Lições da Rússia

Com abordagens distintas, romances compõem painel da complexidade e das perturbações que sempre estiveram na trajetória do país do Leste europeu
Ilustração: Eduardo Souza
01/11/2022

A Rússia não é simples. De resto, afirmação que poderia ser feita em relação a qualquer país, mas há complicações e complicações. Dois lançamentos recentes de autores com diferentes abordagens a respeito da Rússia lembram o quanto é possível verificar que são ao mesmo tempo complementares e totalmente distintos. Enquanto em O dia de um oprítchnik, Vladímir Sorókin cria uma distopia que remete o país a um futuro um tanto complicado, porque retrógrado, em Um país terrível, Keith Gessen prefere olhar para o que talvez seja o início do processo de desmoronamento de um país, diante da história recente, tão recente que é também aquela que ainda está em andamento, de certa forma. Em comum, a trajetória de dois escritores contemporâneos, o que é raro de se chegar por aqui em tradução e mais um motivo para celebrar. Gessen, embora russo de nascença, migrou com a família para os Estados Unidos e de algum modo o seu relato reflete essas andanças. Sorókin mergulha numa radicalidade de visão de mundo que pode chocar estômagos mais sensíveis. Aos pormenores.

Feudalismo esclarecido
A Rússia de Sorókin é narrada no decurso de 2027, quando os oprítchniks voltaram à circulação. Explica-se: durante o reinado do tsar Ivã, o Terrível, no século 16, havia uma milícia encarregada de implementar com força e brutalidade as decisões do ditador, chamada oprítchnina. Para as pessoas que a integravam, os oprítchniks, a violência foi naturalizada e o ponto de vista escolhido é o de um deles, Andrei Danílovitch, conhecido como Komiága. Se os integrantes originais levavam uma cabeça decapitada de cachorro presa no pescoço dos cavalos e uma vassoura na cintura, agora esses instrumentos vão no para-choque e no porta-malas de uma Mercedes turbinada. É uma mistura clara do último estágio do capitalismo com o feudalismo mais atroz. Por mais modernidade que tenham à disposição, “mentalmente não se distinguem dos senhores feudais do século 16”, como declarou o autor numa entrevista por ocasião do lançamento do livro, em 2006, referindo-se aos personagens. A conclusão a que ele chega: “Penso que, entre nós, existe um feudalismo esclarecido, amplificado pela alta tecnologia. Os senhores feudais contemporâneos não andam de carruagens, mas de Mercedes 600”.

O lema dos caras é singelo: “Aquele que ergue o machado deve deixá-lo cair”. Estão habituados a seguir ordens sem qualquer traço de dúvida ou sombra de questionamento. Palavra e Dever, dizem-se uns aos outros, ou eia, eia, eia, e é isso. Execute-se. Seja a ordem ou alguém. A primeira missão do dia: abater um fidalgo, que tem uma segurança excepcional em casa, com três guaritas. O sujeito é pendurado pelo pescoço, a mulher é estuprada e tudo isso parece não passar do café do manhã dos campeões. “Somos a matilha da segurança”, diz Komiága a certa altura. “Temos que manter a mente fria e o coração puro.” Claro, nem lhe ocorre se perguntar o que é possível entender por pureza. Komiága trabalha para o Pai e este, para o Soberano, que por mais que seja chamado por um nome genérico, claramente pode ser associado ao dirigente atual, Vladímir Pútin. Vale dizer: Komiága não é o brutamontes convencional, burro e obediente. A certa altura ele diz ter estudado História numa universidade estatal de Moscou, antes de ingressar na Oprítchnina, ou melhor, ser convocado. A casa do fidalgo poderia ser incorporada ao patrimônio de algum dos envolvidos, mas o Soberano queria um galo vermelho, ou seja, um incêndio. É a lei, nessa situação a casa nem sequer pode ser saqueada, antes de posta abaixo. “Todos os bens estão destinados ao galo vermelho do Soberano”, diz Komiága.

Nesse cenário desolador, a Rússia está protegida da influência europeia por uma Muralha Ocidental e a aproximação com a China é inevitável, mesmo que conflitos localizados persistam. Komiága repassa a própria agenda: tem três tarefas para o dia. O ataque ao fidalgo foi por incompetência dos colegas e está fora do planejado. Deve se encontrar com bufões para umas festividades, apagar uma estrela, e por fim visitar a clarividente Praskóvia de Tobol. Mas uma emergência atrapalha a primeira das tarefas, Komiága e outros, além do Pai, são convocados até o Palácio Vermelho do Soberano, para mostrar que sofreram um ataque, um poema que mancha a reputação, por meio da sátira, não apenas do Soberano, mas de sua família. E sabem que a origem é próxima, o genro do Soberano, o conde Andrei Vladímorovitch Urússov. O poema em questão sugere que Urússov gosta de trepar nas proximidades de incêndios. Questionado pelo Soberano, ele admite, não apenas a tara, mas a iniciativa de provocar o incêndio.

