Caminhar por uma obra de Carola Saavedra é sempre uma delicada surpresa. A consagrada autora de Flores azuis (2008) e Com armas sonolentas (2018) parece ter construído um universo ficcional próprio, em que múltiplas narrativas se alinham, ainda que seus romances não estejam ligados entre si.

Há em alguns de seus principais personagens a busca por uma autocompreensão tão subjetiva quanto inalcançável. A escritora sabe disso. E, assim, evita soluções prontas ou epifanias transgressoras que só existem em filmes hollywoodianos.

Desde seu primeiro romance, Carola Saavedra não tem medo de arriscar. Toda terça (2007) é uma referência na construção de diálogos, enquanto O inventário das coisas ausentes (2014) brinca com a metalinguagem ao se dividir em duas partes: Caderno de anotações e Ficção.

Agora, após explorar gêneros como o ensaio em O mundo desdobrável (2021) e a poesia em Um quarto é muito pouco (2022), a autora retorna ao romance em O manto da noite.

No entanto, categorizar o novo livro de Carola Saavedra como romance é mera formalidade, até porque, mais do que nunca, a escritora recorre aos múltiplos gêneros literários para romper barreiras imaginárias.

A narrativa abre espaço para a dramaturgia e até esboça uma ficção científica existencialista, tudo isso sem que o fio condutor do enredo seja esquecido. Para tanto, estabelece, desde as primeiras páginas, um clima onírico, responsável por conferir à trama uma dinâmica própria de tempo, espaço e ritmo.

Nessa história em que identidade e ancestralidade se entrelaçam, pessoas desaparecem de uma hora para outra, distâncias imensas são percorridas em instantes e o que foi pode nunca ter sido. Há espaço para diálogos profundos com a Cordilheira e até permissão para que perguntas infantis obscuras sejam feitas (e repetidas) em voz alta.

O clima onírico é um convite para sonhar junto, ideia parecida com a tese defendida pela personagem Nina, de O inventário das coisas ausentes, ao explicar por que considera ir acompanhada ao cinema algo muito íntimo: você fica ali no escuro, ao lado da pessoa, os dois em silêncio, é como se você dormisse ao lado dela e sonhasse o mesmo sonho.

E a sensação proporcionada pelas páginas de O manto da noite é exatamente essa. É possível experimentar dúvidas e conflitos, encarar o passado e, em determinado momento, se deparar com um sentimento de pertencimento tão intenso e acolhedor quanto o mais sincero dos abraços.

América Latina
Esse pertencimento, aliás, não se limita apenas à história contada em primeiro plano, já que também abrange um subtexto tão profundo quanto a trama principal.

Há na prosa ritmada de Carola Saavedra uma história paralela que se mostra pouco a pouco, palavra a palavra. Trata-se de uma mitologia que homenageia povos originários, reforça a potência da América Latina e conclama aquele sentimento de unidade tão caro a pensadores como Lélia Gonzalez, Darcy Ribeiro, Ángel Rama e Eduardo Galeano.

Aqui, em meio a muitos outros méritos, a escritora apresenta um livro que não se encerra em si. Não se trata, obviamente, de uma obra a ser completada por leitores e leitoras, mas sim de um texto que flerta com a complexa história de uma América Latina que — assim como a protagonista — continua a buscar sua própria identidade.

As seis partes
A divisão do livro em seis partes (Pré-escrito, Primeiros anos, Cordilheira, O diário carioca, Caliban à deriva e Pós-escrito) possibilita, além de transições orgânicas, a abordagem mais profunda de certos aspectos desse universo tão bem construído.

Cada parte recorre à sua própria linguagem e faz contribuições necessárias à narrativa, sem a pretensão de apresentar verdades inquestionáveis ou entregar respostas fáceis. Os fragmentos esclarecem um ponto, para, logo em seguida, estabelecer outra dúvida.

Em O manto da noite, os personagens ou mesmo a memória, elemento tão pertinente ao enredo, estão distantes da posição endeusada da Certeza. Na quarta parte, por exemplo, há um esquecimento acidental que mais parece um ato falho, ainda que a personagem central não tenha notado isso (ou finge não perceber).

E por falar no tom confessional de O diário carioca, o intervalo entre as datas de cada acontecimento narrado serve como complemento à história, ao permitir uma observação privilegiada da relação estabelecida entre a protagonista e seu diário.

São esses intervalos que deixam subentendida a maneira que a personagem se sente em relação ao livro que almeja escrever. As diferentes frequências servem para expressar empolgação, foco em outra atividade, satisfação e, por fim, insegurança.

Também merece destaque a quinta parte do livro, Caliban à deriva, uma peça que responde algumas questões, levanta outras e estabelece, de uma vez por todas, os elementos mitológicos dessa aventura que se apresenta como um exemplo bem-sucedido de realismo onírico.

Relações familiares
Há ainda uma oscilação no campo das relações familiares, com momentos de afastamento e desconfiança e outros de pertencimento e segurança. Além dos pais, da avó e do irmão da protagonista, o conceito de família parece se estender à Cordilheira, que em certos momentos ocupa um papel de mãe-ideal, num processo que toma forma a partir da transferência.

A princípio, pode até parecer que os traumas e conflitos mal resolvidos ficarão reservados ao plano de fundo da história, ou que serão confessados apenas à Cordilheira em uma busca desesperada por aprovação. Nem um, nem outro. A autora aborda essas questões por meio de frases soltas, pequenas recusas e lembranças que voltam à tona. Para isso, faz das muitas possibilidades proporcionadas pelo sonho meios para reencontros, conversas e despedidas.

Reencontro com o passado
O manto da noite caminha por muitos terrenos e não se perde em nenhum. Carola Saavedra mais uma vez demonstra originalidade, sensibilidade e um olhar aguçado para questões como identidade, solidão, memória e ancestralidade. Sua narrativa flui e ecoa, abraça e entorpece, aproxima e desorienta.

O romance é uma delicada viagem ao desconhecido e, mais ainda, o reencontro com um passado que pulsa e ressoa dentro e fora dos sonhos. É um grande exemplo de singularidade e subversão às estruturas narrativas convencionais, com toda a delicadeza que pede uma boa obra literária.