Daniel Francoy é vencedor do prêmio Jabuti de Poesia com Identidade (2017). Além de poeta, também escreve prosa e tem cinco livros publicados. Embora seja um escritor relativamente jovem (nascido em 1979), mostra em seu texto uma precisão de quem tem experiência de leitura e escrita. Essa precisão lhe dá a segurança necessária para voos arriscados em temas da vida pessoal e cotidiana. Há um risco constante de reduzir a comunicação ampla do texto — o desejo e a necessidade de se comunicar com um leitor distante — ao específico, ao pessoal. Sobretudo quando se tratam de temas sentimentais, como os conselhos de um pai a um filho criança. São os riscos e recompensas desse voo que o leitor encontra nos poemas de O livro do Martim.
É possível escrever poemas com ternura? Ou o carinho, que tem tantos meios privilegiados de se expressar — o abraço, o sorriso, a entonação —, não vai bem com a artificialidade da palavra poética? Manuel Bandeira foi um mestre dos poemas com ternura. Seu segredo foi sempre uma gota de amargor. É preciso localizar a ternura em um mundo avesso a ela. Lembrar que aquilo que se expressa como desejo e lição (caso desse livro) se coloca apesar do mundo. O livro de Francoy se salva por essa consciência do amargo e um esforço heroico de salvar e transmitir tudo o que não é isso: ternura.
Há uma pequena tradição de literatura em que pais aconselham os filhos: o livro dos Provérbios do Velho Testamento está cheio de conselhos para filhos; na tradição grega, os textos clássicos são cheios de ensinamentos para os jovens, como na história de Dédalo e seu conselho (não respeitado) pelo filho Ícaro. Em Hamlet, há o monólogo em que Apolônio aconselha seu filho Laerte, que parte em viagem: “E, sobretudo, isto: sê fiel a ti mesmo./ Jamais serás falso pra ninguém”. Mas o sentido inverso também é bastante conhecido, as respostas dos filhos desde a Telemaquia na Odisseia até a Carta ao pai de Kafka. O que este personagem, Martim, escreveria como resposta ao livro que lhe é dedicado?
Simples e complexo
Um aspecto formal fundamental do livro é seu interlocutor principal: Martim, o filho criança do eu-lírico. Isso coloca um desafio permanente: utilizar um vocabulário e um imaginário direcionados a uma criança, mais “simples”, portanto, mas que ainda funcione para um leitor adulto. (Pois, salvo engano, o livro não se propõe a ser literatura infantojuvenil). É o desafio de escrever de forma simples sobre temas complexos. Daí, novamente, a lembrança não apenas do livro dos Provérbios, mas de toda uma tradição oral que, como se sabe, se dirige quase completamente ao aconselhamento dos jovens. Diferente, no entanto, da doutrina sagrada, dedicada a aconselhar jovens fiéis dentro da doutrina, ou seja, de forma dogmática, o eu-lírico mantém as possibilidades abertas. O mistério do Sol que não deve ser reduzido à palavra Deus.
Uma das estratégias utilizadas é se referir às imagens do mundo material: flamingos, passarinhos, bolhas de sabão, chuva. Durante a maior parte do tempo ela é bem-sucedida. Aqui e ali, o amargurado leitor de literatura moderna pode achar um pouco açucarado demais, sobretudo nas referências mais metalinguísticas sobre “a poesia”, mas isso é mais questão de gosto do que de problema da escrita. O livro do Martim talvez seja um livro menos para presentear aos filhos do que aos pais e mães jovens. É um tipo de comunicação intergeracional bonita que se estabelece. Mais importante do que os ensinamentos específicos, talvez o modo do ensinamento, com ternura realista, seja a lição principal. Uma conversa que oferece experiências, sem autoritarismo ou romantização da vida. “Mas tudo que é maravilhoso também é perigoso.” Uma conversa que não apenas fala, mas deixa boas perguntas abertas:
Saiba, Martim: o seu pai é uma girafa
e você é uma girafinha.
Do que sentimos fome?
Muitos dos poemas têm o título bastante apropriado de Introdução. Aquele que fala compartilha sua experiência com quem experiencia pela primeira vez as árvores, o sol, a chuva, os museus, a poesia, a revolta, Ítaca (esse lugar de orfandade e reencontro). Não são ensinamentos, mas presentes, ofertas disponíveis para que Martim e o leitor se sirvam como quiserem.
Falando com Martim, o eu-lírico reflete sobre a própria vida. Esse é um dos subterfúgios que dá profundidade ao livro: para aconselhar é preciso relembrar, refletir sobre a própria trajetória, levando em conta não apenas o que foi (com suas delícias e dores), mas o que também poderia ter sido (“Com esperança, escreve/ para dizer o que falta,/ o que nunca desistiu de ter,/ o que pode ensinar”). Walter Benjamin tem uma bela definição de conselho, que parece ir de encontro ao movimento geral do livro: “Aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo contada”.
Introdução ao descanso
Você sabe o que é bom?
Estar vigoroso e sujo
e depois cansado e limpo
sob o sol, na manhã,
no claro calor que se esgueira
janela adentro e se soma à água
do chuveiro.
Isso que é bom.
Estar vigoroso e sujo.
Depois, cansado e limpo.
Algo da dureza do livro se deve ao fato de sua proximidade com a pandemia. Há um contraste evidente entre o milagre da vida que chega, cresce, se impõe, projeta todo um futuro que é repetição e diferença da vida do pai, com os anos de morte e desolação. (“Sabe, Martim, o que se passou/ em seu primeiro ano?// Um milhão de mortos/ e um inverno duro/ de ipês renascidos”). Mas também isso o livro trata como lição principal: não há um sem o outro, sobretudo para a pureza infantil. A pureza infantil não precisa “que exista algo puro”. O conselho aberto: “Aponta para a água limpa e para a água suja/ e nomeia apenas de água”.
Por fim, que também é começo, Telêmaco e o Ulisses ausente ressurgem no poema Ítaca. O bom pai é o que prepara o filho para sua partida (e seu retorno, impossível, é apenas o filho tornado pai). Essa dor da despedida, anunciada já para o filho pequeno, é um dos pontos altos dessa ternura realista. De enfrentar a vida entendendo seus fluxos e movimentos, de corpo aberto, mas com sabedoria:
O corpo: esta hóstia incendiada, esta
carruagem de corcéis em fúria
que arrastam a morte e a alegria.
Francoy enfrenta uma tarefa literária difícil, com bastante mérito. Um imaginário de palavras simples, como exige a proposta do livro, é tratado com sofisticação em composições pouco óbvias. O risco permanente de cair no sentimentalismo é superado por um olhar generoso, mas realista sobre a complexidade da vida. Trata-se de uma excelente contribuição literária, sobretudo para pensar as relações entre pai e filho para além das armadilhas do patriarcado e do edipianismo.