Sempre acreditei que os livros encontram seus leitores. Coincidência, sincronicidade, destino, seja lá que nome se dê a isso, os livros encontram seus apreciadores, tal como, nos versos de Tsefania Beit-Halachmi, o ficcional autor de Rimas da vida e da morte, as noivas sempre têm seus pares. O que Amóz Oz nos ensina, em seu novo romance, é que a vida também encontra seus “leitores” e demonstra como os escritores transformam uma série de acasos e de encontros fortuitos em cadeias significativas que enchem suas vidas de sentido.
O enredo do romance é quase inexistente: a ida e volta de um escritor bem-sucedido a um evento literário em sua homenagem. Chegando cedo, esse escritor, sem nome e sem maiores características, passa num bar para tomar um café, onde é atendido por uma garçonete e vê dois estranhos conversando. Já no local do sarau, ele é saudado pelo organizador do evento, escuta a palestra do crítico literário e se surpreende com a leitura da mulher tímida que se revela inesperadamente bem-feita. Ele observa os rostos das pessoas na pequena platéia e, depois de terminada a sessão, caminha de volta para casa. Com esses parcos elementos, Oz demonstra o verdadeiro trabalho de um escritor, que, mesmo nas aparentes atividades corriqueiras, mantém sua mente “leitora” sempre atenta e pronta a engendrar histórias a partir de pessoas com quem se cruza na rua. Mas, como o trecho destacado sugere, é um livro em que tenta fazer um acerto de contas com suas próprias dúvidas a respeito da função do escritor com relação à vida. Melancolicamente, sua conclusão é de que existe um preço alto a pagar quando se adota o ofício de escritor. E esse preço vem explicitado na cena de amor, imaginada ou vivenciada, entre o escritor e Ruchele, quando a esperada explosão de vida não ocorre. Para o escritor, ávido, lhe é negado o prazer da própria vida.
Retomando um conto antigo, publicado nos anos 70, Oz amadurece o tema do confronto entre o escritor e seu público, revelando a curiosidade quase mórbida que o público sente em relação à vida pessoal do autor e aos detalhes de seus hábitos de criação. O livro começa com uma série de perguntas irrelevantes e sempre repetidas, muitas das quais são irrespondíveis. “Por que você escreve?”, por exemplo, abre a série que se desdobra em perguntas tolas do tipo: “você escreve à caneta ou usa um teclado?”, já que esse tipo de pergunta não leva a nenhuma revelação sobre a obra escrita. Numa sutil lição, Oz revela que, enquanto os leitores não tiverem coragem de raciocinar por si mesmos, enquanto tiverem preguiça de pensar e de analisar, só poderão fazer as mesmas perguntas infrutíferas, incapazes de tirar suas próprias conclusões. E não se envergonharão de fazer a pergunta que nunca deve ser feita a nenhum escritor — já que a decifração é a tarefa fundamental do leitor: “E quem sabe poderia nos relatar, resumidamente e em suas próprias palavras, o que exatamente você quis dizer em seu último livro”.
Longe do óbvio
Evidentemente, o que o escritor quis dizer, em suas próprias palavras, já está dito no livro. O que o leitor pode ler é que deve ser explorado através da inteligência e das emoções de cada um. Assim sendo, ao engendrar seus personagens, Amós Oz vai, tal como o filósofo que demonstrou o movimento andando, revelando como devemos ler os signos que se nos apresentam nos pequenos interstícios do enredo textual. Se o leitor apenas “ler” o signo garçonete, não chegará longe na interpretação, e o máximo que um crítico de leitura superficial conseguirá fazer será resumir, toscamente, a idéia de garçonete. Oz desvia seu olhar do óbvio e rodeia em torno do que realmente é importante. E é no desenho da linha da calcinha usada por essa mulher cansada, mas de pernas cheias e bonitas, de busto empinado e saia curta, que ele descobre não o subtexto óbvio que a própria garçonete parece lhe implorar que abandone: “chega, por favor, já chega”. Ele percebe que esta é uma mulher que ainda não desistiu de sonhar. E, tentando descobrir como ela chegara àquela mesa de bar, constrói sua personagem abrindo-lhe espaço para os sonhos de juventude e as aspirações que sua condição lhe permite.
Tal como em suas outras obras, Oz se debruça sobre a natureza humana, mas, neste caso, abandona os contornos certeiros da contabilidade, com a qual o escritor sobrevive, e esfuma as linhas entre os fatos reais e os ficcionais. Tecendo sua teia, uma história vai levando a outra, conectando as personagens e tocando a própria figura do escritor, que participa de todas. O desenho dessa trama, ao invés de sucumbir a uma labiríntica busca de assuntos possíveis, sustenta uma explanação do próprio trabalho de autor, numa espécie de oficina literária ministrada com graça e elegância. O narrador modestamente revela os segredos de sua arte, tal como praticada por ele, com uma pitada de ironia e bastante compaixão.
Embora possa ser aproximado de uma lição, o livro, obviamente, não se esgota nisso. Trata-se de um romance, bem construído e pensado, com o escritor sem entusiasmo sendo confrontado com um alter ego, o poeta Tsefania Beit-Halachmi, cheio de otimismo e de ingenuidade.
Numa longa entrevista a um repórter de Israel, Amós Oz revela que se sente temeroso quanto à recepção do público com relação a esta obra, que ele reconhece como um livro excepcional, já que se trata de “um livro sobre um livro, sobre como um livro se escreve”. (Because this is not a regular book, this is an exceptional book. It’s a book about a book, a book about how a book is born and about how a book is written. It’s a book about the writing process. And I don’t know whether people will find it easy, difficult, strange, alluring or repulsive to read a book about how books are written.). Conhecendo seus leitores, após sua longa carreira, suspeita que “talvez o público prefira uma refeição pronta, ao invés de ser convidado a conhecer a cozinha do escritor”, e possam achar o livro repulsivo.
Contrapontos
Rimas da vida e da morte é uma obra literária, e não um manual, construída a partir de vários contrapontos, e que revela cerca de uma dúzia de personagens, entre os quais se destacam, por exemplo, Ruchele Reznik, a leitora; Iakir bar-Orian Z’itomirsky, o organizador; a garçonete Riki; o candidato a poeta Iuval Dahan, que prefere assinar Iuval Dotan; Arnold Bartok, líder político que dorme na mesmo colchão que sua mãe doente, Ofélia; e o poeta Tsefania Beit-Halachmi, cujos poemas de uma alegria ingênua e otimista lhe garantiram muita popularidade nos idos de 1950, mas que, nessa abafada noite de 1980 estaria completamente esquecido se não fosse pela citação de um de seus versos por um dos palestrantes.
Amós Oz confere a todos esses personagens uma mistura de compaixão e ironia. O escritor pode até imaginá-los em seus mais abjetos aspectos, mas nunca os caricaturiza. Pelo contrário, ele lhes confere uma profundidade que só a observação atenta e minuciosa permite. Numa das principais cenas do romance, onde se desenrola a possível cena de sexo entre a tímida e recatada Ruchele e o escritor, pode-se falar de observação microscópica. Entretanto, embora Oz opte pela descrição crua e repulsiva dos hábitos de higiene de um de seus personagens secundários, Ierucham Shedemati, na descrição extensa e minuciosa da relação sexual suas palavras são delicadas, cheias de belas imagens:
Ele, por sua vez, receava um pouco que ela, agora que o desejava e se apertava contra ele, talvez recuasse e até se assustasse ou se ofendesse quando de repente sentisse a rigidez de seu membro através de suas roupas. Mas quando sentiu, longe de se ofender ou de recuar, como se os sonhos de suas noites solitárias a tivessem preparado bem, ela o abraçou e colou seu corpo ao dele e com as palmas de suas duas mãos fez navegar ao longo e ao largo de suas costas, como prazerosos veleiros, carícias cheias de encanto e desejo.
Além das lições de construção de personagens e de variedades de cenas, o autor vai respondendo a todas as perguntas repetidas, com paciência de professor. Ele revela, com humildade, por que escrever sobre essas coisas, exatamente, até chegar à pergunta “Mas o que o escritor quis dizer?”
Ensinar a ler e a interpretar o que se lê, descobrir como rimar vida e morte, já que não existe noiva sem seu par, essa é a missão desse romance de Oz, que, mesmo simplificado pela leitura crítica, ainda oferece material para uma interpretação simbólica de muito mais profundidade. Cabe ao leitor descobrir a sua própria resposta para o que o escritor quis dizer com a história do velho político que não consegue se libertar da mãe doente; com a incapacidade de o escritor completar o ato amoroso; com o exemplo do moribundo Ovadia Hazam e para tantas outras situações criadas para a reflexão. Ou, então, abandonar a leitura, preguiçoso, falando de um livro sobre livros, de um manual de literatura, para depois, numa entrevista qualquer, pedir que o escritor resuma, em suas próprias palavras, o que foi que ele quis dizer com esse romance.