A literatura é capaz de fazer o ajuste de contas em relação às nossas frustrações do dia a dia. Quando não conseguimos resolver nossos problemas com força física ou intelectual, apelamos à literatura. Se alguém nos derrotou num debate ou mesmo nos abateu num confronto físico, que escrevamos um romance. Nele, um dos personagens desempenhará o nosso papel da vida real e, certamente, no âmbito das letras, sairemos vitoriosos, viraremos o jogo, transformando fracasso em vitória. No caso de um debate, nossos conceitos que, de modo geral, foram refutados com sagacidade pelo adversário, mover-se-ão ao avesso por meio de investidas literárias. No romance, seu autor não estará no ardor da discussão, mas no aconchego de um lar, ou na luminosidade de um escritório. Terá então mais tempo e conforto para pensar, poderá consultar compêndios de retórica, que ensinam a arte da vitória. Vivemos num mundo injusto e cheio de perigos, onde os espertos se saem bem, enquanto o homem honesto, trabalhador, estudioso, dedicado, muitas vezes se deixa lograr. A literatura, esta senhora bem-vestida, elegante, mulher de formas harmoniosas, inteligente e ainda com certo frescor, surge então ao nosso socorro.
Outro dia, vendo uma matéria na TV, reparei jovens praticando slam, um espaço livre para se falar o que quiser, muitas vezes marcado pela rima, pela poesia. Cada autor adiantava-se e recitava o seu texto, decorado, com floreios, todos deixavam o seu recado. O evento era quadro de uma feira literária de periferia, realizada no Rio de Janeiro. Um daqueles jovens, na entrevista à repórter de TV, disse que, de início, temeu a literatura. Era ela constituída por textos de difícil acesso, como poemas clássicos e livros eruditos. Mas, depois, concluiu que não era bem assim. Encontrou jovens como ele e reparou que faziam uma espécie de literatura marginal. Salvaram-se todos. Seus poemas transmitiam sentimento de revolta, eram contra a opressão, contra o racismo, contra a homofobia etc.
A partir desses exemplos, entende-se que a literatura estará sempre disposta a quem dela precisar, venha a injustiça de qualquer lugar. O romance O portão do não retorno, de A. J. Barros, inscreve-se nesta filiação. Através de uma trama policial muito bem urdida, o autor expõe as feridas do genocídio empreendido pelos colonizadores às populações africanas. No início, temos a seguinte nota do autor:
Nas minhas viagens pela África, fui descobrindo lugares históricos e cheios de simbolismo que me motivaram a registrar em um livro essas observações. Não quis, no entanto, me limitar a uma descrição didática, e me ocorreu criar um enredo que motivasse a leitura e desse ao leitor a oportunidade de conhecer melhor a riqueza daquele sofrido continente. […] Quando se estuda a escravidão, a pergunta que fica sem resposta é: como um genocídio que sacrificou mais de cem milhões de seres humanos, com requintes de crueldade, pode ter caído no esquecimento?
Então, A. J. Barros vai tentar responder a esta pergunta.
A narrativa é dividida em vários livros, que são estruturados em capítulos, cada um desenvolvendo de certa forma, a viagem que Maurício, o personagem principal, empreende através de vários países, dando ênfase à África. A história começa com um assassinato na Irmandade dos homens pretos, uma associação com sede em São Paulo. Um amigo do protagonista, que detém um determinado segredo, é morto por pessoas desconhecidas. A vítima deixa algumas dicas ao amigo. Este parte com o objetivo de resolver o enigma. A partir daí, segue-se uma trama de romance policial, com vários personagens típicos e situações clichês, que envolvem muitos perigos. Maurício vai aos Estados Unidos, mais precisamente a Chicago, em busca de um famoso professor universitário. Deste ponto em diante, com a ocorrência de vários atentados e outras mortes, empreenderá um périplo por vários países africanos.
Estofo cultural
O pano de fundo do livro é a exposição de várias etnias e/ou antigas civilizações africanas, mostrando a superioridade e o esplendor de muitas delas. Cada país em que Maurício visita, o narrador nos presenteia com a história local, com um estofo cultural desconhecido para a maior parte dos leitores.
Dentro do âmbito da narrativa policial, há o personagem que não é um detetive profissional, mas maneja a investigação com sorte e com pessoas que aparecem inesperadamente para ajudá-lo. Aqueles que são realmente policiais acabam tornando-se coadjuvante na mão deste homem que sai a campo, percorrendo todos os locais possíveis, para completar a profecia sob a qual está submetido e revelar o segredo do enigma inicial.
O autor, que já vem de outros romances em que desenvolve o gênero fantasia, mostra-se competente neste seu novo livro, o que se pode questionar é o caráter exageradamente fantasioso de certas situações geopolíticas, todas utilizadas como recursos de argumentação. Há diálogos que envolvem o presidente dos Estados Unidos, personalidades de outros países, explosões, e mesmo um começo de guerra nuclear. Para a revelação do segredo, descoberto por este exímio investigador, vale quase o fim de todas as civilizações e também o fim do mundo.
A linguagem é leve, permitindo ao leitor avançar sem maiores obstáculos. As tramas são bem amarradas e a narrativa consegue manter a curiosidade sobre o que está por vir.
Questões como a negritude e a dívida dos países ocidentais com as nações africanas são discutidas longamente no livro, deixando entrever que se trata de algo praticamente impagável.
Volto, então, ao que disse no início. Trata-se da literatura vindo em socorro de uma causa. No entanto, o excesso de peripécias, de perigos que os personagens enfrentam, a quantidade de vítimas e um tipo de impossibilidade final nos levam a crer que o autor se municiou de alta dose de ironia. Talvez seu objetivo seja mostrar que se trata de uma causa — nos moldes em que se apresenta no enredo — quase impossível de ser resolvida. Entretanto, como diz na nota inicial, mais vale um romance do que uma explanação didática. No romance, são livres autor e leitores. E ninguém é dono da verdade.