Em 1918, Zhou Shuren revolucionou a literatura chinesa com O diário de um louco, o primeiro de seus contos publicados. O pseudônimo escolhido pelo autor levava o sobrenome da mãe: Lu Xun. A narrativa foi pioneira. Não só por adotar a linguagem vista no cotidiano da população, ao invés do tradicional uso do chinês clássico, mas porque propunha uma literatura que estivesse em sintonia com o resto do mundo, sem fórmulas herdadas. Visto como o pai da literatura chinesa moderna, Lu Xun estava intensamente envolvido com movimentos de renovação cultural, política e social na China.
Lu Xun foi um dos principais líderes do Movimento Quatro de Maio, de 1919. O movimento anti-imperialista protestava contra a resposta do governo chinês à ocupação dos territórios em Shandong, envolvido no Tratado de Versalhes, pelos japoneses. O protesto, que começou como um movimento estudantil, passou a abarcar diversas outras questões, como a defesa da ciência, da democracia e a libertação das mulheres — temas discutidos nas obras de Lu Xun.
No Brasil, o contato com a obra era parcial e incompleto, com algumas iniciativas individuais. Serve de exemplo a edição de Novelas escolhidas (1988), lançado pela Imago utilizando a grafia de Lu Sin. Foi só com a publicação de O diário de um louco: contos completos de Lu Xun (2022) que o leitor brasileiro teve acesso às obras do escritor chinês.
O volume reúne as três coletâneas organizadas pelo escritor, O grito (1923), Hesitação (1926) e Histórias antigas recontadas (1926), e contou com a tradução de Beatriz Henriques, Cesar Matiusso, Marcelo Medeiros, Marina Silva e Pedro Cabral. A coordenação e revisão técnica das traduções ficou a cargo de Ho Yeh Chia, professora de Língua e Literatura Chinesa na Universidade de São Paulo.
Ho Yeh Chia também é responsável pelo posfácio do livro, que contextualiza a luta e obra de Lu Xun. Ali, a professora explica que o contista chinês “dizia que a pena era o seu instrumento de luta, e a sua luta era contra uma sociedade vista por ele como doentia e uma cultura cheia de superstições e preconceitos”.
Lu Xun descrevia a sociedade chinesa como antropofágica, uma devoradora de pessoas e personalidades. Queria, com sua literatura, despertar os indivíduos para essa situação macabra e inspirar cidadãos a tomarem o controle das próprias vidas. Por isso, seus contos são repletos de melancolia, desencanto e de ambições vazias.
Entre passado e futuro
Sua obra é um retrato do momento de transformações na sociedade chinesa. Apresenta os conflitos entre passado e futuro, arcaísmos e modernizações, dialoga com os pensamentos taoístas e confucionistas, discute e ideologias e, talvez o mais importante, mostra a luta pela sobrevivência e as opressões sofridas pelos cidadãos comuns — seja em um salário atrasado, na superstição de um pão que pode salvar a vida de um filho ou das mulheres que foram entregues para as ruínas.
Em sua trajetória, Lu Xun tentou ser médico. Não conseguiu. Ao longo de suas experiências, concluiu que a medicina não poderia curar as almas doentes. Só as palavras tratariam dessas chagas. Por isso, sua literatura se tornou um tipo de missão, mas uma missão independente.
No entanto, não é difícil encontrar o autor alinhado aos ideias do Partido Comunista da China (PCCh). Apesar da afinidade que teve com o programa do PCCh no começo da sua vida, o autor nunca foi filiado e, gradualmente, foi perdendo a fé na revolução e no partido. Sua associação surgiu por dois grandes motivos. O primeiro deles era a paixão de Mao Tsé-Tung pela obra de Lu Xun.
Ao conhecer a obra do escritor em um momento de crise pessoal, o líder chinês ficou arrebatado. Levava sempre os livros do escritor consigo, encorajava discussões e afirmava que ele conhecia os camponeses e a opressão dos pobres pelos ricos e poderosos como ninguém. Mao cultuava Lu Xun, considerava-o mais sábio que ele mesmo e que Confúcio — por isso, sua imagem foi fortemente associada ao maoismo.
