Poemas de David Wheatley

Leia os poemas traduzidos "Dos Sonetos para James Clarence Mangan", "14.", "Poema", "Uma pedra roçando no lago Bray" e "Rádio AM"
David Wheatley, poeta e crítico irlandês
01/11/2022

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

From Sonnets to James Clarence Mangan

1.
Fishamble Street, the Civic Offices
turning the sky a bureaucratic grey
above a vacant’s lot rent-free decay:
craters, glass, grafitti, vomit, faeces.
One last buttressed Georgian house holds out
precariously against the wrecker’s ball
or simply lacks the energy to fall
and rise again as one more concrete blot.
Ghost harmonics of the first Messiah
echo round the Handel Hotel and mix
with bells long redeveloped out of use
at Saints Michael and John’s, a ghostly choir
rising and falling until the daydream breaks…
Silence. Of you, Mangan, not a trace.

Dos Sonetos para James Clarence Mangan[1]

1.
Na rua Fishamble, as repartições públicas
fazem da cor do céu um cinza burocrático
sobre um decadente e vago terreno baldio:
buracos, vidros, grafite, vomito, fezes.

Uma derradeira e escorada casa Georgiana se destaca
precariamente contra o guindaste de demolição
ou talvez apenas não tenha a energia para ruir
e se reerguer como mais um borrão de concreto.

As harmonias espectrais do primeiro Messias
ecoam em torno do Hotel Handel, e se misturam
aos sinos há muito deixadas sem uso
nos fantasmagóricos coros da igreja de São Miguel e São João
subindo e descendo até que se quebre o devaneio…
Silêncio. De você, Mangan, nem um traço.

14.
Let the city sleep on undisturbed,
new hotels and apartments blocks replace
the Dublin that we brick by brick erase;
let your city die without a word
of pity, indignation, grief or blame,
the vampire crime lords fatten on its flesh
and planners zone the corpse for laundered cash,
but let your heedless cry remain the same:
“The only city that I called my own
sank with me into everlasting shade.
I was born the year that Emmet swung
and died my fever death in ’49:
my words are a matchstick falling through the void
and scorch the centuries to come with song.”

14.
Deixe a cidade dormir sossegada,
novos hotéis e blocos de apartamentos substituem
a Dublin que nós, tijolo por tijolo, apagamos;
deixe que sua cidade morra sem qualquer palavra
de consolo, indignação, luto ou revolta,
os vampiros senhores do crime engordam em suas carnes
e os planejadores zoneiam cadáveres para lavar dinheiro,
mas deixe que seu grito negligente permaneça igual:
“A única cidade que já chamei de minha
naufraga comigo para a sombra eterna.
Nasci no ano em que Emmet foi pendurado
e morri de minha febre em ’49:
minhas palavras são um palito de fósforo caindo no vazio
que farão arder os séculos vindouros com canções.”

Poem

The roof has fallen but the house still stands.
Birds drop to our table from the open sky.
I cup and drink the rain from shivering hands.

Nothing could be simpler that my wants:
to go on living here not bothered why
the roof has fallen though the house still stands.

Some would assail the builders with complaints
(our bed was waterlogged last night). Not I,
cupping and drinking the rain from shivering hands.

You call it folly, I call it romance,
to weather each new test and still get by.
So what if the roof has fallen? The house still stands

and we still thrive in the muck and damp like plants,
nourished by the forces we defy.
I cup and drink the rain from shivering hands

and lie in the dark. The sea breeze roars and rants.
Drive us out? I’d like to see it try.
The roof has fallen but the house still stands.
I cup and drink the rain from shivering hands.

Poema

O telhado caiu mas a casa ainda está de pé.
Pássaros pousam em nossa mesa vindos do céu aberto.
Com mãos trêmulas eu pego e bebo a água da chuva.

Nada poderia ser mais simples do que meus desejos:
Permanecer vivendo aqui sem querer saber por que
o telhado caiu mas a casa ainda está de pé.

Haveria quem se dirigisse aos construtores reclamando
(nossa cama ficou encharcada na noite passada). Mas não eu,
pegando e bebendo com mãos trêmulas a água da chuva.

