As formas de amor

Em “Flores azuis”, Carola Saavedra homenageia o gênero epistolar e reflete sobre a linguagem literária
Carola Saavedra. Foto: Matheus Dias
01/01/2009

A necessidade deste livro se apóia na seguinte consideração: o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão. Este discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas não é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas linguagens circunvizinhas; ou ignorado, depreciado, ironizado por elas, excluído não somente do poder, mas também de seus mecanismos (ciências, conhecimentos, artes). Quando um discurso é dessa maneira levado por sua própria força à deriva do inatual, banido do espírito gregário, só lhe resta ser o lugar, por mais exíguo que seja, de uma afirmação. Essa afirmação é em suma o assunto do livro que começa. (Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso)

Carola Saavedra poderia ter perfeitamente usado o texto acima como epígrafe de seu romance Flores azuis. Não é tão pretensioso quanto o livro de Barthes, que apresenta o discurso amoroso através de um leque muito amplo de possibilidades. Constitui-se enquanto uma, entre tantas vozes de milhares de pessoas (quem sabe?), que continua falando, em sua extrema solidão, enquanto afirmação de um lugar, por mais exíguo que seja, excluído ou não do poder, mas ainda um lugar de afirmação.

Os capítulos do livro se alternam entre dois focos narrativos distintos. Ora temos a voz de uma mulher que fala de si e da ruptura de sua relação com um outro, através de nove cartas apaixonadas, dirigidas ao ex-amante, datadas em forma de diário. Ora, encontramos um narrador em terceira pessoa, centrado na história de um homem recém-separado em suas ocupações cotidianas e as dificuldades de lidar, tanto com a afetividade, quanto com os encargos pragmáticos da nova vida. Estes capítulos são numerados em romanos, um a um, a partir da primeira carta, e daí em diante, sempre são intercalados pela correspondência. O que une inicialmente os dois textos parece ser um equívoco. Ou seja, as cartas chegam assinadas por uma pessoa que se denomina, simplesmente, A., dirigida a um antigo morador, no endereço de Marcos, personagem dessa segunda parte. Este, mergulhado na sua solidão, não resiste à tentação e começa, indiscretamente, a ler carta por carta. Isto passa a interferir na sua vida de forma definitiva e operar transformações em sua maneira de ser e agir.

A história, em si, do romance não apresenta maiores complexidades. Aliás, é tão simples que beira à banalidade, não fora a maneira de estruturação do texto em seu conjunto. O fato de as cartas abrirem o livro e, a seguir, intercalarem uma narrativa linear, cuja ação se desenvolve dia a dia, cria a conseqüente quebra de foco, gerando curiosidade e envolvimento capazes de garantir atenção e perplexidade ao leitor em construção. Neste sentido, trabalha a personagem escritora das cartas. Algumas vezes, funciona como um sujeito lírico totalmente entregue à expressão de suas dores e amores. Outras vezes, esmera-se em estabelecer uma ponte que a ligue, religue, mesmo que precariamente, ao outro, um possível ledor ou leitor dessas suas mal traçadas linhas. Isto, nas primeiras cartas, é direcionado especificamente ao amante: “E então, por que tudo isso?… Eu não sei, talvez uma forma de te querer, de te alcançar, para estabelecer entre nós um elo, um elo impossível…” Mais adiante, essa ponte é estendida ao leitor e personagem da outra narrativa, que parece correr paralelamente ao conteúdo das cartas. “Já te falei disso? Dessa outra história, desse personagem que inventei, esse personagem com uma vida tão diferente da tua, alguém que recebe esse texto por engano… e que pouco a pouco se encanta e se transforma. …alguém que me lê como eu gostaria que você me lesse…” A outra história inventada recria o leitor capaz de fazer de cada leitura um ato de amor, ou seja, de ler quem escreve como este gostaria de ser lido. Um ato de amor que esboça a possibilidade de comunicação interrompida pela separação de um sujeito, não apenas do seu objeto de desejo, mas de si mesmo.

Buscas
Dentro dessa perspectiva, a busca do outro, de um outro definitivamente, ou racionalmente perdido, é a busca de identidade, a busca de um reencontro com o que sobrou de alguém que se perdeu no caminho da entrega e da paixão, a busca do sobrevivente, ainda no torpor do luto do outro, dos projetos comuns e de si próprio. A questão é: quem sou, o que resta do que sou? Como reunir pedaços de um eu esmaecido pela dor da perda? Ele é sobrevivente sim, pois apesar de náufrago em todos os sentidos, ainda encontra um pouco de ar, de sobrevida, através da sua escrita, através da possibilidade de ser lido e compreendido. “E, se fosse possível, um texto que não só explicasse as palavras, mas também guiasse a tua leitura.” O sujeito se recompõe de certa forma nessa tentativa de se dizer, de se ler ao ser lido, de se compreender ao ser compreendido. “Ali, onde havia palavras simples, banais, leia algo extremamente belo, algo inesperado, para que você volte… que essa leitura também seja uma forma de amor. E fique essa comparação, essa esperança.”

O sujeito lírico que se derrama em sentimentos, paixão, desespero e abandono, momentaneamente, toma as rédeas na construção de um espaço de afirmação de sua fragilidade e faz dele sua força. Para tal é preciso ser lido, nesse sentido, constrói seu leitor, nada ideal, apenas o precariamente possível e necessário para fazer com que “uma falta antes difusa”, se materialize. O espaço vazio deixado pelo amante é “o seu espaço qualquer espaço, até uma espera, um embate, ou até um espaço em branco, um envelope, uma folha de papel onde escrevo estas palavras, onde engendro, dia a dia, um amplo tecido de seduções e perguntas e respostas, com paciência e cuidado”.

Barthes usa em seus fragmentos a seguinte definição para as cartas: “CARTA. A figura visa à dialética particular da carta de amor, ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (cheia de vontade de significar o desejo)”. Trata-se de uma dialética no sentido de que estabelece uma oposição que propõe o diálogo. Nessa particularidade, a oposição se afirma como um paradoxo, no qual cada um dos opostos mantém sua identidade, sem, contudo, se excluírem mutuamente, muito pelo contrário, são visceralmente dependentes. É o vazio que busca expressão, é a expressão que se debate no vazio de sentidos. Esta necessidade de expressão está sempre cheia de vontade de significar o desejo transbordante e condenado à incomunicabilidade.

Forma e cidadania
Na construção desse texto, está clara a intencionalidade da autora das cartas de se manter no controle e tentar administrar seu caos interior através da escrita de alguma coisa que possa ganhar forma e cidadania. Esta pretensão se ensaia na tentativa de estabelecer um elo, no inútil, mas obsessivo movimento de preencher o vazio de sentido da existência de um amor acabado, ou não correspondido, que vem a ser a mesma coisa. É através da expressão que se engendra, dia a dia, um amplo tecido de seduções e perguntas e respostas, no qual estas nunca são confiáveis. Isto porque ele possui também seus fios de tédio, repetições, indecisões e incoerências, muitos são os fios irremediavelmente partidos. Como se só dessa forma a temática da separação pudesse ser dizível. Essa configuração, muitas vezes, confunde-nos enquanto leitores e compromete, de certa forma, a nossa atenção, ou a perseverança de ir até o fim, até a última carta, até o ponto final da busca de um segredo que se insinua o tempo todo, mas que não passa, talvez, de uma promessa.

“Todas as carta de amor são ridículas./ Não seria carta de amor se não fossem/ Ridículas”, já nos dizia Fernando Pessoa, no sentido de legitimar o gênero epistolar, mas contudo questionar a aura romântica na qual só sentimentos e qualidades nobres tinham lugar. A necessidade de expressão do ridículo do amor e do desespero que a perda do objeto amado proporciona não é nada nova. Grandes e belos exemplares deste discurso são canônicos, surgem tanto sob a forma epistolar pura e simples ou compondo a narrativa ficcional dentro da literatura e da cultura ocidental de modo mais amplo. Nos seus fragmentos, Barthes retira seus exemplos, de Goethe, de Freud, de Novalis, de Nietzsche, de Grimm, de Gide, de Heine, de Stendhal, e de tantos outros. O crédito que é dado a cada citação minimiza a monotonia que coisas tão simples e banais geram num horizonte de expectativa de leitores sempre ávidos de surpresas e novidades, viciados na adrenalina da velocidade e das tecnologias de ponta.