Soma-se a isso o segundo fator. Quando passou a mudar de ideia sobre o partido, Lu Xun foi visto como uma persona non grata, principalmente porque não queria escrever uma literatura de combate ou filiar sua obra. Mas, depois de sua morte, foi fácil a instrumentalização dos contos pelo programa partidário, já que não enfrentariam resistências.
Por isso, a obra do escritor foi revista com o falecimento de Mao Tse-Tung. Com a morte do líder chinês, diversos ideais supremos foram rebaixados ou esquecidos. O culto a Lu Xun foi um desses fator. Visto como uma entidade ou ente sagrado, perder o status divino beneficiou o contista. Ho Yeh Chia sintetiza esse movimento:
Lu Xun se tornou um literato entre muitos outros, e não mais um semideus contemporâneo. (…) Isso teve um efeito saudável sobre a obra do escritor. Se em seu próprio país ele foi se tornando apenas mais um entre outros autores, no exterior Lu Xun começou a ser analisado com outros olhos. Desvinculado do papel de “porta-voz do maoísmo”, ele passou a ser estudado e reconhecido como o grande escritor que sempre foi. Sem o véu ideológico que lhe fora imposto pelo partido, sua imaginação vertiginosa, sua capacidade de construir metáforas fortes e inesperadas, sua ousadia, seu amor pelo indivíduo e pela liberdade humana aparecem em plena luz.
Opressão
Ao tomar conhecimento das linhas de Lu Xun, é possível que o leitor reconheça algumas similaridades com a literatura. Os mujiques de Tchekhóv, por exemplo, podem ecoar nos camponeses chineses e a batalha cotidiana pela sobrevivência. Os personagens de Lu Xun estão permeados pela derrota, fome e miséria.
No conto que dá nome ao livro, o escritor chinês coloca a antropofagia social de forma concreta. Em O diário de um louco, acompanhamos anotações escritas durante um surto psicótico. A cada dia que passa, o paciente tem mais certeza de que todos ao seu redor querem devorá-lo. O próprio médico, por exemplo, está ali para se certificar de que ele engorde e se torne mais saboroso. Utilizando o canibalismo como figura de linguagem, Lu Xun apresenta um canibalismo que permeia toda a estrutura social, ainda que uns a abracem com dor e vergonha e, outros, repletos de prazer.
Já em A verdadeira história de Ah Q, um de seus contos mais célebres, lemos a tentativa de registro da história de um trabalhador miserável e inescrupuloso, esquecido pela cidade e tido como um pobre qualquer. Apesar disso, Ah Q se vê como uma pessoa extraordinária e tenta tirar vantagens de qualquer situação. Narrada em um momento de declínio imperial e de efervescência revolucionária na China, Ah Q é deixado de lado e desconsiderado de qualquer movimentação política.
Lu Xun também apresentava a opressão em outras frentes, como o machismo opressor da sociedade chinesa. Não só na apresentação das mulheres de pés-amarrados, ou pés-de-lótus, tradição que amarrava e deformava pés femininos para adequá-los a um padrão de tamanhos pequenos, mas também na apresentação das dificuldades do estudo, do divórcio e nas complexidades do trabalho doméstico e a remuneração. Contos como Uma tempestade passageira, O divórcio, O sacrifício de ano-novo e in memoriam diário de Juan Sheng deixam em evidência tais questionamentos.
Por fim, é importante ressaltar que Lu Xun não defendia um progressismo desenfreado. Depois do ceticismo com o movimento revolucionário, Lu Xun aprofundou os diálogos com pensadores e filósofos. Ao estruturar Histórias antigas recontadas, o escritor retomou textos antigos, lendas e histórias míticas, para atualizá-las e colocá-las aos dias de hoje. Como explica Ho Yeh Chia, “Lu Xun buscou nessas histórias transformar a tradição por dentro, recuperando personagens e narrativas, mas subvertendo muitas vezes seu sentido original. Mais do que em qualquer outra obra sua, é possível sentir nessas histórias o quanto a literatura de Lu Xun é refratária a qualquer tipo de instrumentalização política”.