Sempre senti curiosidade e fascinação pela Turquia — uma região que já viveu entre tantas culturas e etnias que é como se várias camadas do mundo se sobrepusessem em um mesmo lugar. E, de certa forma, é assim que a escritora Leylâ Erbil constrói o magnífico romance Uma mulher estranha — obra que apresenta a complexidade das contradições e das questões culturais turcas de uma maneira relativamente simples, partindo da história de uma única família.
A própria estrutura do romance segue a formação do núcleo familiar, sendo estruturado em quatro partes: uma para a filha adolescente, uma para o pai, uma para a mãe e uma última para a mesma filha, mas em um momento muito posterior de sua vida. Ainda assim, as quatro partes se apresentam de forma levemente desestruturada, cabendo ao leitor/a juntar todas as partes propostas pela autora.
A primeira (e minha favorita) é o diário da filha adolescente nos anos 1950. Aluna universitária, faz parte de uma geração de mulheres que não só teve espaço ao ambiente acadêmico como também aos espaços adjacentes a ele, como espaços culturais, políticos, literários e, claro, aos cafés e bares como espaço de sociabilização principal. “Sem que o pessoal aqui de casa soubesse, claro. Se ficasse sabendo, faria um escarcéu”, afirma a escritora do diário.
Nessa parte do livro, a formação do diário não é tão fixa como se vê em boa parte da literatura. O texto conta com poucas datas (apenas a indicação dos anos), e percebemos a passagem do tempo por alguns indícios como as estações do ano — mas ainda assim de forma imprecisa. Além disso, não é um texto exaustivo ou detalhista em excesso. Soa plausível como diário de uma moça jovem que precisa desabafar de vez em quando, sem precisar dar contextos ou se explicar demais.
Mas voltemos à personagem. A produção poética da jovem e suas pretensões literárias a levam a frequentar um bar onde jornalistas, estudantes e escritores se encontravam (trata-se do Lambo. No Google, é possível confirmar que ainda há um bar com este nome na cidade; só não se pode ter certeza de que se trata do mesmo referido no romance). E este se torna um lugar central para o desenvolvimento da personagem: já que é ali que se depara com várias personagens que terão significados importantes em sua vida.
Uma dessas pessoas é um jovem por quem se apaixona. Convencida de que a família nunca o aceitaria, por ser um curdo, prepara uma fuga para poder viver com o rapaz — fuga essa que foi frustrada por uma mãe vigilante. É no bar também que entra em contato com jovens com tendências comunistas e começa, aos poucos, a se alinhar cada vez mais a eles. Seja por meio de leituras de livros proibidos ou como mensageira entre um preso e seu colega do lado de fora, essas ideias começam a fazer cada vez mais parte das suas próprias crenças. Mas é também no Lambo que ela entra em contato com obstáculos e percebe que talvez não tenha tanto espaço assim na sociedade — e aqui cabe um pouco de contexto histórico.
A partir dos anos 1920, foram implementadas na Turquia as Reformas de Atartük, uma série de medidas que visavam secularizar e modernizar o país. Isso envolveu mudanças políticas — incluindo uma reforma constitucional —, reformas econômicas e reformas sociais. Tanto que as mulheres já podiam votar na década de 1930.
Inserida nesse contexto de reforma e progresso, a personagem faz parte de uma geração que parece ter sido aceita de forma muito natural na universidade. Ainda assim, quando está em espaços com o Lambo, é vista apenas como uma menina, uma conquista em potencial, e como menos inteligente que os demais frequentadores homens do bar. Mas o machismo presente entre os profissionais que não desejam compartilhar os espaços intelectuais com as mulheres não é o único entrave encontrado pela protagonista: o tradicionalismo religioso da mãe, que tenta impor os valores islâmicos à filha, ou o xenofobismo da família, que não aceita sua aproximação a um curdo, são outros momentos em que a população mostra não estar acompanhando plenamente as mudanças propostas pelo governo.
Desfecho de uma vida
A segunda parte do livro apresenta os delírios de um pai à beira da morte. Depois de uma vida sofrida como trabalhador, permeada pelos conflitos e guerras de seu tempo, acaba tendo um fim meio amargurado ao tentar entender o desfecho da vida de sua família. Parte de seus conflitos internos fica claro em uma conversa com a filha sobre Deus:
“Você sabe o que penso, papai. Não existe nem Deus nem essa coisa toda, só existem os exploradores e os explorados”. Você ouviu isso? Estou prestes a dar meu último suspiro, e ela se recusa a admitir que Deus existe, nem que fosse apenas para me fazer feliz […]. Se você já não consegue pronunciar o nome de Alá, então chame-o de Deus, Dieu, God, chame, chame, chame Deus na sua língua de mula, o seu pai vai entender. Seu pai viu todas as cores do arco-íris, ele é uma mistura de sete idiomas. Diga algo, pelo amor de Deus!.
A terceira parte, dedicada à mãe, tem um tom um pouco mais onírico e apresenta uma personagem extremamente preocupada com a visão externa, ou seja, o que os outros vão pensar de si mesma ou de sua família.
Os pais da protagonista representam dois opostos do pensamento do período. Por um lado, o pai apoia as mudanças sociais e dá boas-vindas à modernidade e ao ocidentalismo, ainda que guarde dentro de si uma crença que acredita ser superior a isso. Por outro lado, a mãe representa um pensamento mais conservador e se alinha à crença de que os valores religiosos devem ser mostrados e devem ditar a lógica social. Mas essas posturas estão em constante oposição: por exemplo, o pai proíbe a esposa de vestir o véu, por ser um símbolo retrógrado. A mulher opta por outros acessórios, como chapéus, que sirvam à mesma função — e o homem sequer se questiona em relação ao conservadorismo presente na ação de proibir a mulher de ter sua prática religiosa. O embate social dentro da vida e da família da protagonista é uma réplica das principais posturas sociais do momento.
Por fim, na última parte, voltamos para a personagem jovem, em um momento muito mais maduro da sua vida. Comunista convicta, tenta trabalhar para a conscientização de um número maior de trabalhadores — mas falha com frequência ao se relacionar com as demais pessoas e entra em crise com suas próprias crenças. Assim como a crença religiosa de sua mãe era um dos empecilhos da sua relação com as demais pessoas, as crenças comunistas da protagonista parecem operar de uma maneira semelhante. Entre imposições religiosas ou ideológicas, o fruto não caiu tão longe assim da árvore no fim das contas.
Nesta saga familiar desconstruída, Erbil não apresenta um livro didático sobre as mudanças sociais na Turquia. Ela apresenta o dia a dia das pessoas dentro desse sistema, passando por inúmeros temas polêmicos (ideologia política, o papel da mulher na sociedade, incesto, imposição religiosa e xenofobia sendo os principais) e referências de livros a lugares, de momentos históricos políticos do período. Isso permite que, quando interessadas, as pessoas busquem mais informações e se aprofundem nas camadas do livro, que se torna mais complexo quando ligamos os pontos deixados pela autora. Mesmo assim, o livro é construído de maneira simples e se sustenta muito bem quando lido por si só.
O romance, publicado em 1971, não apresenta só a inovação na desconstrução da saga familiar e da fragmentação da narrativa. A pontuação usada por Erbil também é um dos aspectos interessantes da obra. Usos de três vírgulas, como “,,,” ou de pontuações misturadas com reticências, como “!…” são capazes de criar um ritmo de leitura muito peculiar (importante principalmente nos delírios do homem moribundo).
Em um debate promovido pela editora Tabla, a professora da Unifesp Samira Osman ressalta um ponto essencial da obra: as reformas que possibilitaram as escolhas e o contexto da protagonista do livro também são verdades para a autora — ela mesma inserida na produção intelectual pelo mesmo contexto (a fala pode ser encontrada no canal do YouTube da Tabla com o título Das mulheres estranhas).
Neste contexto, quem é a mulher estranha? É a filha que parece se distanciar tanto dos pais na adolescência? É a mãe conservadora que não se encaixa mais na sociedade turca? É a filha adulta que por um caminho tortuoso se aproxima do comportamento materno? É a autora? São a amiga, as colegas, as outras mulheres que lutaram por avanços neste período? Ou ser estranha é só uma questão de perspectiva?