Carola Saavedra, ao construir seu texto, não tem como fugir dos riscos de transitar em terreno tão escorregadio. Ao escolher a narrativa ficcional que incorpora o discurso amoroso em forma de carta de amor está homenageando o gênero, por um lado, e, por outro, alterando sua estrutura, na medida em que, além de carta de amor, ridícula, banal, confessional como todas as já escritas, estabelece-se uma seqüência de fatos em tom narrativo que abre espaço para reflexão da linguagem, de um projeto literário, no qual incide a meta-ficcionalidade enquanto condição da escrita literária. Ou seja, o texto se debruça sobre a sua própria construção como personagens e sujeitos se debruçam sobre sua condição humana e existencial. A racionalização sobre a linguagem e o contar histórias e a necessidade de expressão lírica dos sujeitos apaixonados ou entediados nas malhas de sua vivência afetiva estabelecem, paradoxalmente, um diálogo bastante conflituoso, mas produtivo. Só isso possibilita engendrar, razoavelmente, o tecido de fios tão diversos entre si.

Dois universos
Algumas leituras críticas sobre Flores azuis chegam a considerar que a estrutura do texto, em duas formas diferentes, está delineando um universo feminino e outro masculino correndo em paralelo. Num primeiro momento, isto é bem nítido e se dá pela constituição dos personagens, a mulher que escreve as cartas e Marcos, o homem solitário e entediado que, indevidamente, as lê. Além disso, a vida deste transcorre no emaranhado de recém-separado, envolvido com uma ex-mulher exigente, uma filha pequena, mas já cheia de vontades e insatisfações, uma namorada que lhe sobrecarrega e limita seus passos. Entretanto, isto é apenas um pré-texto para uma outra discussão de fundo. O ponto de vista, predominantemente, feminino da autora das cartas e o predominante masculino de Marcos é fato e, portanto, evidente. O que está em questão é: como esses papéis se misturam ou se contaminam? Ainda dentro da perspectiva da trama, como a racionalidade de organização de um texto convive com a fragilidade da afetividade de um discurso amoroso, sempre em crise pela busca de um lugar, num espaço exíguo de legitimação?

A autora, entrevistada sobre seu livro Toda terça, afirma não gostar do rótulo “literatura feminina”, pois acredita que isso parte do princípio de que “a mulher teria uma voz destinada a temas ditos ‘femininos’, casa, marido, filhos, etc. e, por outro lado, menos propensa a questionamentos intelectuais, conceituais e estéticos”. O romance Flores azuis pode ser considerado um desafio no sentido de discutir tudo isso e afirmar que o universo feminino além de sensitivo, intuitivo e desejante é também capaz de extrair daí, com seriedade e determinação, questionamentos intelectuais, conceituais e estéticos. Assim como, o universo masculino, tão pragmático e inteligente, é capaz de envolver-se, entregar-se e apaixonar-se pela possibilidade de uma vida sensível. O discurso amoroso que se esvai em perdas se potencializa na violência erótica de corpos que ainda pulsam e se procuram. Quer se percam, quer se encontrem, o que importa é o presente que lateja nas mais diversas formas de amor e de construções de linguagens, cujo único sentido possível, mesmo que precário, é o impulso de prosseguir nessa busca sem descanso e sem remédio.

Flores azuis
Carola Saavedra
Companhia das Letras
164 págs.
Carola Saavedra
Nasceu em Santiago do Chile, em 1973, e veio com a família para o Brasil três anos depois. Morou na Alemanha, onde concluiu um mestrado em comunicação, e também na Espanha e na França. Hoje vive no Rio de Janeiro e é escritora e tradutora. Estreou em 2005, com o livro de contos Do lado de fora (7Letras). Em 2008, Flores azuis ganhou o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte de melhor romance.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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