O que caracteriza o populismo no século 21?”. A questão norteia o texto da pesquisadora italiana Nadia Urbinati, publicado na 42ª edição da serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles. Com artigos de autores brasileiros e estrangeiros, o novo número trata de temas centrais do debate atual, do enfraquecimento das democracias às disputas pela memória.
Principal destaque da edição, o ensaio de Urbinati analisa como o populismo tem transformado as democracias representativas por dentro, subvertendo a ordem institucional. Segundo a pesquisadora, “o populismo não é um movimento subversivo, mas antes um processo que se apropria das normas e ferramentas da política representativa. Como vemos hoje, os populistas exploram as disfunções da democracia constitucional e por vezes tentam remodelar a constituição. Daí a novidade do populismo contemporâneo, que se desenvolveu dentro de democracias constitucionais.”
A publicação traz também os textos dos três autores premiados na edição deste ano do concurso de ensaísmo serrote. Primeiro colocado, o escritor e tradutor soteropolitano Igor de Albuquerque assina o ensaio Modos de sentar, no qual investiga como a sexualidade, os papéis de gênero e as disputas de poder são representadas nos hits da música nacional, do pop ao sertanejo.
O historiador porto-alegrense Guilherme Moraes ficou em segundo lugar com o texto Esboço para uma teoria do conformismo. O autor analisa a presença do sentimento de conformismo no Brasil, cuja preponderância beneficiaria as classes dominantes. Em sua argumentação, identifica três elementos centrais na criação e manutenção desse sentimento: a religiosidade messiânica, o comodismo mercantil e a repressão.
No ensaio Greve nos canaviais, terceiro colocado no concurso, o sociólogo pernambucano Guilherme Benzaquen aborda o episódio de paralisação dos trabalhadores rurais de Pernambuco em 1979, durante a ditadura militar. A partir dos relatos dos grevistas, enfatiza a potência emancipatória da memória em todas as lutas.
Teju e Piglia
A revista publica ainda um texto em homenagem ao pensador palestino Edward Said assinado pelo escritor nigeriano-americano Teju Cole. A partir de suas próprias memórias de viagens, Cole intercala reflexões sobre a obra de Said, a paixão de ambos pela música e a realidade palestina, marcada pela violência da ocupação israelense. Segundo o escritor, “era sempre a Palestina que fazia o coração de Said pulsar. Por ter dado a tudo isso uma expressão, assim como demonstrado uma clara determinação, ajudou a abrir os olhos de muitos de nós que não éramos palestinos de nascimento, afinidade ou adoção”.
Outro destaque é Nem mesmo pela lei daqui, da filósofa Denise Ferreira da Silva, professora titular da Universidade de British Columbia. O texto é o primeiro capítulo do livro Acumulação negativa: valor e negridade, com previsão de lançamento em 2023 pela Companhia das Letras.
A partir de cenas do consagrado livro de ficção Kindred: laços de sangue, de Octavia Butler, a pesquisadora analisa os mecanismos que sustentam as práticas de violência simbólica ou física contra pessoas negras e latinas em regimes democráticos. Segundo a autora, “seja lá o que a lei proteja, o que se enquadre nesse modo de prover igualdade, não inclui uma pessoa negra”.
Já em Vultos na mata, o filósofo Claudio Medeiros escreve sobre o contexto pós-abolição da escravatura no Brasil. O que aconteceu com as pessoas que foram alforriadas? Onde elas foram morar? Quais eram seus nomes? A partir de questões como essas, o pesquisador aborda os diversos processos de exclusão social criados pelo Estado brasileiro, da segregação nas cidades ao apagamento das histórias dos indivíduos.
A escritora mexicana Margo Glantz, por sua vez, assina um ensaio sobre a pintora Frida Kahlo. Glantz aborda a complexidade da produção da artista, para além da fama atualmente associada ao seu nome. Em seus autorretratos, defende a autora, Frida investigava os desconfortos associados ao corpo, ao fato de ser mulher e ao enfrentamento da alteridade.
Um dos principais nomes da literatura argentina, Ricardo Piglia está presente neste número com um texto sobre a obra de dois escritores conterrâneos seus: Roberto Arlt e Rodolfo Walsh. Piglia aborda como a obra dos dois autores é marcada pelas tensões entre jornalismo e literatura e informação e experiência.
A serrote #42 publica dois ensaios visuais assinados pela artista Andréa Hygino: Prova de estado, série de oito gravuras obtidas a partir da impressão de tampos de carteiras escolares antigas, e Exercício da destreza (2016), na qual a artista trata, a partir de desenhos, da prática violenta de exigir que canhotos escrevam com a mão direita. Também estão presentes trabalhos dos artistas Kika Diniz, Jonathas de Andrade, Mauro Piva, Marcelo Macedo, Rommulo Vieira da Conceição, Ishiuchi Miyako, Laís Amaral, Gustavo Nazareno, Ignasi Aballí e Arthur Arnold.