Os campos calcinados, de Iacyr Anderson Freitas, apresenta tudo aquilo que já não esperamos tanto da poesia contemporânea, uma vez que a lira de nosso tempo tem, não raro, se desengajado do campo do simbólico. É livro denso, grande, volumoso. Mais de duzentas páginas, pouco comum para nossa poesia, tratando-se de trabalho autoral, ou, se preferirem, de livro de carreira, e não de antologias.
Nos chega em capa limpa, campo aberto, ermo, edição muito bonita, com pintura de Edvard Munch na quarta capa. Chega carregado de lirismo até mais ou menos o meio do livro, onde encontramos a série intitulada Cerol no olvido.
Para entrar nesse grande livro, escrito por um dos maiores poetas da atualidade, que compõe a bela seara mineira ao lado de nomes como Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo e Ana Martins Marques (esta, de uma geração mais recente), me valho da chave-poema Gorgone Leciona:
ainda urge
expor o verso
à ferrugem.
Com esse evidente convite à depuração do texto, o poeta nos mostra que não se pode prescindir do tempo, materializado em “ferrugem”, mesmo quando se trata de urgência. E esta, no caso não apenas deste poema, mas de todo o livro, parece ter a ver com uma tradição de lirismo moderno. Em qualquer das partes do livro, que apresenta, sim, momentos onde o que prevalece é o traço político, a exposição dos versos à cura que o tempo oferece (como quem cura um bom queijo) depõe a favor de uma expressão que não se limita à lição dos maiores (Drummond e Bandeira), embora evidentemente dialogue com eles, depõe também a favor de uma expressão que incorpora à lírica objetiva um quê de cansaço e sensualismo, sem perder de vista a mundanidade e seus ritos.
Cada parte do livro parece estabelecer uma atmosfera, como é comum nos bons poetas, e em todas elas se percebe o cuidado na aplicação da palavra, não apenas como potência semântica, mas também como potência sonora, rimas toantes, consonantes e mistas por todo o livro, rigor na composição de estrofes, utilização de versos que elidem estrofes (aqueles que podem ser lidos tanto na estrofe que antecede como na que sucede), limpeza das pontuações — o que não cerceia em demasia o tom —, enfim, amplo repertório formal que, mais uma vez, condiz com o premiado poeta de que estamos falando.
Mas voltemos ao poema tomado como chave. A dúvida acerca de quem vem a ser Gorgone não nos impede de produzir sentido com restos de mitologia, uma vez que um elemento tão caro ao poema, o tempo, é evocado também por meio de seu signo mitológico, Cronos. Ou seja, poderíamos, sim, admitir estar lidando com a criatura mítica que transforma pessoas em pedra. Se é de lição que estamos falando, por que não um’A Educação pela pedra, para lembrarmos de João Cabral? O que também não deixa de estar modalizado no título do livro (“Calcinados”).
Encarnação no tempo
E se assim fosse, ou é, que pedagogia poética estariam propondo o poema e o livro de Iacyr Anderson Freitas? Arrisco-me: a de encarnação no tempo. No tempo do poema, que é sempre uma outra forma de propor o tempo. No tempo da perplexidade, das perdas, do espanto, assombro, restos de amor, precariedade, poesia possível.
O “– minério de Cronos”, imagem muito cara aos poetas de linhagem drummondiana, sobretudo depois do importante livro de José Miguel Wisnik (2018), é a “ferrugem/ do tempo/ em estado bruto”.
Na impossibilidade de ser visto, o tempo se materializa, incorpora, se espacializa em rastros de sua passagem, pegada. Essa “sujeira” encarnada no processo de cura (de novo, como num queijo) é o reverso do que se convencionou ler como literatura moderna (à Graciliano e João Cabral, onde se precisa depurar para limpar). A depuração provocada pelo tempo nos poemas de Iacyr é aquela que busca a sujeira, desde que esta venha carregada de vida recolhida justo onde tudo parece ermo de poesia.
Sendo assim, o poeta vai nos encarnando nos diferentes campos de seu livro. O primeiro fala do corte. Do “cerol” que imprime aos olvidados de vida ordinária, aos pobres, esquecidos, rios lamacentos, cães “sem plumas”, na linhagem de Cabral, esse quê de lírica suja:
rio que ao correr esmaga
tudo o que não se sustenta
além do que é dor ou chaga.
só o tempo, flor purulenta
O segundo campo (ou parte do livro), Menos café que cicuta, nos instala no fugidio da memória, essa movediça teia sempre retrabalhada na poesia escapável, na vida escapável:
voltar em vão
aonde todos fugiram.
