O nome de Emily Dickinson (1830-1886) há muito circula por aqui com seus poemas em nossas revistas, jornais e edições parciais. Basta citar o nome de dois leitores de sua obra: Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. De fato, é possível identificar a circulação de seus textos a partir de algumas traduções: Manuel Bandeira, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Ana Cristina Cesar, Cecília Meirelles, Mário Faustino, Paulo Mendes Campos, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, José Lira, Isara Mara Lando são somente alguns dos tradutores que aceitaram o desafio do embate e mergulharam na linguagem potente e concisa, que é uma de suas marcas.
A publicação de seleções e fragmentos é, certamente, um meio para introduzir e fazer circular a obra de um autor num sistema literário e cultural diferente. Esse movimento vai criando redes, estimulando a leitura e estabelecendo contatos, inclusive, imprevistos. Recortes que vão compondo as tesselas de um grande mosaico, imagens que vão sendo perfiladas de Dickinson por meio das inúmeras releituras oferecidas pela tradução. Mosaico que entre 2020 e 2022 ganha duas tesselas fundamentais que acabam por coroar a recepção dessa grande poeta americana no Brasil. Trata-se dos dois volumes que reúnem os mais de 1.800 poemas, traduzidos por Adalberto Müller e publicados em parceria pelas editoras Unicamp e UnB.
Sim, é isso mesmo! 1.800 poemas. Porém, somente cerca de 10 deles foram publicados em vida, com modificações externas. A circulação de seus textos ficou por muito tempo restrita ao espaço íntimo da correspondência: as famosas cartas enviadas para familiares e amigos. É só em 1890, depois de sua morte, que sai um primeiro livro, organizado por Thomas Wentworth Higginson e Mabel Loomis Todd, que pouco ou nada incentivaram a publicação de seus textos em vida e fizeram intervenções no material poético. E é só depois de 80 anos de sua morte que sai uma edição de sua poesia, reunindo mais de 1.770 textos, organizada por Thomas H. Johnson. A dificuldade na organização dessa obra é também dada pelo fato de ela não datar seus manuscritos e de não ter o hábito de colocar títulos. O esforço realizado diante dos fascículos e folhas, como enfatiza Adalberto Müller, é um trabalho sobretudo arqueológico, filológico, diante do mundo das variantes.
Trabalho artesanal
Uma outra curiosidade e particularidade é o modo como Dickinson conservava esse material. Ela organizava seus poemas em fascículos, as folhas duplas dos manuscritos eram costuradas uma a uma. Vale lembrar que a costura é um trabalho artesanal tipicamente feminino. A agulha que abre o caminho para a linha juntando tecidos, construindo formas, aqui une poemas e produz “autoedições” num quarto solitário em Amherst (Massachusetts). O conhecido isolamento da poeta não significa uma não adesão à vida literária. Dickinson mantinha uma correspondência constante com críticos importantes, lia com frequência os jornais e livros publicados, escrevia sobre questões de seu tempo como a Guerra Civil e era constante a troca de cartas com amigos e poetas. A solidão se torna reclusão mais para o final da vida, e o delicado/duro trabalho com o jardim (outra atividade artesanal) se entrelaça à escrita e a costura.
Aos 35 anos, em 1865, a poeta já tinha seus famosos fascículos e neles trazia uma nova estética para a poesia, mesmo que ela não tivesse uma clara consciência disso. A não publicação de um livro em vida é, sobretudo, fruto da incompreensão por parte de seus interlocutores, que talvez não conseguissem perceber o frescor daqueles versos com suas lentes tão coladas ao presente. São trinta anos de observação da sociedade americana, paradoxalmente quase sem sair de casa, sob o impacto da Guerra Civil, sendo seu pai e amigos mais próximos abolicionistas. Num determinado momento, os fascículos vão deixando de ser montados e costurados enquanto há um aumento considerável das cartas. Isso é interessante, porque como aponta Müller, “os limites entre a prosa das cartas e a poesia dos versos começam a se desfazer. Isso já estava visível, aliás, nas famosas Master Letters, cartas que ela escreveu entre 1858 e 1861 a um ‘mestre’ desconhecido e as quais nunca enviou”.
Para Augusto de Campos, tradutor de 80 poemas, a poesia de Dickinson surpreende. Montagem a partir de paradoxos, uma linguagem límpida, cortante, mas em nada simplista é uma de suas características: “Conta toda a verdade, mas de viés”, diz um de seus versos. Essa escrita constrói possíveis vias entre o concreto e o abstrato, para tal a observação do que está ao redor (aranha, borboleta, abelha, cochonilha, casa, janelas) se torna fundamental. O profundo mergulho na linguagem não pode deixar de produzir uma poesia pensante que demanda por incursões e desvios filosóficos. Especialmente, a partir de 1870, percebe-se uma entrada na esfera do indecidível, como já apontaram alguns críticos, que se desdobra inevitavelmente tanto em rupturas com a métrica e o verso quanto em jogos com os espaços brancos da página.
