Breve manual para ser humano não traz ensinamentos diretos para o que o título propõe. Não tem lições do tipo: nunca defenda ditaduras nem torturadores, não incentive a violência, essas coisas básicas de sermos humanos, no sentido além do apenas biológico.
Vejam os versos finais do poema antes do sono:
Sou normal descrevendo a lacrimejante mentira de acreditar
Pávido dobro a superfície do sono — nunca a vejo — imagino-a
pertencer à noite espelhos miríades inclusos numa inferioridade
onde o meu rosto aparece abraçando uma vontade esvaída
Portanto, alguma dificuldade em adormecer
O livro de autoria do humano Nuno Félix da Costa, identificado como português, a respeitarmos o conceito das culturas e fronteiras, bastante alardeado e comemorado em hinos, nas guerras, competições esportivas e as muito similares manifestações partidárias, é do gênero Poesia, tem 256 páginas e foi publicado no Brasil pela Cepe. É grande: praticamente o dobro da maioria dos livros de poemas publicados. E seus versos são densos.
Como, fora dos sentidos, enaltecer uma beleza que rebenta?
Nem tu nem ele, mas rápida imagem do medo,
a pátria nada ser fora do pensamento.
(versos finais do poema tu/ele, eu/ele/tu, o medo e tu/ele, os medos do eu).
Não sei se devia ter buscado dados biográficos do autor antes de ler o livro, mas acontece que isso acabou influenciando minha leitura dos poemas: ele é psiquiatra, e o pensamento, o cérebro, o consciente e o inconsciente aparecem em diversas abordagens, como no início de S.O:
O cérebro não é um animal, é um animal
que comeu o interior do crânio. A mente não resistiu
É também pintor e fotógrafo, e me pareceu que, nos poemas, ele não se diverte tanto (ou não vê sentido) com a criação de imagens, já que os versos revelam mais aventura no jogo conceitual e em sensações construídas de modo incomum.
Nascido em Lisboa, em 1950, artisticamente é um homem ousado, que sugere ter sido agraciado ou amaldiçoado com dias bem mais longos que 24 horas, pelo tanto de exposições que realizou desde a década de 1980, livros que publicou desde os anos 1990, de poesia, fotografia e ensaio.
Prefiro não ter ideias poéticas que é um formato
pré-adaptado ao verso enquanto a poesia prefere
ideias vindas do fundo da noite ou as que vadiam
ou outras que torturam os bêbedos, que chegam
a vomitá-las sem se aperceberem que eram poéticas
(versos iniciais de poetogênese)
A opção, nos poemas desse livro, é não ser comunicativo, mas expressivo. Para quem isso pode parecer óbvio, lembro que poesia é substantivo e às vezes adjetivo que nomeia coisas muito diferentes, cada vez mais (em saraus, tende a não ganhar aplauso efusivo o poema que não eleva ou revolta, de maneira clara e de preferência rimada, só para ficar em um exemplo).
Neste Breve manual…, a coisa está mais para o que João Cabral de Melo Neto descreveu, em 1954, no ensaio Da função moderna da poesia: “O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. […] Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória”. Por outro lado, peço ajuda a Randall Jarrell, que nesse mesmo tempo dizia em A obscuridade do poeta: “[…] o poeta parece difícil porque não é lido, porque o leitor não está acostumado a ler a sua ou qualquer outra poesia”.
A maioria desses poemas é composta por duas estrofes de sete versos, normalmente longos (mais de doze sílabas). Não alcancei verificar se o poeta de alguma forma se impõe a métrica; a rima aparente não é um recurso usado, mas o ritmo, sim, marcante, por um cuidado que se revela facilmente na leitura em voz alta.
Corajosa Cepe, que publica um livro não comunicante, à sua maneira respondendo à pergunta do crítico literário Alfredo Bosi no ensaio Poesia-resistência: “Ou quererá a poesia ingênua, concorrer com a indústria & o comércio, acabando afinal por ceder-lhes as suas graças e gracinhas sonoras e gráficas para que as desfrutem propagandas gratificantes?”.
Destaque para o projeto gráfico, assinado por Luiz Arrais, que ajeita de maneira muito eficiente essa característica desafiadora dos poemas, seus versos longos (do contrário, ou a leitura seria ruim, com tipos muito pequenos, ou um verdadeiro festival de colchetes em páginas magrinhas, a fim de economia de papel). Nas resenhas a gente tem o péssimo hábito de não analisar os elementos editoriais, esquecendo-nos de que o livro é um todo, que vai além do texto.
No entanto, a orelha
Não tem prefácio, não tem posfácio, nenhuma outra facilidade para o leitor: é o “te vira, malandro” mais honesto que pode haver. No entanto, a orelha… A orelha diz (é engraçado escrever isso, orelha que diz) que o leitor não encontra no livro “meras instruções”, mas “descaminhos, anotações poéticas, reflexões prosaicas ou profundas, enfim, a matéria da literatura e da vida”. Isso me fez lembrar de um momento muito antigo meu. Estava na porta do prédio onde morava, em Santos, anos 1990, com dois amigos. Eu contava de um filme que havia assistido no Cine Posto Arte, filme do tipo menos comercial que passava lá — mas não lembro qual era. Paulinho me perguntou do que tratava o filme, afinal, que meus relatos não tinham dado conta até então. E eu respondi que “era da vida”, me achando o poeta. Ele ficou muito bravo comigo, dizendo que aquilo não significava nada. Esse momento ainda ecoa, porque é verdade: não significa nada (ou tudo, dá no mesmo), exatamente como nessa orelha está dito “matéria da literatura e da vida”. A palavra mais importante dessa orelha é “pistas”. O autor bagunça nossa cabeça e deixa apenas pistas a quem as busca, a quem insiste na chave do racional para desembrulhar esses pacotes-poemas. Tal esforço pode ser besta.
São textos que deixam pistas, sim, de que são construídos com alta dose de racionalidade, de reflexão filosófica, mas resultam em mistérios, em versos que propõem o incomum, o enxergar cantos normalmente obscuros, outros jeitos de olhar e de dizer as mesmas coisas do mundo. Será que eis aqui a instrução principal do Breve manual…, esta de olhar de formas não usuais o que está diante de nossos olhos o tempo todo? Seria isso humanizador?