Ou
demoliram a casa em que nasci
nada pude fazer
nem meu passado
estava ali.
O terceiro campo, Perder um país, evoca diferentes diásporas. É sobre ditadura, escravidão, fascismos em diferentes faces, facetas. E, como adiantei acima, está trabalhado no livro sem o barateamento da boa fatura estética em benefício de engajamento de qualquer ordem.
campos calcinados
onde os melhores frutos
são furtos
ou traem
Embora esse poema faça menção explícita aos campos de concentração nazistas, vemos também na série uma retomada poética (onde o simbólico pode ampliar a percepção da realidade) do genocídio nunca admitido pelo Brasil, o da escravidão.
: o regime de antanho
guardou os centavos
de outrora
para a nova aurora
dos escravos
de ganho.
Aqui, o ponto de toque com o já mencionado poeta e amigo de Iacyr, Edimilson de Almeida Pereira, é potente. Ambos iniciam versos, às vezes poemas, com dois pontos, o que pode supor uma história em curso. Uma história violenta e oficial à qual o poema se oporia em cartografia. Ambos os poetas sabem do corpo ontológico, para além do corpo físico (ou junto dele), que está sendo ainda assassinado na interminável diáspora do Brasil. Não é coincidência que os dois autores estejam selecionados na recente edição organizada por Alexei Bueno A escravidão na poesia brasileira do século XVII ao XXI (Record, 2022).
Rimas sofisticadas
Notemos ainda nos versos acima o sofisticado trabalho das rimas. “Antanho” com “ganho”, “centavos” com “escravos” e “outrora” com “aurora” mostram que a escravidão ainda está aqui não apenas como memória, mas como procedimento ainda ativo. A palavra que remeteria ao passado de escravidão (como se esta tivesse ficado para trás) se liga sonoramente aos lucros (“antanho/ganho”) e o verbo “guardou” sugere uma existência ainda do regime. Este, conhecemos bem, é aquele em que se lucra com a comercialização dos escravos, que, embora rendessem dinheiro, tinham suas vidas violentamente barateadas (centavos é a ligação sonora com escravos). E a “aurora”, que pode conotar esperança de tempos melhores, fica adiada pra outrora (que aqui pode tanto remeter ao passado quanto ao por vir).
O quarto campo, Este mínimo infinito: breviário, revela algo importante sobre o livro. Mostra que as partes, campos, séries com que resolveu dividir a obra, em verdade transbordam progressivamente na série seguinte. Nos casos das passagens da primeira para a segunda e da segunda para a terceira parte do livro, o que vemos é o título da série anterior participar como verso na série seguinte. Mas no caso da passagem da terceira para a quarta parte, o que notamos é o transbordamento da violência. O “breviário”, que tanto pode remeter a livro predileto quanto a livro litúrgico, de orações, é, bem dizer, o livro da história nossa, a de derramamento de sangue. É uma seção de niilismo destacável, mas também de sofisticada declaração de guerra no campo do simbólico que é a poesia, uma vez que “A derradeira” flor “: a manhã devora”.
O signo drummondiano de esperança frágil é devorado pela manhã, mas, se aproveitarmos o efeito fonético da composição, podemos ler também que a frágil esperança, simbolizada na flor, amanhã devorará.
Por fim, o quinto e derradeiro campo, Limão capeta, traz uma sorte de ácido riso. Não por desespero ou elogio melancólico ao niilismo, mas para desconcerto. Se se defende e acredita aqui na poesia que pode explodir em meio à treva, em meio à dor, a negação etc, vemos no fechamento do livro de Iacyr (que é também um retorno ao cerol), aquele rasgo no mundo calcinado pela falta de poesia:
o vácuo absoluto
todos sabem
não vale um puto
é tão real quanto
papai noel
ou o tal
demo cornuto.
Além de negar a terra arrasada, o mundo sem poesia, o poeta desmitifica, com humor e melancolia, as preces falsas de um mundo duro, sem arte, sem vida.
Os campos calcinados, de Iacyr Anderson Freitas, é livro urgente. E tão urgente porque ensina sobre o respeito às impurezas que só o tempo depura.