Você pode dizer que é bobagem, eu digo que é romance,
aguentar cada novo teste e sobreviver.
E que há de mais de o telhado ter caído? A casa ainda está de pé

e nós ainda seguimos em frente na lama e na umidade como as plantas,
nutridos pelas forças que desafiamos.
Com mãos trêmulas eu pego e bebo a água da chuva

e me deito no escuro. A brisa do mar vocifera e ruge.
Expulsar-nos daqui? Quero ver se tem coragem.
O telhado caiu mas a casa ainda está de pé.
Com mãos trêmulas eu pego e bebo a água da chuva.

A skimming stone, Lough Bray

for Justin Quinn

Skim a stone
across the lake surface,
marrying water and air:
turn this brick
of earth, while it flies,
from stone to living fire.

From stone to living
fire ablaze
on the lake’s faceted skin—
tideless, the plaything
of wind and rain,
as now of this skimmed stone.

Watch the stone brush
the water beneath it
and never fall below,
dip for an instant,
rise again
and glide like so, like so.

Hear it echo back
each new contact,
brushing against the surface,
like a whip cracked
from shore to shore
of this walled-in, echoing place.

Skim a stone
across the lake surface,
never suspect it may fall—
as long as there’s water
left to walk on,
air for its echo to fill.

Uma pedra roçando no lago Bray

para Justin Quinn

Lance uma pedra
sobre a superfície do lago,
casando água e ar:
mude este tijolo
de terra, enquanto voa,
de pedra a fogo vivo.

De pedra a fogo
vivo, flamejante
na face lapidada do lago —
sem maré, o brinquedo
do vento e da chuva,
como é agora desta pedra lançada.

Observe a pedra roçar
a água abaixo dela
sem nunca despencar,
mergulhar brevemente,
subir novamente
e deslizar assim, assim.

Ouça o eco que ela provoca
a cada novo contato,
roçando a superfície,
como um chicote estalando
de costa a costa
deste lugar cercado que ecoa.

Lance uma pedra
sobre a superfície do lago,
sem jamais imaginar que ela poderá cair —
enquanto restar água
na qual possa caminhar,
e ar, para que seu eco preencha.

AM Radio

The static
is the sound of the world’s
axis turning
as I finger the dial,

a chaos of voices
gasping for breath,
the short wave snoring
its dreams in white noise.

After-hours radio.
There is nothing to stay
awake for and nothing
to make me drift off.

Punctual, various
headlines leap time zones,
pips mark the hours
like morse ultimata;

one phone-in show host
keeps punting the dull
sludge of insomniac
chatter ad nauseam.

Sleep is beyond me:
each shake of my head—
half defiance,
half resignation—

stays creased in the pillow
I roll on. This smooth plastic
box devours sleep,
spits dreams out

and builds invisibly,
wide and high
as the room’s four walls,
its babel in air.

And at odd moments,
unlooked-for, silence
descends between stations…
And it is as much

as my ear can do
to tell the radio’s
tiny silence
from that of the night.

Rádio AM

A estática
é o som do eixo do
planeta girando
enquanto eu mexo no dial,

um caos de vozes
ofegantes, tentando respirar,
e as ondas curtas, roncando
num ruído branco, seus sonhos.

O rádio, na madrugada.
Nada tem para me manter
acordado, e nada
para me fazer dormir.

Pontuais, inúmeras
manchetes saltam pelos fusos horários,
os bips marcando as horas
como o ultimato de um código morse;

um apresentador de programa, por telefone
continua acreditando que o entediado
insone, atolado em seu lodo
vai tagarelar ad nauseam.

O sono está fora do meu alcance:
cada sacudida de minha cabeça —
meio desafio,
meio resignação —

fica amassada no travesseiro
no qual rolo pra lá e pra cá. Esta delicada caixa
de plástico devora o sono,
cuspe os sonhos

e cria, de um jeito invisível,
extensa e elevadamente
como as quatro paredes do quarto,
no ar, sua babel.

E nesses momentos estranhos,
o silêncio, inesperado,
desce entre as estações…
E isso é o máximo

que meus ouvidos conseguem fazer
para distinguir o minúsculo
silêncio do rádio
daquele da noite.

Notas

[1] James Clarence Mangan, ou Séamus Ó Mangáin (Dublin, 1803-1849) é considerado o pai fundador da poesia nacional irlandesa.

David Wheatley
Nasceu em Dublin (Irlanda), em 1970. É um dos mais originais poetas irlandeses de sua geração. Também professor universitário e crítico literário, Wheatley é colaborador frequente de publicações como o jornal The Guardian e a London Review of Books.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho