Há algumas semanas, o mundo estava em compasso de espera pela decisão de quem seria o novo presidente norte-americano. De certa maneira, tantas coisas aconteceram de lá para cá que, com efeito, parece mesmo que o político democrata Barack Obama já esteja governando os Estados Unidos da América, que, até outro dia, era a mais completa tradução de potência mundial. Obama, no entanto, ainda não é presidente dos EUA e, apesar de tudo, os norte-americanos ainda possuem o poderio econômico, militar e cultural do planeta, naquilo que o pensador italiano Antonio Gramsci chamaria de hegemonia.
Tamanha influência não veio de graça ou via direito divino. Em verdade, antes desse período de “fim da história”, para aludir à controvertida tese do cientista político Francis Fukuyama, o que se viu foi uma longa disputa durante a Guerra Fria. Nesse momento em específico, entre o final da década de 1940 e o início da década de 1990, tanto os Estados Unidos como a URSS travaram o combate com armas visíveis e invisíveis, ora com o chamado hard power — os exércitos, as batalhas, a corrida armamentista —, ora com o soft power — a influência cultural, o cinema e a disseminação dos valores do mundo livre. Ainda hoje, é possível perceber nos discursos presidenciais, e não só dos políticos republicanos, certa referência a esses conceitos que, para alguns especialistas, são estratégicos na disputa por poder. Rapidamente, os norte-americanos descobriram que a estratégia só faria sentido se pudessem controlar a informação dos inimigos em potencial. E aí que entra a Agência Central de Inteligência (CIA), conforme apresenta o jornalista Tim Weiner no livro Legado de cinzas, vencedor do prêmio Pulitzer, entre outros prêmios.
O mérito não veio por acaso. A obra, com mais de 500 páginas, traz à tona documentos, relatos, bastidores e memórias sobre uma instituição que nem sempre foi entendida mesmo por seus diretores ou pelos representantes máximos do poder norte-americano. De início, portanto, o autor revela quais foram as condições e circunstâncias que envolviam o período em que a Agência foi criada. Nesse aspecto, sobram conspirações e disputas intestinas pelo poder. Chama a atenção, por exemplo, o fato de nem mesmo nos Estados Unidos a decisão de se criar uma instituição como a CIA era consenso. Mesmo no tocante à estratégia a ser definida, se seria apenas interceptação de informação ou trabalho de espionagem contando com dissidentes internos, não estava totalmente definida. E a todo o momento, Tim Weiner ressalta que é essa indefinição a principal característica da Agência até os nossos dias.
O livro de Tim Weiner é lançado no Brasil num momento em que há, de certa maneira, uma série de leituras sobre a CIA. Para além de Legado de cinzas, no início do ano a Record também lançou Quem pagou a conta?. Lançado originalmente em 2001, este livro da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders é um prato cheio para os teóricos da conspiração, uma vez que levanta a tese, certamente bem fundamentada, sobre o fato de a Agência contar com bom orçamento para artistas e intelectuais divulgarem as idéias do mundo livre e influenciar corações e mentes. A despeito da pesquisa da jornalista inglesa, a obra de Weiner é mais completa porque trata não apenas desse momento, localizado, principalmente, logo no início da Guerra Fria. A reportagem de Weiner é um retrato por inteiro acerca das escolhas, das motivações e dos resultados das políticas da Agência, tanto é assim que ele trata da questão cultural à página 55, quando fala do Congresso da Liberdade Cultural:
Uma das tarefas mais refinadas de Wisner foi endossar uma associação secreta que se tornou uma influente frente da CIA durante vinte anos: o Congresso para Liberdade Cultural. Ele vislumbrou um projeto que tinha como alvo os intelectuais. Foi uma guerra de palavras, lutada com pequenas revistas, livros de bolso e conferências para intelectuais. Isso incluía os fundos iniciais para a revista intelectual chamada Encounter, que criou uma onda de influência nos anos 1950 sem vender mais do que 40 mil exemplares de uma edição.
À medida que o leitor atravessa as seis partes do livro, que investiga o modus operandi da Agência ao longo de pelo menos nove administrações, de Kennedy a George W. Bush, passando por Lyndon Johnson, Jimmy Carter e Bill Clinton, a reportagem de Tim Weiner consegue dar vida aos documentos, sem deixar a leitura meramente laudatória ou oficialesca. Para além disso, o autor, como jornalista que é, sabe da necessidade de tornar os capítulos de assuntos muitas vezes áridos — como o fato de estrategistas como George Kennan serem obcecados pelos movimentos do inimigo — em um relato interessante. Atenção, no entanto, àqueles acostumados a narrativas romanescas. Decididamente, Legado de cinzas não é um livro fácil, tal qual uma obra de ficção sobre o tema intriga internacional. Em vez disso, o que se lê é uma história construída não só a partir de depoimentos dos mais variados personagens, como também na investigação e checagem de uma série de documentos relevantes sobre a Agência de Inteligência dos Estados Unidos.
Aquele que pode ser considerado o argumento central da história, o fato de a Central de Inteligência ser abaixo do que se espera, é, a um só tempo, revelador e assustador. De um lado, mostra que muitas vezes as circunstâncias favorecem um cenário de perseguição muito mais perigoso do que nos regimes totalitários. Nesse sentido, é curioso o fato de os Estados Unidos, que freqüentemente se arrogam como expoente na questão das liberdades, forjarem uma estrutura capaz de liderar uma política de contra-informação junto aos regimes que não eram considerados amigos. De modo semelhante, é assustador o fato de essa mesma Agência não ser capaz, até hoje, de lidar de maneira perspicaz com sua matéria-prima: a informação. Talvez por esse motivo, nenhum de seus diretores tenha sido capaz de saber efetivamente tudo sobre a Agência. Esse detalhe, que não é simplório, toma proporções inimagináveis quando se observa a justificativa oficial para a invasão do Iraque em 2003. Há alguns anos, tão logo tenha ficado claro que Saddam Hussein não tinha, afinal, as armas de destruição em massa, a versão do governo norte-americano era a de que, sim, os relatórios produzidos pela CIA diziam que, sim, havia armas naquele país. E o resultado final visível, mais de 5 anos depois.
Se é verdade que o império norte-americano está em declínio, e esta previsão é da própria CIA em relatório divulgado pela mídia há algumas semanas, em parte esse poder que se esvai esteve, algum dia, sob a chancela da Agência. E a virtude de Legado de cinzas é mostrar de que maneira isso acontece, de forma esclarecedora e inteligível. Ao contrário do recente filme que satiriza a CIA, este não é um livro a ser queimado depois de lido.