A fotografia merece minha carinhosa atenção e parte do meu tempo. Certo dia uma senhora telefonou, pretendia combinar preço e horário, para eu fotografar os animais no zoológico. Respondi que naquele lugar jamais. Nessas minhas quase sete décadas neste planeta, estive duas vezes em zoológicos, não sei qual a pior. E prometi: nunca mais. O olhar de alguém preso é sempre acusador e ao mesmo tempo suplicante. Nunca mais.
Por que olhar para os animais?, uma coletânea de ensaios de John Berger, aborda o fim dessa relação entre os seres humanos e os animais. Os jardins zoológicos ainda são muito frequentados, mas o olhar entre homem e animal não existe mais. O que se percebe é a crueldade envolta na aspereza da condescendência: “o homem está preservando essa espécie”. Este argumento vulgar inclui a extinção da liberdade. Preservação e extinção, argumentos não faltarão.
Nossa relação com os animais, ou melhor, com a natureza é algo inconsciente. Aqui deixo de lado alguns significados de inconsciente, me refiro aos processos mentais que ocorrem alheios à nossa percepção. Se que tenhamos consciência. É o que acontece nas idas aos zoológicos, olhares apressados e insensível e olhares assustados e condenados. O que me fez lembrar da história contada por Adalberto Maru Kaxinawá e Joaquim Mana Kaxinawá.
A história vem de um tempo longo, médio, recente.
De ontem, hoje, amanhã.
História é passado, história é presente.
A história é como o mundo, porque não tem fim.
É um caminho muito longo.
Enquanto o tempo vai passando, mais histórias vamos construindo.
História é passado, história é presente.
A história não é só do ser humano. Também é dos encantados, dos animais, da floresta, dos rios e dos legumes.
História está em todo lugar do mundo.
Esquecemos de interagir com a natureza, interagir começa por respeitar, o máximo que conseguimos é ler/ver/ouvir notícias sobre conferências climáticas, nos sentirmos mais próximos das motosserras do que das florestas, dos animais, e dos seres humanos preocupados com a saúde do planeta; quando tomamos conhecimento das manifestações de Greta Thunberg e dos Médicos Sem Fronteiras. Isso mesmo, preservar o ambiente, florestas, animais, não implica fechar os olhos, esquecer, negar a imensidão de pessoas que sobrevivem quase por milagre.
Um filósofo e a morte é o título do último ensaio de Porque olhar para os animais? No centro o filósofo Ernst Fischer, o texto pode ser lido como uma crônica sobre amizade e morte.
“A primeira decisão que tomei na vida”, ele disse, “foi não morrer. Quando era criança e fiquei doente, à beira da morte, decidi que queria viver.”
Somos finitos e, diante da história do mundo, somos ridiculamente finitos. No entanto, exercitamos inúmeros subterfúgios no afã de esquecermos ou disfarçarmos essa nossa importante característica. Diante disso, uma dúvida me assalta: se tudo, talvez à exceção das pedras, acaba devido à ação ou prazos de tempo, não seria o tempo seu próprio algoz? O tempo n’algum tempo encontrará seu ponto final. Logo, somos frágeis concessões do tempo em seu propósito de nesse período aprendermos a nosso respeito e dentro do possível nos melhorarmos, logo tornaríamos o mundo um cenário menos cruel.
Mas o que nos torna tão abjetos nessa relação com os animais, com a natureza? Ausência ou congelamento de sentimentos?
Um gato
Certa vez um homem encontrou alguns gatos e com eles passou a brincar.
Um gato, porém, recebeu atenção fora do normal e não tardou a morar com o homem. Logo foi providenciada a castração e o gato morreu antes de começar a cirurgia. Ao receber a informação o homem chorou muito. Afora o amor interrompido, por que mais ele chorava? Eu sei. Por sentir-se envergonhado, por não se permitir ser ele mesmo. E como se dera conta dessas inúmeras lacunas? O que o despertara para si? Por que aquele homem curioso usava tal característica para pesquisar, investigar, estudar, inúmeros aspectos do viver e negligenciara o que estava mais perto, junto, o seu interior, a sua essência, a sua capacidade de sentir? Capacidade que ele imaginara, equivocadamente, passível de ser subjugada. Dominar o sentir usando como ferramenta o intelecto. Mas seriam necessariamente dissociáveis o sentir e o saber intelectual? Ele tinha consciência, porém, externamente, fazia questão de negar; da inseparabilidade do sentir e pensar, essa união que desafia toda nossa racionalidade e nos devolve uma condição que desde criança vivenciamos. A criança que tem a chave da nossa sensibilidade, a criança que enseja a descoberta por nós em nós mesmos, pavimenta o caminho do autoaprender, aprender consigo mesmo, moldar-se, fazer-se; ao mesmo tempo autotransformar-se. E aquele gato despertou o homem velho, consequentemente a sua criança, no sentido de refazer-se.
Relação homem x animal
O ensaio que empresta o título ao livro de Berger, Porque olhar para os animais?, faz referência a essa desrespeitosa ou talvez inexistente relação homem/animal. A velocidade do mundo atual, a necessidade de espaço, pouco espaço para o amor? Todas as alternativas?
E o homem mencionado anteriormente precisou do triste episódio para então admitir a união do sentir e do pensar. Ele continuará em sua tentativa infinda de se melhorar, de aprender, e de sentir. Um gato morreu para transformar um homem. O homem que chorou como chora uma criança em sua plena sinceridade do sentir, um homem que buscou no sofrimento a sua própria criança para juntos sentir. O gato morreu, o homem sofreu, um dia ao passar pelo mesmo lugar onde encontrara aquele gato, avistou um filhote, um gatinho preto e branco, e ambos, homem e gato, olhares opostos, se encontraram. O olhar do gato impressionou o homem, o homem que percebeu o olhar do gato filhote, no entanto, já era outro. Transformado pelo gato que morrera e sua prospecção de sentidos para aquilo. O homem percebera sua mudança e por semanas procurou o gatinho, que, no papel de gato de rua, fugia. Até o entardecer quando despencou de cima de um armário onde comia ração que o homem costumava deixar desde o dia em que percebera gatos naquele lugar. Então, sob protestos sonoros e arranhões, o homem levou o gatinho cujo olhar fez com que mais uma vez aquele homem velho refletisse sobre o sentir, o ser, o ter e o viver. Homem e gato tornaram-se inseparáveis. O gato ensinou aquele homem a sentir. A sentir o sentir. E qual a maneira de chegar a si? Pelas vias do sentir. O homem que sentenciara um novo momento, pelo menos no que tange aos limites do seu lar, a partir da morte do último de seus animais domésticos, e logo a presença daquele filhote reacendera uma frase de Darwin:
Somente quando nos preocuparmos com a totalidade dos seres sensíveis nossa moralidade atingirá seu nível mais alto.