🔓 O ato da espera

A política como a mais potente maneira de restabelecer a convivência pacífica e combater a barbárie
01/11/2022

Os prazos editoriais quase sempre enlouquecem os que neles estão enredados e, o que é o cotidiano deste meio, torna-se superlativo quando o tema do colunista é política pública em um país que somente conhecerá seu destino vinte dias após essas linhas terem sido escritas.

Nesse contexto é inevitável rabiscar os desenhos das possibilidades tendo como bases reais a história presente e passada, imaginando o que poderemos evitar e o que provavelmente iremos enfrentar se a votação popular consagrar a pior opção do ponto de vista da democracia, da inclusão social e do desenvolvimento sustentável.

Tudo estaria quase perfeito nessa formulação de hipóteses futuras se não estivéssemos no Brasil após seis anos de um golpe antidemocrático e regressivo que trouxe às claras as estruturas mais perversas de nossa história, como o autoritarismo, o escravismo, o racismo, a xenofobia e o engodo como prática política. Soma-se ao difícil Brasil o nosso planeta, que vive uma profunda crise econômica, social e de valores que ainda requer um entendimento das ciências políticas, sociais e filosóficas.

Para quem já viveu e estudou algumas décadas, retornam agora à mente as muitas análises de várias correntes à esquerda ou conservadoras, pensadores que refletiram sobre o nosso mundo pós Segunda Guerra Mundial que arquitetou uma sociedade que parece se consolidar para alguns, mas, que para outros, parece estar a um passo de sua derrocada fatal.

Pressionados pela líquida imediatez das respostas curtas e rápidas, os cidadãos comuns, principalmente aqueles poucos que são privilegiados pelo acesso e compreensão das diversas leituras, se veem hoje encurralados nas possibilidades mais assustadoras que lhes trazem imagens de um passado recente quando o pior dos seres humanos veio à tona deixando um rastro de ódio, perversidade e morte.

Não é para menos os muitos espantos que nos deparamos cotidianamente. Afinal, como o não especialista em política poderia vislumbrar o renascimento do fascismo e do nazismo como possibilidades de governo, ainda mais apoiados por parcelas consideráveis da população em plena terceira década do século 21? Ou que, aquilo que o mundo ocidental considerou até há pouco tempo um modelo político reservado apenas a países do oriente, considerados atrasados social e politicamente, como os regimes dos aiatolás e suas teocracias comandando os Estados, estivesse ascendendo tão rapidamente em partes do ocidente, inclusive no Brasil, com as igrejas e seus comandantes impondo seu poder no Estado liberal e laico?

Inúmeros exemplos de regressões de várias ordens, que implicam perda de direitos civis e democráticos, grassam por este mundo e em nosso país justamente no movimento ascendente das tecnologias que desnudam em tempo real o presente e o passado a um toque de dedos, bastando o acesso à virtualidade da internet. Não podemos nem alegar desconhecimento da história porque canais de acesso aberto mostram com profusão todos os fantasmas do passado que voltam a nos atormentar social e individualmente.

Resta-nos perguntar se a maioria compreende essa abundância de informações que recebe e, compreendendo-a, exerce com consciência seu direito à crítica ou à adesão. O tema é vasto, tratado em variadas perspectivas, mas as reflexões sobre o tema do público e do privado e da crise da ideia de política, tem me atraído particularmente e me levado a leituras ou releituras de autores instigantes que formularam raciocínios seminais e que não podemos desconsiderar quando procuramos entender o atual estado da arte das relações humanas. É inevitável pensar em alguns deles nesses dias de espera. E se a espera é angustiante, as possibilidades ou impossibilidades de vários pensadores que leio são igualmente angustiantes ao nos demonstrarem o tamanho de nossos problemas civilizatórios.

De autores liberais clássicos, como Tocqueville e suas reflexões sobre os males do individualismo que afastam os homens das virtudes da esfera pública, chegando a contemporâneos como Richard Sennet, Daniel Innerarity, Zygmunt Bauman, entre outros, várias leituras iluminam aspectos que dialogam entre si ao apontar tanto o fenômeno do repúdio à ideia de coletividade, de comunidade, de polis, quanto a inseparabilidade deste distanciamento do comum com a construção de indivíduos cada vez mais alienados pela própria dinâmica do desenvolvimento capitalista.

Nesse contexto, e como assinala Sennet em seu famoso livro O declínio do homem público (Record, 2014), ao celebrar o gueto, o isolamento, a “experiência humana íntima e local”, o que se perde “é a ideia de que as pessoas só podem crescer através de processos de encontro com o desconhecido. (…) O amor pelo gueto, especialmente o gueto de classe média, tira da pessoa a chance de enriquecer as suas percepções, a sua experiência, e de aprender a mais valiosa de todas as lições humanas: a habilidade para colocar em questão as condições já estabelecidas de sua vida”.

Leio essas reflexões sobre a apologia da crítica à ideia de comunidade, de coletivo, de sociedade que molda as pessoas e rebaixa o cidadão, como a antítese da ideia de política que só é genuína e digna de ser quando sua dinâmica é a revolução da própria política.

Não é à toa que o ódio a pensadores como o educador Paulo Freire está tão disseminado pelo atual governo defensor das meritocracias e da exaltação de governantes “gerentes”. Odiá-lo é eliminar ou tergiversar sobre o lugar e a pertinência necessária do cultivo à única política possível, aquela que existe para questionar, dialogar, conhecer e transformar. Não nos esqueçamos da primeira frase de Freire em seu seminal Educação como prática da liberdade (Paz e Terra, 2021): “Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio”. A revolução educacional e a visão social de Freire têm os pés firmes na verdadeira ideia de política, a que demonstra sólida opção pelo diálogo não autoritário, pelo reconhecimento dos conhecimentos diversos dos homens e pela absoluta adesão à ideia de comunidade de sujeitos: “… na prática democrática e crítica, a leitura do mundo e a leitura da palavra estão dinamicamente juntas. O comando da leitura e da escrita se dá a partir de palavras e de temas significativos à experiência comum dos alfabetizandos e não de palavras e temas apenas ligados à experiência do educador.” (A importância do ato de ler, Cortez Editora, 2021)

Nada mais distante de Freire do que a dura realidade demonstrada pelo livro de Bruno Paes Manso, A república das milícias (Todavia, 2020), que na sua página final dispara: “Bolsonaro venceu a eleição de 2018 porque parte dos brasileiros foi seduzida pela ideia de violência redentora. Diante da crise econômica e da descrença na política, os eleitores escolheram um justiceiro para governá-los”.

Neste entreato de quem espera os resultados de seu destino, penso que recuperar a ideia de política como possibilidade única de viabilizarmos as relações humanas é uma batalha possível e que não podemos perder. Josep Ramoneda, prefaciando o livro de Innerarity (A política em tempo de indignação, LeYa, 2017), sintetiza isso em três ideias de uma possível construção: “a política como único poder ao alcance dos que não têm poder”; “não há pior fantasia do que a de uma sociedade sem política e com Estados limitados às funções de controle e vigilância” dando espaço para as máfias, o crime e poderes não democráticos; “o grande desafio da política é manter autonomia em relação aos poderes econômicos, estabelecendo limites…”.

Se a humanidade e, particularmente, o Brasil conseguirem dar esses passos recuperadores na política, poderemos vislumbrar a perspectiva de uma sociedade do diálogo, da democracia, da inclusão, do reconhecimento das diversidades e do desenvolvimento ecologicamente sustentável. Sem isso, será a barbárie estabelecendo o imponderável.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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