. Enquanto a mãe de Daniel irradia recusa, a sequestradora de Leonel é um fosso de permissão. O talento está em escapar, incólume, da armadilha do estereótipo, dando forma a narradoras que conseguem passar para o leitor a verdade da vivência do desespero, de estados de consciência febris. Esta é a chave de comunhão para com o texto, pela qual o mistério encontra aderência, mas, principalmente, faz entender que é apenas um chamariz para assuntos que apontam mais para o real do que se fermentam na imaginação. Trata-se de um romance que contém, em seus interstícios, nuances de ensaio. Uma reflexão crítica corajosa, ora delicada, ora feroz, sobre a idealização da maternidade, demolindo convenções, pesos morais e valores preestabelecidos. Ser mãe é exposto como uma doença física e mental exclusiva da mulher. E aí se pode compreender claramente os pontos de amarra do enredo, decodificados em situações distintas, de aparente arbitrariedade, contudo direcionadas para um discurso premente: a condenação do feminino.
É a mãe que se martiriza por ser martirizada pela perda do filho. A órfã de um feminicídio que, tirada de seu lar, passa a ser tratada como estorvo por quem deveria lhe oferecer algo de acolhedor. A descendente de um legado de crueldades que, em função de um anseio profundo, torna-se refém de manipulações aviltantes. A adolescente que, enganada num jogo sexual, não percebe ser um fantoche descartável. Todas enganadas, todas emocionalmente em frangalhos, todas vítimas de uma cadeia de cerceamentos, intimidações, constrangimentos e censuras praticadas por discípulos de um Estado patriarcal, que associa a gravidez ao princípio de existência da mulher.
Afora isso, são socialmente quase nada; casas vazias, numa das tantas possibilidades de interpretação do título. Portanto, não há escândalo quando somem, tampouco quando são agredidas e/ou assassinadas. Navarro incorpora esta substância de protesto e denúncia em contextos que suas personagens necessitam de amparo do poder público ou dos maridos, dos namorados e dos pais que as circundam. O descaso indica uma precariedade tanto quanto são, pela condição e pela conduta, os mecanismos e os agentes que os monitoram, indiferentes ao processo de falência humana, da instabilidade dos sentimentos e da fragilidade dos direitos, da falta de solidariedade e da intolerância, fazendo dessas histórias uma espécie de geografia pulsante por onde reverbera uma compreensão mais abrangente. Com domínio e extrema sutileza, a autora direciona o olhar para seus retratos 3X4 de modo a divisar um cenário nacional, um México onde mais de 100 mil famílias enfrentam a dor de ter um ente desaparecido, onde dez feminicídios são registrados por dia, onde escritoras, a exemplo de Fernanda Melchor, do também ótimo Temporada de furacões, precisam fazer da literatura um libelo de resistência.
Em dado momento da trama, os pais de Daniel são comunicados que a polícia encontrou o cadáver de um menino que foi violentado e preso para fazer vídeos pornográficos. Não era seu filho e, ao deixarem o necrotério, alguém diz que ainda há esperança. “Esperança de quê?”, questiona-se a mãe. E essa é a frase que fica circulando na cabeça ao fim da leitura deste grande livro. Casas vazias é a ilustração de um pesadelo sem fim, que incomoda não pelo horror que proporciona, mas pela percepção de que ninguém mais se sensibiliza a ele.