Religiosidade
Os temas mais tratados em seus poemas são a relação com a natureza (questões ligadas ao antropoceno), problematizações no que concerne a fama e a glória, a fobia social, a religião, o amor lésbico. Sem dúvida alguma, o embate com a religião, nascida numa família puritana, é algo crucial, confirmada pela frequente intertextualidade com o texto bíblico. A rigidez da educação com todas as suas imposições e o cotidiano cristão fazem parte daquela parte de mundo que é vivida, sentida e observada pela poeta. Como disse Eugenio Montale, Prêmio Nobel em 1975, num dos textos críticos a ela dedicados, não se pode negar que Dickinson seja uma poeta essencialmente religiosa. Deus para ela é um personagem, afirma Montale, com que mantém não uma conversa, mas uma disputa em perpétuo litígio. Ela o acusa de duplicidade, com dificuldade o perdoa por ter criado o pecado original, mas, no fim, Deus permanece para ela o Pai, o Motor. Todavia, não numa arquitetura monumental, mas sim numa construção poética “frágil” e “sutil”.
Todos estes temas falam para além do seu presente e da sua realidade interiorana no Massachussets. É talvez o traço do contemporâneo, tal como lido por Giorgio Agamben, que encontramos nos textos de Dickinson, quando o filósofo italiano afirma que a contemporaneidade é “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias” e, continua Agamben, “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”.
Para além dos temas já indicados, a forma do poema e a própria linguagem de Emily Dickinson reafirmam essa marca de contemporaneidade, que como vimos não significa simplesmente pertencer a um tempo. A métrica irregular, as rimas “despreocupadas”, certa liberdade sintática, uma mão originalíssima nas pontuações a distanciam das tendências mais recorrentes de sua época, e provocam tensões (basta pensar nas propostas de intervenções e correções de seus poemas). A capacidade de síntese na complexidade atrai os leitores para seus poemas curtos, chamativos, concisos e velozes como flechas. Flechas que incidem de modo incontornável na segunda metade do século 20 e em todo o 21. O léxico certeiro, minimalista, pulsa de intensidades: uma estratégia, aqui, é aquele pouco que diz muito.
A tradução de Adalberto Müller foi sendo feita ao longo de sete anos e oferece aos leitores brasileiros a inteireza dos 40 fascículos conforme “editados” pela própria poeta e muito mais. A leitura dos volumes, as mais de 1.700 páginas da edição brasileira, mostra como num determinado momento a poeta está preocupada com a estrutura da estrofe e do verso e como, num segundo, essa atenção sofre corrosões. O Volume I – Os fascículos é composto, então, por esses 40 fascículos em inglês e na tradução em português, que foram escritos até 1865, ou seja, até seus 35 anos. As ilustrações de espécies florais e ervas que estão na capa e no interior dos dois volumes remetem tanto ao famoso herbário da poeta quanto às plantas cultivadas no jardim da casa paterna.
O Volume II – Folhas soltas e perdidas é composto por poemas que não fazem parte dos fascículos e por uma cronologia da vida de Dickinson. Aqui, vemos como depois de ter alcançado uma maturidade de escrita, ela continua em busca de algo, continua experimentado a própria escrita. Essas Folhas soltas complementam e aprofundam a leitura dos Fascículos. Trata-se de um mergulho profundo no laboratório poético de Emily Dickinson, no qual o percurso de Adalberto Müller enquanto professor de Teoria Literária da Universidade Federal Fluminense e enquanto escritor ajuda a abrir frestas para essa tradução de grande fôlego. Tanto a edição americana de referência quanto a brasileira corroboram o fundamental papel das instituições universitárias, das trocas e produções intelectuais que geram e possuem um impacto mais do que relevante no campo cultural e intelectual.
A edição de Cristianne Miller, Poems as she preserverd them, publicada em 2016, pela Harvard University Press, é a referência para a monumental tradução brasileira. A de Miller é a última edição em língua inglesa que se difere das demais por propor os poemas na pressuposta ordem que Dickinson os deixou e organizou. As numerações estabelecidas por outras edições, por exemplo, são abandonadas, os poemas, agora, são separados por um sinal gráfico e, geralmente, são acompanhados por uma data. E esse trabalho de restabelecimento da “série” só foi possível graças ao grupo de pesquisadores e estudiosos que trabalhou ao lado de Miller, que ainda assina o prefácio do Volume I.
Obra de referência
O resultado é uma obra, sem dúvida, de referência, como poucas publicadas no país, possível graças à parceria entre as editoras universitárias Unicamp e UnB. O trabalho e o esforço para essa tradução também podem ser lidos como uma resistência ao famoso jargão poesia não vende! Quantas portas não são fechadas todos os dias? Quantas possibilidades de mundo não chegam, porque as regras do mercado editorial também impõem obstáculos? E quais as responsabilidades éticas dessas escolhas? Aqui entramos num terreno pantanoso, pois trata-se do que é oferecido pelo mercado que regula o próprio mercado. É triste nos darmos conta de que muitas editoras ao invés de terem um papel de responsabilidade diante do campo cultural, parecem preferir investir naquilo que é mais fácil e cujo retorno é mais imediato; regulando assim — direta e indiretamente — a oferta e, portanto, o que chega nas mãos dos leitores e pode ser lido.
