As asas da noite que surgem (final)

Posso vê-la, seguindo como uma ninfa confiante, na calçada cheia de luz
Ilustração: Francisco Brennad
01/03/2012

Não foi difícil perseguir, na capital grega, as águas que banharam civilizações e, agora, banhavam os pés rosados de G., em algum lugar como este.

Estou, afinal, quase no controle da memória seletiva que fotografa, ainda, um momento nos falsos templos (seu olhar para o alto), ou mesmo a mais prosaica providência: consertar uma sandália na azáfama turística de Plaka, o peito do pé nu à espera do fim do trabalho do sapateiro grego, difícil de encontrar (“Por que não compra outra sandália?” — “Porque gosto desta, foi só a correia que se partiu”).

O elo eu o perdi com as recordações maiores, de coisas não tão grandes como a perfeição antiga do Parthenon acima daquele calçado levado pela mão, jardins da Acrópole abaixo, para o centro empoeirado da cidade que vogava na onda de calor mediterrâneo (feito de terraços inúteis, de gerânios cansados). O sapateiro fizera um serviço de grego…

Há suavidade nessa nossa descida. Ela me leva pela mão livre das sandálias, e eu recito sobre a graça de Atenas — la grazia di Atene: l’essere cosi dimessa e discreta — assim como vasculhava os gazéis dos poetas da Gadara, na memória. Ela se encantava. Eu sabia que, sob o efeito da tarde, um poema dito como um comentário podia se gravar naquela linda cabeça à procura de “pessoas interessantes”. Tudo bem. Eu poderia me tornar uma delas, sabendo que poderia pagar caro — quando o interesse acabasse como havia se acabado a Atenas de Kostas, ou, pelo menos, sua maneira de recordá-la, e (a minha) de confundir as duas mulheres que elas eram, a moça e a cidade, imortais durante um instante da breve eternidade que não se comunica por palavras.

Depois, fiquei em Atenas, mais uma vez só, na cidade de ruas palmilhadas, antes, em plena felicidade. Claro que voltei às ruas da nossa felicidade, sozinho e abandonado, procurando a dor acutilante, estranha, de profanação aumentada pela ausência que desfigurava as praças, as ruas subindo para o sol, as escadarias descendo para o mar frio a trazer, do fundo de solidão da água, o peixe cego do pressentimento da morte (que é só não estar mais aqui).

Se o visitante nunca houvesse saboreado as tardes vagabundas, matado as horas num bazar de Monastiraki — sem comprar nada — ou passeado entre os cheiros do mercado de peixes do Pireu (vendo as escamas perderem a cintilação da água), então não poderia compreender a cidade debaixo da outra, a metrópole exausta e a Atenas descansada, um tanto turca (que era ainda aquela das primeiras visitas de Sandro).

Até quando durou, e o que foi feito dos bairros ainda recolhidos sob a proteção das divindades pagãs transformadas em santos ortodoxos… é só uma questão de ponto de vista talvez prejudicado por uma ou outra confusão dos anos, errando-se as contas entre antes ou depois da ditadura dos coronéis — dos quais ninguém guarda os nomes —, apenas porque não foi você quem teve o amigo de infância enterrado numa cova das proximidades de cabo Sunion.

“Atenas era uma cidade ainda fortemente marcada por meio milênio de dominação otomana — onde nenhum dos disfarces, patéticos, da arquitetura neoclássica haviam logrado apagar o perfil oriental da cidade amada de Ghiorgos Katsimbalis (o literato gigante que dirigira a melhor revista ateniense de cultura dos anos 30/40: Ta nea grammata)”.

Nela foi publicado o célebre poema que prefigurava a derrocada das coisas delicadas, “as que não podem sobreviver” fora do silêncio de bordas de ouro e do sono preguiçoso embalado pela contagem preguiçosa das guirlandas de flores pintadas nos estuques de gesso daquele “Hotel do Suicida”, que — evidentemente — foi mudado para algum nome do gosto das novas agências de turismo da praça Eleutheria. (Em qual cidade teria alguém dado, a um hotel, o nome que corria nas histórias de escândalos dos cafés?)

E Sandro não vira, digamos, sequer a Atenas de Miller — se tomarmos Il colosso di Marussi como uma coleção de bons instantâneos da preparação do fim “da beleza de mármore e dos colossos de carne”. Ele trouxera o livro, em 1955, “quando venni per la prima volta ad Atene, avevo in valigia il libro che Henry Miller scrisse sul suo viaggio in Grecia alla vigilia della guerra”. Justamente aquele provinciano cenário da coleção de fotos dos anos 30, comprada a um velho fotógrafo da Rua Bucuresti, já quase sem clientes. (Era uma rua próxima do mercado de flores, uma quadra depois do hotel das guirlandas que não sobreviveram às escavadeiras. E no qual desceu pela derradeira vez as escadas…)

Aquela Grécia era a do tempo do general Metaxas, vendo-se a sua corte de ditador provinciano em toda a falta de glória — tutti in frac, i volti olivastri e baffuti, gli stomaci cosi prominenti che quasi facevano sfuggire lo sparato dal gilet… — numa terceira Atenas que não era a de Kostas nem a minha: aquela do abandono ainda recente, da qual só me restou a imagem, de fundo, do moderno mercado de frutas sob o primeiro plano do braço de uma Afrodite soropositiva (o corpo nu que a gaze da cortina não esconde da proximidade — inacreditável — da morte).

