A ceia

Conto de Nilton Resende
Nilton Resende, autor de “Fantasma”
01/01/2009

Mordo o biscoito que levei vagaroso à boca, e ele quebrando-se é como ossos que se esmagam. Trituro-o e imagino desfazer-se a rede desenhada em sua superfície, lembrando-me o jogo que meu avô me ensinou e para o qual me convidou em tantas tardes. Biscoito, rede, ossos triturados. Mordo e sinto como se mastigasse o velho, as migalhas saindo pelos cantos como se uns dedos tentassem escapar.

Eu em cima da mesa me masturbava em frente à pintura da cigana seminua. Deitada num divã, tinha uma das mãos acariciando o bico de um dos seios, enquanto a outra se enfurnava sob o pano púrpuro, eu imaginando-a mexendo nos pêlos até se umedecer entre o sexo que me extasiava. Eu me masturbava e gemia, quando ele chegou à sala e gritou comigo, mandando-me descer.

Retesei-me. E enquanto com uma das mãos segurava o pequeno pênis endurecido, com a outra fiz um gesto de dança no ar, baixando-a lento.

Voltei-me para ele, numa continuação da dança, e fitei-o com o olhar duro. Fiz um bico provocador, abotoando a boca. Lancei-lhe um beijo de deboche. E bruscamente puxei para trás a mão que segurava o pênis, exibindo-o duro e fremente.

Foi quando ele me pegou pelo braço, fazendo-me descer da mesa. Apertou-me, empurrando-me para frente, e disse que contaria a meus pais quando eles voltassem do cinema. Dizendo ainda que daquela vez eles iam saber a peste que tinham dentro de casa.

Se você falar, vai se arrepender, eu disse entredentes. E levantei-me, indo ao banheiro rebolando, um sorriso estampado na cara e em todo o corpo que agora gargalhava do velho que tremia.

Pude ver que ele estava muito nervoso, quando passei pelo espelho e parei, fixando nele o olhar. Estático, apenas olhava-me com uma expressão que ainda hoje não sei precisar se era de ódio ou dó. Fixei-o e, dando um grito zombeteiro, corri para o banheiro.

Demoraram-se alguns minutos, quando ele veio à porta e falou, baixo: Hoje eu conto tudo.

Nesse momento, tive temor. Por instantes, fiquei confuso. Mas logo me acalmei, apertando os olhos em meio à minha brilhante idéia: encostei a face na parede e, com força, esfreguei-a em um movimento vertical até feri-la. Quando a pele começou a arder, prensei os dentes e esfreguei o rosto com ainda mais força. Por fim, joguei a testa contra o vaso. E sorri, quando senti o pequeno caroço se pronunciar. Limpei a parede avermelhada de um pouco do sangue dos arranhões, saí do banheiro, vesti-me e, pé ante pé, passei pelo quarto do velho, certificando-me de que ele dormia. Voltei à cozinha, apaguei a luz de lá e fui para a minha cama. Não sem antes olhar-me no espelho, orgulhoso. Orgulhava-me; e um sorriso imperscrutável esboçou-se. Idêntico ao de quando joguei o rato na cama do velho, eu me contendo para não rir quando — eu já houvera voltado para meu quarto — ele gritou da cama, pedindo socorro porque alguma coisa o mordera. Meu pai e minha mãe correram para ver o que havia acontecido, e precisaram abraçar o velho, quando o encontraram sentado na cama, os olhos esbugalhados olhando descrentes para a massa vermelha esmagada nas mãos. Eu apareci na porta e falei, quase inocente: Vô… O que foi, vô? Mas ele não respondeu; sentado nu sobre a cama, meu pai tentando fazê-lo parar de tremer, minha mãe cobrindo-o com um lençol, as pernas dele magras e negras, quase branco apenas o tufo de pêlos que pude vislumbrar, um acinzentado emoldurando o sexo murcho.

No outro dia, à mesa do café, ele segurou minha mão — minha mãe e meu pai estavam na cozinha —, segurou minha mão e, apertando-a, perguntou, incisivo: Foi você? Mãe!, eu gritei. E quando ela apareceu, ele me soltou. Foi quando me senti poderoso. O que foi?, ela perguntou, aproximando-se. E eu respondi, doce: Mãe, frita um ovo pra mim?

Ela virou-se. E eu, olhando nos olhos dele, quis sorrir. Mas chorei.

Não sei o que se passou na cabeça dele nos outros dias, mas pareceu-me ter esquecido o rato. E também o escorregão que levara uns dias antes porque eu houvera passado cera na entrada do quarto, fazendo-o tombar e bater com a cabeça no chão. E o rapé. Que eu misturara com um pouco de pimenta-do-reino moída.

Ele estava calmo, agora. E ficávamos brincando à tarde. Ele desenhava as listras no papel, e colocávamos os caroços de feijão nos pontos até vermos quem conseguia trancafiar o outro. Mas na noite em que eu subi à mesa eu percebi: ele estava decidido a falar.

Fui à cama. Deitei-me e esperei meus pais chegarem e irem dormir, mas não preguei o olho. Pela manhã, ouvi os cochichos na cozinha. Ele não presta, escutei meu avô dizer. Respeite o meu filho, disse meu pai. Respeite o meu filho, ou você vai pra fora desta casa. Mas eu sou seu pai, o velho falou, a voz enrouquecida. E ele respondeu: Mas ele é meu filho. E nesse instante minha mãe gritou que não era possível ser verdade aquilo, eu era apenas uma criança!

Chamem ele!, meu avô disse. Chamem, disse novamente, baixando a voz. Perguntem na minha frente se o que eu disse é mentira. Perguntem! Não é possível que ele vá mentir.

Foi quando chorei. Dei um primeiro gemido bastante alto e depois baixei o som, tremendo o corpo sobre a cama, eu inteiro enrodilhado na coberta. Enrodilhado e soluçando, uns acessos de tosse ainda mais fortes quando meu pai chegou ao quarto. Ele entrou e, ríspido, retirou o travesseiro de sobre minha cabeça. Até hoje não esqueço sua cara de terror quando olhou para mim. Colocou-me nos braços, eu ainda chorando num exagero que aumentou ainda mais quando passamos pelo espelho e eu pude ver o rosto inchado, a testa arroxeada e a face cheia de arranhões.

Ele me bateu!, eu gritei. Ele me empurrou, pai, e esfregou minha cara no chão.

Gritei ainda mais alto quando vi meu avô estarrecido, precisando apoiar uma das mãos na cadeira que estava atrás dele. Ele me bateu, pai. Tá doendo, pai. Ai, ai, pai, dói, dói.

Só parei de chorar horas depois, quando saí do hospital. Minha mãe puxara meu pai pelo braço, e me levaram para fazer uns curativos. Saímos, e pude ver meu avô olhando para mim, numa expressão embrutecida, movendo a cabeça para os lados. Parece até que vi uma lágrima descer pelo seu rosto encovado.

Após aquela manhã, meus pais não falaram mais com meu avô, que quase não saía do quarto, a não ser para ir ao banheiro. Ou para cheirar seu rapé, sentado no quintal.

Passou-se uma semana e ouvi meus pais conversando sobre ele. Nesse mesmo dia, uma quinta-feira, convidei meu avô para jogar.

Minha tia, que agora ficava em casa enquanto meus pais iam trabalhar, disse a ele: Tá vendo, pai…? O menino quer jogar. Tá vendo?

Ele mexeu a cabeça. Foi ao quarto, pegou um pedaço de papelão e levou-o à cozinha, com lápis e régua na outra mão. Sentou-se e levantou o rosto assombrado, vendo que eu colocara sobre a mesa um tabuleiro que já houvera riscado. Sentei-me logo depois e, esperando ele se restabelecer, começamos o jogo de um tentar prender o outro.

Percebi que ele não se empenhava em ganhar. Mas não dei valor a isso; com alguns lances, pude tê-lo entre meus feijões, meus grãos cercando-o. Coloquei o último deles com um gesto todo solene. E disse, baixinho: Ganhei.

Quando vi seu olhar inexpressivo, meus olhos quiseram chorar. Eu digo: quase chorei. No entanto, contive-me. E tocando o último feijão que houvera colocado, disse mais uma vez, agora me aproximando de seu ouvido: Ganhei.

Foi quando meus pais chegaram em casa e se aproximaram da cozinha com um representante do asilo para onde iam levar o velho — eu ouvira a conversa pela manhã. E outra vez articulei a palavra para ele, agora sem som, apenas movendo os lábios, afastando-me dele ao mesmo tempo em que abria os olhos como se para fazê-lo compreender melhor o que eu lhe dizia: Ganhei. E à frente de todos, lento e agora deixando os olhos se encharcarem, à frente de todos eu enlacei meu avô pelo pescoço, aproximei meu rosto lentamente e, fechando os olhos para que uma lágrima resvalasse, com aparente profundo amor beijei-lhe a rendida face.

Nilton Resende

É ator, professor e pesquisador em literatura. Publicou o livro de poesias O orvalho e os dias, premiado no Projeto Alagoas em Cena 2006.

Rascunho