Enfim, na sala de concertos do Kremlin, ele escolhe entre as opções de espetáculo para uma celebração, sugere correções e é solicitado por uma bailarina do Bolshoi a intervir para evitar a deportação de uma amiga. O preço é um valor em dinheiro e um aquário. O grupo de oprítchniks se encontra numa sauna para usufruir do suborno: os peixes são introduzidos na corrente sanguínea e provocam uma espécie de sonho coletivo. O que fazem não está proibido, o Soberano decretou a liberação de vários tipos de drogas. Quando se prepara a próxima tarefa, Komiága é interrompido e precisa intervir numa situação de fronteira, um dos conflitos com chineses. Viaja de avião, em primeira classe, para outro local, para tratar do assunto. A operação é para convencer os chineses a contratar um seguro e fortalecer a bolsa da gangue. É momento peculiar do livro, porque começam a entrar no vocabulário várias expressões chinesas, como ao longo do livro várias expressões em russo ocorrem, com as respectivas notas de rodapé. Em seguida, Komiága se encontra com Praskóvia, a clarividente, que alimenta a lareira com edições de O idiota (de Dostoiévski) e Anna Kariênina (de Tolstói). “Junto a uma fogueira de livros é sempre, sempre muito quente”, diz Komiága, numa referência indireta ao fato de que em 2002, na Rússia, um grupo de jovens queimou vários livros, entre eles o romance Gordura azul, de Sorókin, acusado de apologia à pornografia, às drogas, e de linguagem obscena.

De volta a Moscou, a próxima tarefa é execrar no palco uma estrela do teatro, com a ajuda de um outro grupo de milicianos. É o que ele havia chamado de apagar uma estrela. Como precisou viajar e não pôde planejar direito a ação, o tiro sai pela culatra. Os jovens que vão para vaiar e criar tumultos terminam por levar uma surra. Tudo bem, é um revés apenas, entre tantas missões bem-sucedidas. E Komiága escapa ileso. Sua próxima tarefa é se encontrar com a Soberana, para comunicar a ela o que a vidente Praskóvia previu. Em retribuição, a Soberana envia para a lareira da vidente as Obras completas de Anton Tchekhov.

Por último, a atividade derradeira da noite, uma orgia, cujos detalhes é importante deixar em aberto para que o leitor possa usufruir de maneira autônoma. E por fim nosso herói (contém ironia, é sempre bom avisar) pode voltar para casa e para sua Anastassía. Sim, porque ele é casado e, como previu a vidente, a esposa está grávida. O que parece uma sombra de esperança em meio a tanta virulência. Na definição da tradutora, que também assina o posfácio, o livro pode ser definido como “retrofuturista”, um neologismo criado por Mark Lipovestky para ser aplicado justamente à literatura de Sorókin. Muito, muito sombrio e áspero é o futuro e resta ao leitor torcer para que esse tipo de previsão esteja equivocado. O papel de sátira contra os desmandos do poder persiste, no entanto, e tem sua eficácia. Num mundo que se torna a cada dia mais tolo, Sorókin merece ser lido com atenção redobrada.

Abordagem diferente
Inteiramente outra é a situação de Gessen, que se volta para o passado recente da Rússia, quando Pútin tinha deixado o poder (ou não, se se pensar que Dmitri Medvedev foi um presidente laranja) para ser “apenas” primeiro-ministro. Em Um país terrível, o narrador tem em comum com o do romance anterior apenas o prenome, Andrei. No entanto, como migrou para os Estados Unidos, adota o equivalente local, Andrew. O livro relata o retorno às origens de Andrei Kaplan. Ele deixa Nova York para voltar a Moscou e cuidar da avó por uns tempos, a pedido do irmão mais velho, Dima. A narrativa é simples e direta, pedestre, e cumpre inteiramente a missão: mostrar um retrato da Rússia, ou melhor, de Moscou, depois do fim da União Soviética e com a ascensão do capitalismo e de líderes que encontram mecanismos para se perpetuar no poder indefinidamente. Andrei tem uma carreira acadêmica frustrada, levou um pé na bunda da namorada, trabalha como professor online para receber salário irrisório, está sem perspectivas e termina por aceitar a incumbência de cuidar da avó materna, Seva Efraímovna Gekhtman, próxima de completar noventa anos. Ela mora no centro de Moscou, hoje região gentrificada. Por ter prestado consultoria, quando era professora de história, para a realização de um filme a respeito de Ivan, o Grande (avô de Ivan, o Terrível, o mesmo que criou a oprítchnina) que muito agradou aos governantes, Seva recebeu de Stálin um apartamento, como aliás todas as pessoas envolvidas na produção. Mas pouco depois foi expulsa da universidade, por conta de antissemitismo, e sobreviveu com aulas particulares. Entre outros reveses, perdeu a datcha, a casa de campo que parece tão comum aos russos, e onde podem se refugiar nos meses quentes do verão. A avó entra com suavidade na demência, o que é desolador e um tanto pungente. Reclama da solidão, alega que não lhe sobrou qualquer pessoa. Sua agenda, diz, são “só listas de pessoas mortas. Só tem morto, morto, morto”. A única amiga, Emma Abramovna, nem é tão amiga assim e não percebe, ou finge não perceber, as indiretas de Seva para que a convide, pelo menos uma vez antes que morra, para passar uns dias em sua datcha no próximo verão. Com isso, talvez Seva consideraria a existência resolvida em definitivo. Ela está cada vez mais mergulhada em depressão. Tanto que sempre repete ao neto o que consta do título, que este é um país terrível, o que gera certa ambiguidade, porque é como se ela tentasse justificar para si mesma a decisão da filha, ao se exilar tempos antes, mais do que de fato explicitar a situação atual.

Como Andrei deixou o país aos seis anos de idade, a volta tem um tom de olhar à primeira vista. Ele sente todo tipo de diferenças. Precisa frequentar um café para usar o wi-fi e ministrar as aulas, além de manter contato com o velho mundo. Precisa encontrar um local para praticar seu esporte favorito, o hóquei. Precisa dar alguma atenção à avó. O irmão, que é o bem-sucedido, está foragido na Inglaterra, envolvido talvez com negociações escusas. Ele sublocou o apartamento que tem ao lado da avó e Andrei portanto mora com ela, o que termina por ser o melhor arranjo. Mais tarde, o irmão quer aproveitar para vender os dois apartamentos, mas Andrei, emocionalmente envolvido com a avó, se recusa. Está cada vez mais entusiasmado com as dificuldades de sobrevivência no país. Era difícil nos Estados Unidos? Pois é ainda mais na Rússia. Mesmo que na pátria adotada o sistema financeiro tenha entrado em colapso. Andrei aos poucos vai cavando espaços, encontra onde jogar hóquei, paquera, conhece pessoas, se junta a um grupo político que faz pequenas manifestações. E cuida da avó. Sem ter perdido de todo a esperança de entrar no ambiente acadêmico norte-americano, ele mantém contatos e exala ressentimento em relação aos colegas que se mostraram bem-sucedidos. Mas tem consciência da própria postura, o que não deixa de ter certa vantagem (auto)crítica.

Quando a crise chega ao rublo, a avó pergunta a Andrei quanto dinheiro ela tem no banco. Vão verificar e não é muito, é na verdade bem pouco, o equivalente a quinhentos dólares (que corresponde ao salário, aliás, que Andrei recebe por mês). Depois a avó quer comprar chinelos, mas não quaisquer chinelos, uns específicos, da Bielorrússia. Anda que anda, não encontram. Depois, em outra situação, aparecem os tais chinelos bielorrussos. “Um célebre historiador certa vez definiu o povo russo — Homo sovieticus — como ‘uma espécie cujas mais elevadas capacidades englobam a caça e a obtenção de bens escassos em um ambiente urbano’”, anota o narrador. E assim, entre o cotidiano trivial e a luta aguerrida pela sobrevivência, Andrei vai se russificando cada vez mais. Tratado pelos novos amigos do hóquei com certa polidez, daí a pouco ele já consegue participar das trocas de xingamentos recíprocos. Por fim, começa um namoro com Iulia e aí o engate está definido.

Ele frequenta um grupo político, o Outubro, e ao lado de Iulia faz protestos e traduz para o inglês os textos para um site. Termina preso, por uma bobagem, mas o que faz a partir daí mina não só seu relacionamento com o restante do grupo, como compromete a permanência no país. Não importa, toda a aventura parecia mesmo um passeio para acúmulo de experiência, à espera da oportunidade para se engajar no sistema acadêmico norte-americano. E o sabor agridoce do fim do livro é talvez o grande senão, porque sai um pouco da coerência. O texto, no entanto, continua a deslizar por tudo como se uma escrita fluente justificasse quaisquer escolhas. São Rússias distintas nos dois romances, mas ambas estão no centro das crises que são os humanos em briga com a existência, os poderes constituídos, regras estabelecidas, comportamentos inadequados. Viver não é brincadeira.

O dia de um oprítchnik
Vladímir Sorókin
Trad.: Arlete Cavaliere
Editora 34
240 págs.
Um país terrível
Keith Gessen
Trad.: Bernardo Ajzenberg e Maria Cecilia Brandi
Todavia
416 págs.
Vladímir Gueórguievitch Sorókin
Nascido na cidade de Bykovo, nos arredores de Moscou, em 1955, Sorókin é engenheiro por formação. Trabalhou na revista Smena [Mudança], por um ano. Foi ilustrador de livros e desenhista. Em 1985, publicou o primeiro romance, Fila. Teve os textos banidos durante o regime soviético e publicou a primeira coletânea de contos em 1989, em uma revista de Riga, na Letônia. Os textos começaram depois a aparecer em revistas russas. Também é autor de peças e o texto de Dostoiévski-trip foi publicado no Brasil, pela Editora 34, em 2014. Os romances mais recentes são Telúria (2013), Manaraga (2017) e Doutor Garin (2021). Seus livros estão traduzidos atualmente em mais de vinte idiomas.
Paulo Paniago

É jornalista, escritor e professor. Venceu prêmio Cidade de Belo Horizonte com  Quando termina. Publicou também os ensaios de  Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira e o romance Com meus dentes de cão.

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