Não se trata aqui de fazer uma batalha cultural (essa é uma longa discussão), o importante é ter a consciência de que há espaço para tudo, tanto para os best-sellers quanto para o que poderíamos chamar de long-sellers. Num país com tantas carências e ausências no campo da educação, que venham mais e mais traduções… as lacunas são imensas!!
A característica dessa publicação, contudo, é ser uma edição crítica, com importantes paratextos e análises que já são uma referência para alunos, professores e estudiosos. A organização de uma obra completa é sempre algo que se deve comemorar, é sempre um feito, mas, por outro lado, também há riscos como o de “congelar” uma imagem da figura do escritor e de seus textos. A empreitada de Adalberto Müller parece não cair nessas armadilhas da “completude”, uma vez que ele remexe e desconstrói um pouco da figura da própria poeta e abre, por meio dos ricos e perspicazes paratextos, para novas possibilidades de leitura. Não se trata só de tradução, o que já seria muito!, mas nos é oferecido: 1) a história editorial dessa obra, que não deixa de falar e acenar para concepções e visões do próprio campo poético; 2) as variantes, as mudanças e intervenções de Dickinson, ou seja, a trama de seu processo criativo. Poderíamos, então, pensar nesses dois volumes como uma espécie de “arquivo” da obra de Emily Dickinson, um arquivo que traz a marca da pesquisa e da tradução brasileira.
Ana Cristina Cesar ao refletir sobre sua tradução de um poema de Dickinson se coloca o problema da forma curta e da problemática acerca da diferença do inglês e do português, sendo o inglês uma língua monossilábica:
Essa tensão entre condensação e inflação me faz ir em frente. É, na verdade, uma tensão e não uma regra. Mas, como regra, poderíamos dizer que as melhores traduções são aquelas que: 1) procuram reduzir a taxa de inflação ao mínimo; 2) tentam absorver o esforço original de dar condensação ao poema; 3) procuram encontrar mais equivalência para esse esforço específico do que para o significado original.
Um questionamento semelhante décadas antes é feito por Montale que traduziu muito do inglês para o italiano, mas traduziu somente um poema de Dickinson. Todavia, Montale parte do pressuposto que diante da escrita da poeta é preciso desmontá-la, desoperá-la para que possa funcionar numa língua outra, no ritmo do outro, costurando elementos presentes do texto fonte. A porta de entrada para eles na tradução está no respeito da “taxa de inflação ao mínimo”, escolha que impõe um percurso que sai do poema para poder depois voltar a ele.
É a partir dos termos costura, pesponto e sutura que Adalberto Müller fala das escolhas tradutórias:
de um lado, a tarefa de costura, que obriga o tradutor a adotar uma posição “editorial” que dê coerência e harmonia ao conjunto dos poemas. Além de seguir a edição de Miller, foi necessário consultar os manuscritos, outras edições e várias traduções — sobretudo a tradução alemã da poesia completa de Gunhild Kübler. Mas acrescento aqui, neste prefácio [Vol. II], que a minha costura é um pesponto, como se diz: ela reforça o trabalho editorial de Cristianne Miller, mas dá um acabamento à moda, necessário à melhor inteligibilidade da obra de Dickinson no Brasil de agora. De outro lado, opera-se a sutura, que é uma forma de manter o texto em seu regime de indecidibilidade (ou de “mistério”, se assim se quiser). Isso levou a algumas escolhas que ultrapassam o “sentido” de cada poema individual.
O que temos aqui é um relato sintético do complexo e poroso trabalho de tradução, que olha para cada poema, mas, ao mesmo tempo, precisa manter uma relação — mesmo que tensa — com o todo. Do mesmo modo, as ligações com a edição de Cristianne Miller não poderiam ter uma única direção, ponto de partida sim, reconhecendo a importância do trabalho da equipe de Miller, mas é preciso dar “um acabamento à moda”. Ou seja, é preciso dar contado sistema cultural que acolhe, um equilíbrio para a inteligibilidade. E nesse caminhar entre línguas, experienciando linguagens, acompanhamos também reflexões do tradutor sobre suas próprias escolhas. É o que acontece com o verso em inglês, “The Soul selectes her own Society”, que na tradução em português fica: “A alma escolhe as suas Amigas”, considerando que o termo “society” se refere a “algo que se relaciona aos amigos íntimos, sócios na amizade”. Müller, aqui, reconhece que sua solução não é a mais feliz, e a coloca ao lado da de Ana Luísa Amaral, que segundo ele é excelente para o ouvido português: “A alma escolhe a sua Companhia”. Entre a luminosidade e a escuridão, o que resta é um reluzir, aquele movimento bruxuleante que faz parte do próprio laboratório de Emily Dickinson.