O pobre Sandro. Sua conversa é, sempre, a recordação de um mundo de ontem — como eu no novo mundo da minha dor sem documento, mas “pessoal e intransferível”, na cidade já não sonolenta, mas vivaz de um modo morto, se é que me entendem, entre buzinas e tráfego louco, filas de turistas suados para subir ao monte que sempre dominou a cidade (e, depois, ainda mais suados na volta), os deuses esquecidos mal suportando ver gente, tão fraca, submissamente admirando a construção de pedra condenada, que não devia estar mais ali — quando se olha para trás, com a esperança de anular o passado…

Quando G. estava ainda ali, quando as suas pernas coradas de sol andavam ao meu lado pelas ruas cheias de uma poluição diferente (apesar de tudo) da poluição das cidades sem passado, eu lhe perguntei — na hora — o que haveria de recordar, “depois”, e a sua resposta me encantou porque ela não disse que seria algum rosto de estátua grega carcomida, mas os quiosques de sorvetes italianos nas ruínas e os rouxinóis espantados de ilha para ilha (pois mesmo as mais distantes estão para sempre perdidas do antigo sono protegido das ondas e das cismas).

Afinal, ela havia desaparecido da vista descortinada da janela acima do que fora um pequeno mosteiro.

Estou ainda na janela. Nosso encontro foi ontem, num outro país, do lado onde o vento do mar se interna nos desertos difíceis.

Posso escrever sobre isso. Compor belas frases. Posso até aceitar, enquanto ela se distancia, que outros olhares, pesados daquela apreciação oriental, sem pressa, quem sabe estejam a acompanhar suas pernas, nas curtas bermudas terminadas em fiapos sobre os pêlos dourados da coxa (que se marcava, tão facilmente, do braço de uma cadeira, de uma amurada guarnecida de ferro, onde estivesse sentada: no mirador sobre o meio-dia da cidade, na fonte seca de uma praça de pardais e pombos recebendo comida de graça dos que fazem hora para partir nos ônibus de turismo).

Havia um terminal, duas quadras depois do ponto de táxis-lotações que seguiam abarrotados para Glifada, alguns homens forçando contra o corpo das mulheres apertadas nos táxis coletivos lucrando à base do desconforto dos passageiros ansiosos, que demoravam a entender sobre os táxis de Atenas: mesmo ocupados, ele poderiam parar para pegar mais gente. De modo que andavam quase sempre lotados de turistas e gregos largados, por vez, cada um no seu destino, pagando-se a corrida da forma negociada que só podia se dar na Grécia, todo mundo se entendendo daquela maneira mais amigável do que nos dias em que os táxis, poucos, eram um luxo rodando em silêncio.

Ela iria para o Pireu agora tranqüilo? E, quando retornasse de Atenas para Berlim, iria escrever em papéis de carta decorados (ainda os guardava) da menina e da adolescente que há muito havia deixado de ser?

Posso vê-la, seguindo como uma ninfa confiante, na calçada cheia de luz, ou a tentar escrever desde o fundo atapetado de um quarto que o frio e a cinza tornavam ainda mais afastado do sol grego e do maiô esquecido na antiga zona de praia do porto, o “Pireu de Melina”…

O turismo e as fáceis imagens do cinema haviam feito expandir a Atenas dos grandes armadores das linhas de cruzeiros anunciados como “inesquecíveis” em inglês, francês, alemão e espanhol nas agências de viagens inundadas de apelos por evasão, por outra vida, por música de fundo e luxo, águas muito azuis e decks onde casais servidos por garçons invisíveis parecessem sempre jovens e esportivos.

“Qual o seu sonho de consumo?” E G. imitava a moça grega da televisão praticamente em preto e branco (porque a cor não se firmava, no receptor do nosso quarto): “Meu sonho de consumo é um passeio pelas ilhas gregas, em fila ordeira, bebericando em piscinas limpas, para ver surgir a massa cinzenta de Santorini, o confuso porto de Creta e a fortaleza de Rhodes das águas do Egeu ora turquesa, ora azul cobalto. Meu sonho é navegar acima de Kusädasi, nos navios brancos, rumo à pequena Patmos cinzenta, e ancorar com eles nos cais de postal de Mykonos e outros destinos de revistas de bordo cheias dos sorrisos de pintoras medíocres que antes eram donas de casa na América”…

Um dia, partiram para a Grécia, a fim de entrar numa espécie de filme americano de segunda, na terceira classe econômica das tarifas da alta estação dos visitantes atraídos para os lugares que haviam virado imagens kodachrome e postais empenados ao sol de Micenas, o carimbo de correio garantindo ter o remetente visitado as tumbas dos reis dourados, a máscara de Agamenon — que nunca foi dele —, a Pompéia subterrânea de Akrothiri, os terraços brancos, os bares de pratos monotonamente quebrados ao som dos hits “folclóricos” de Theodorakis, martelados para dentro dos jatos, antes da aterrissagem. (A esta altura, você já terá visto o filmezinho de bordo que seguirá sendo a sua mais persistente imagem de uma Grécia holográfica.)

