Um anjo de fita verde

A importância da liberdade e do preparo para que crianças e jovens adentrem o mundo da leitura
Ilustração: Carolina Vigna
01/12/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Cecília Meireles sustentava, unido a Monteiro Lobato, um projeto de país em que as crianças fossem leitoras de literatura. Ciente das dificuldades a enfrentar, não esperava, porém, que a biblioteca por ela fundada no Rio de Janeiro, a primeira de caráter público e com acervo pensado para as infâncias e as juventudes, fosse fechada pelo governo do Estado Novo, que identificou a subversão patente na oferta das obras de Mark Twain às crianças.

Tinha sua razão, o censor. Permitir que personagens jovens, mal saídos da infância, sejam capazes de reagir à exploração e aos maus tratos por parte de adultos incapazes de gerirem a própria vida e oferecer, de lambuja, a estampa cruel e absolutamente legal de um sistema de emparedamento humano não é do bom grado de sistemas que tenham por intenção controlar corações e mentes. As personagens Tom Sawyer e Huckleberry Finn não se prestavam, em absoluto, ao desfile de Sete de Setembro no Brasil dos últimos anos de 1930.

Fiel a si mesma, Cecília continuará o trabalho. A circulação de algumas obras é suspensa durante um tempo, mas elas permanecerão, subsistindo nas personagens a capacidade de inquietar o espírito humano. Essa e outras argutas perspectivas da autora expõem-se no fundamental Problemas da literatura infantil. Conceituar — em meados do século passado — que a literatura para crianças define-se em grande parte em procedimento a posteriori, por apropriação de leitores e leitoras daquilo que lhes agrada, reconhecendo a manifestação de uma sensibilidade estética própria e autonomia para o exercício do gosto, contribuiu bastante para fundamentar a mudança de paradigmas em relação à produção editorial oferecida a esse público. O investimento na indústria do livro infantil e juvenil mostra-se maciço, dá-se o surgimento de instituições e prêmios, multiplicam-se as bibliotecas escolares, viabilizando o projeto da futura nação de leitores.

Ao final dos anos 1980, a ousadia de Lúcia Jurema Figuerôa engendra um acontecimento memorável. A editora toma um conto de Guimarães Rosa de Ave, palavra, entrega-o ao ilustrador Roger Mello, com a incumbência de fazer um livro atraente para um leitor implícito entre infância e adolescência. Surge o extraordinário Fita verde no cabelo, texto destinado originalmente a adultos, que passa a ter presença imprescindível nas bibliotecas infantis.

Aberto o caminho, menos inovador talvez do que pareceria se ponderada a apropriação referida, novas experiências evidenciam o destaque do livro ilustrado na tradição brasileira de formatos do livro para crianças e jovens e confirmam a importância da indefinição de idades para o consumo de literatura. Nesse diapasão, a fita verde de Rosa — delicada imagem da inocência que se perde no trajeto entre infância e os primeiros embates a anunciar a vida adulta — alarga o fôlego do leitor. Sem levantar discussões sobre especificidades de uma literatura para jovens, e enfatizando o direito à plena experiência literária, na qual não há compromissos outros senão a representação da complexidade do existir humano, afirmamos ser de bom alvitre a presença de mais fitas verdes no campo editorial que tem nesse público seu maior interesse.

Publicado em 2010, Anônimos, de Silviano Santiago, autor há pouco agraciado com o prêmio Camões, apresenta narrativas e personagens a serem levadas com urgência ao leitor jovem, comumente dividido entre escolhas pessoais de leitura, classificadas por Roger Chartier de selvagens, na medida em que escapam ao cerco pedagógico de pais e professores, e as costumeiras indicações do que “os jovens devem ler”. Junte-se a isso a força do mercado, sublinhando as opções temáticas do momento, e os dilemas da existência expostos em Frescobol, Dezesseis anos e nos admiráveis Ceição Ceicim e O anjo acabam fora do alcance desse grupo de leitores. E que perdem eles?

Perdem a clareza de Huck Finn, que delibera ouvir a própria consciência acerca do que deve fazer, em vez de seguir as normas sociais fundamentadas no poder do mais forte; perdem o desgarramento de Tom Sawyer nas fantasias que permitem o enfrentamento de uma realidade cruel e alienante; perdem a visão partilhada do abismo humano de que fala Georges Bataile. Ganham, na leitura dessas obras, a lucidez de vislumbrar o emparedamento, aquele que acomete o negro Jim nos Estados Unidos escravocrata do século 19, aquele outro, sempre bem conhecido em cidades grandes de nosso país:

Sinto um calafrio em pensar que o bonde pode passar pelo ponto e não parar para mim. Isso acontecia em Belém, quando o motorneiro via um pé-rapado no ponto, à espera do bonde fechado. […] e a mera possibilidade de se repetir ameaçava os meninos pobres como fantasmas vestidos de branco em comédia do gordo e o magro.

Emparedado por condições de pobreza e pela única perspectiva de servir ao projeto dos pais, o protagonista de Dezesseis anos ouve a devida voz interna, rompe as paredes que o constrangem, abandona a casa familiar. Reconhece mais tarde: “Aos dezesseis anos, eu era o mesmo que fui sendo aos poucos, airadamente”. Caminho semelhante pode-se encontrar em Separação: “…os garranchos de pedra lascada do rapazinho afoito escreveram que deveria ir-me dali”. Mas nosso olhar pousa com atenção incomum sobre outro menino. De natureza perrengue, na visão do pai, “alheio a qualquer tarefa física e a qualquer caminhada”, sem um corpo sacudido capaz de fazer rolar a bola em campo como os de sua idade, ele sonha realidades maravilhosas, cria poemas visuais, feitos de “…linhas imaginárias na folha de papel da noite. […] As linhas iluminadas atavam cada estrela à lâmpada acesa correspondente”.

Por uma dessas linhas desceu o anjo, para o espanto do menino, pois não havia “lâmpada acesa perto dele”. Baixa do céu valendo-se apenas do tecido desenhado por Deus e deixa com o garoto de nove anos “o olhar macio de bondade”. Vem uma e outra vez, mas chegadas as chuvas de março, o menino trancado em casa, o anjo é tomado de saudade. Em prisão de abecedário, a criança cumpre a sina dada pelo pastor evangélico: por falta de estudo não vá se tornar “preguiçoso, mendigo, pecador”.

O travo é amargo. A leitora constrói sentidos na leitura de O anjo, pergunta-se por onde escapar? A literatura à qual está, em geral, habituada, e que desempenha importante papel em sua história pessoal, costuma oferecer saídas claras e positivas. Para essa outra literatura “na veia”, no entanto, é preciso estar preparada, e não somente ela, mas docentes e outros mediadores. Ao final do texto, a dura certeza da realidade pede a coragem para adentrar a floresta, sabendo embora do lobo e de seus perigos.

A fita verde, perdida pela menina de pouco juízo indo ao encontro da avó, contém em si o brilho da sedução do outro, mas também a necessária morte da ancestral, para permitir nascer o pleno de si. Essa mesma fita, pousada sobre essas personagens de Anônimos, mostra-se bom augúrio editorial para o país que se vê autorizado, de novo, a pensar verde.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho