O voo do pássaro faz lembrar que a beleza que se vê de cima pode significar prenúncio, anúncio de tragédias para quem está no chão; pois tudo que se vê, mesmo a fealdade, tem outro aspecto estético visto da cátedra celestial. A beleza do perder de vista ilusório não existe com tanta frequência no cotidiano de quem trafega em rios de gente, prédios, automóveis, poluição, violências de variada ordem, inclusive aquela perpetrada pelos polÃticos, que atingem sempre os mais fracos, sempre os mesmos.
Desta forma — um tanto politizada — sinto o livro A gaivota ou a vida em torno do lago, de Susana Fuentes; tão leve como a sua visão panorâmica das alturas; tão ácido do ponto de vista do chão, já que tudo que sobe, necessariamente, rende-se à lei da gravidade, e o que se vê neste instante é sobejamente grave.
São esses os dilemas com os quais o leitor se confronta: ser a gaivota, ou a galinha, que por não voar, passa a vida a ensaiar o voo. A escritora tem uma poesia envolvente, e que nos desafia, a todo o momento, a subir aos céus. No entanto, ela nos faz notar o quão pesados são os nossos pés e corações, no confronto com os pequenos ou grandes episódios da realidade, que conhecemos de cor.
Num primeiro momento, estranhamos a cadência e liberdade da sua linguagem ao contar uma história. Tanto assim é que, no meu caso, preciso dizer a sua poesia em voz alta, para que a sonoridade das palavras traga à tona as lembranças, que me recordam que os embates à volta do corpo fazem sentido, pois no verbo dito em bom som, transformo o fantasma que não quero ver em personagem real sentado a minha frente. Dizer a sua poesia para as paredes que me rodeiam, talvez seja a minha forma de voar, mesmo que seja por alguns segundos, o seu eco traz-me algo de novo.
Depois, esta poesia entranha-se, faz eco no silêncio das horas mortas, acompanha-nos, incomoda tal e qual um sapato apertado, e de que não conseguimos nos libertar. A poeta passeia através do olhar da gaivota, que é livre, mas que também morre um pouco a cada mazela que encontra pelo caminho. Morre, sente-se destruÃda, apagada da história. A destruição pelo fogo (e pelo descaso das autoridades públicas) do Museu Nacional do Rio de Janeiro é prova desta morte da memória futura. Não somos a poeta, muito menos a gaivota, já que a nossa capacidade de voar é limitada; e nunca seremos uma Fênix, parece óbvio, pois nos falta algo além da mera vontade para renascer das cinzas.
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