Antes disso, os gregos viviam as suas vidas no continente, nas ilhas, lendo a história “como o guarda noturno as horas das chuvas”. Atene era una provincia intatta da qualsiasi modernitá. Come nella mia citta natale, la gente trascorreva buona parte delle giornate seduta nei caffe…

Os menores — os cafés menos “turísticos” —, os que viram que G. queria partir, depois de subir o elevador de porta de sanfona do hotel que já não existe na cidade das mínimas gentilezas que Sandro relembra entre as flores que não são novas no jarro modesto ao pé da mesma cama que outro ocupa sob a lua indecisa e mudada numa nova maneira impossível de não fazer a “ninfa” temer a vida “por viver” (assim como temer “não vivê-la”, ela disse). Foi quando da visita ao monastério ou muito antes, ainda sentada, em Berlim, no quarto do pornógrafo que a teve como modelo para gravuras do rego da bunda, do começo infantil e delicado da anca sob o vestido azul de bolas, comprado numa feira popular de Dresden, entre guindastes de obras e as paredes sujas de grafitos contemporâneos?

Eles e tudo o mais são sem sentido para mim — tanto como para quem tenha vivido aqui, antes das hordas de visitantes estúpidos e que apenas conferem a Atenas dos folhetos, desde as janelas dos ônibus gelados que estacionam nos bares temáticos de “Zorba”, entre anúncios de bebidas e cartões Visa das moças à espera de vagas nos albergues da juventude agachada, com mochilas, sob as marquises de cinemas cujos filmes são de “Rambo” (como em Pequim ou no Recife).

E ela não escreveu. Não chegou nenhuma carta, propriamente. Tudo que chegou foi um livro, ou melhor, uma boa quantidade de fotos de Zelda Fitzgerald, retiradas de livros biográficos sobre Scott e “a mulher de Scott”, mostrando o casal feliz, o casal infeliz, os dias da juventude de ambos e os dias amargos das clínicas e dos hospícios por onde Zelda andou até queimar-se toda, como uma vela de carne. O que ela terá querido dizer — a respeito de si própria — com isso?

Em tempo: numa das fotos, Fitzgerald estava cortado com uma tesoura que só deixara a sua mão elegantemente enluvada sobre o ombro da mulher (talvez a tremer sem que isso transparecesse na imagem — que era para ser de felicidade).

Zelda, olhem só, em nenhum momento a mesma nas fotografias limitadas pelo olho e pela câmera captando tudo, menos o movimento interior desesperado, enquanto o feliz (?) naturalmente não se imprime nas tranqüilas horas sem história. Era a pior hora para ela, também: retornar aos lugares onde estivera em meio à luz do dia da noite, da felicidade ou a sob a lua da tristeza.

Ficava triste pelo começo e pelo fim das coisas olhadas desse modo por dois faróis da alegre “louca varrida” das festas da costa leste prestes a liquidar a melhor das gerações (ou a dá-la como “perdida” antes mesmo que se desse a perda literária não para todos, nem igualmente para os desiguais dos grupos divididos entre Paris e a Riviera, futuramente míticas — quando todo mundo já houvesse ido embora).

De quem eu estou falando, agora? Já não sei bem. As lembranças são confusas. E fiquei sabendo que a soprano Bidú conheceu Zelda Fitzgerald em 1932 — se é que isso tem algo a ver com o que eu pensava contar, e não contei. O tempo passou, e G. há muito sumiu no rumo da Praça Sintagma, leve nos tênis cujo suor me comovia de intimidade.

P.S. 1: E não, G. não “se prolonga” em você, Moça das Alturas. Até porque é mais alto o amor alcançado pelas escadas do litoral sul, entre as areias do agora, desde o pé sob a gaiola. Um delicado, pequeno pé nu — na rede dentro daquela rede que a trouxe de sandálias…

P.S. 2: A ilustração, nesta parte final (como na primeira), leva a assinatura do Mestre Francisco Brennand. Trata-se de uma pintura acrílica (23,5 x 18,5 cm) intitulada “Ela me leva pela mão livre das sandálias, e eu recito sobre a graça de Atenas”, datada de 1998. Poderia estar reproduzida, em página inteira, perfeitamente substituindo todas as palavras aqui escritas.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho