O inventário de Julio Reis

Trecho do romance inédito de Fernando Molica
Ilustração: Tereza Yamashita
01/03/2012

Vigílias

O calor contornava barreiras como a janela que, fechada, tentava impedir a invasão daquela quase incandescente luz amarela. Os fiapos luminosos que se imiscuíam pelas frestas de madeira reafirmavam uma vitória — não havia como escapar do abafamento provocado pelo sol da tarde que se impunha à trincheira formada pela fileira de casas dispostas do outro lado. O barulhento ventilador Electrolux tornava-se quase um aliado do inimigo ao disseminar o ar pesado por todo o ambiente. A quentura daquele verão parecia isolar o quarto, ocupava todos os seus espaços. Pouco ali penetrava, apenas fragmentos da vila, da rua, do mundo. Sinais esparsos, sons pouco definidos, distorcidos; palavras soltas, desconexas. Tudo se derretia, perdia forma, se mesclava a outros elementos: os choques das panelas contra o mármore da pia, o jorro da água que saía da torneira, a percussão da palha de aço que, empunhada por Lilina, removia restos de feijão, arroz e gordura. O chiado do rádio de alguma vizinha que alardeava canções populares. Um ou outro grito de criança, um latido. Sintomas de broncas, brincadeiras, sustos, um chute, um gol, uma pipa cortada. Ecos dispersos, desconcertados, fundidos. Seria impossível determinar a origem exata de cada ruído, de cada parte do todo. Partículas de poeira dançavam suspensas em fachos dourados que atingiam o chão de madeira, a colcha de chenile, o armário revestido de fórmica. Sentado na cama do quarto, Frederico sentia a trilha que o suor abria a partir do alto de sua cabeça. As gotas desciam pelas têmporas, contornavam as mandíbulas até chegar ao pescoço e ao peito magro. Não fazia questão de enxugá-las. Preferia se imaginar apartado, imune aos efeitos do verão e dos barulhos daquela tarde. Como se recolhido a uma tenda, teimava em resistir à temperatura, aos gritos, aos sons do rádio, à incompreensão, à lógica da rotina doméstica reafirmada pelo jorro de água sobre as panelas. Erguera em torno de si uma espécie de bolha semelhante à que, vira na TV, permitia a vida de uma criança cujo organismo seria incapaz de resistir às ameaças dos micro-organismos dispersos pelo ar. Sua bolha não era física, visível, palpável, mas ninguém — filhos, netos, vizinhos — duvidava de sua existência. Todos conheciam a necessidade de respeitar aquele exílio voluntário que ele volta e meia construía. Era apenas a última de uma seqüência de bolhas em que, ao longo dos anos, se protegera. Casamatas em que cultivava anticorpos contra a pobreza, a vulgaridade, a mediocridade do serviço público mal remunerado. Barreira que também o resguardava de alguns dos sucessivos problemas ligados ao casamento, à mulher, aos filhos — tantos, meu Deus. Óbices que ao longo da vida o impediram de aprofundar seus estudos, de tornar-se um pianista. Não conseguira freqüentar aulas regulares, sequer amealhara o suficiente para adquirir um piano de armário. Chegara a alugar um destes para o pai que, na velhice, fora morar com eles na casa da Sousa Cerqueira. Morto o pai, foi-se o piano, um luxo, uma afronta, reclamava a Lilina, mulher com os pés cravados no chão, depositária de todos os medos e aflições, incapaz de perceber a grandeza das melodias e dos acordes que o retiravam daquelas sucessivas e pobres casas de Piedade, nas ruas Sousa Cerqueira, Lima Barreto, Belmira. O revezamento de endereços era apenas ilusório, ele não saía do mesmo lugar, dos mesmos limites. Velho, não podia mais fugir em sua moto, procurar consolo em uma ou outra corista ou polaca. Construíra as bolhas da mesma forma com que, agora, ousava lançar mais uma ponte. Era preciso ao menos tentar quebrar outros obstáculos, estes, mais fortes, construídos por mãos e cérebros poderosos, que não admitiam intromissões, visitas indesejadas. Sentia-se capaz de redigir uma nova carta, uma outra tentativa.

Excelentíssimo Senhor João Baptista Figueiredo

M. D. Presidente da República Federativa dos Estados Unidos do Brasil

Acompanhando de longa data a brilhante trajetória de V. Excia. à frente do Governo, tenho sentido, como a maioria do povo brasileiro, as medidas eficazes impostas em prol de um Brasil cada vez mais forte. Um dos setores mais em evidência é, sem dúvida, o que diz respeito à educação e às artes em geral.

Feitas as considerações acima, animei-me a traçar estas linhas a fim de expor a V. Excia. o seguinte: sou filho de um artista brasileiro, maestro Julio Reis, homem esse que desde a infância dedicou-se ao cultivo da música, pois foi pianista, organista, compositor e crítico musical — compôs durante sua existência inúmeras peças musicais, sobressaindo, entre elas, o poema sinfônico Vigília d’armas, poema este que foi inspirado em quadro do célebre pintor francês Detaille.

Senhor Presidente, como sou modesto funcionário público aposentado, nunca me foi possível realizar a execução de qualquer trabalho artístico deixado por meu pai, motivo pelo qual ouso solicitar a V. Excia. o patrocínio a fim de que Vigília d’armas possa ser executada por alguma orquestra do Brasil.

Quantas cartas mais seriam necessárias? Quantos envelopes, quantos cartões de aviso de recebimento, quantas respostas protocolares, quantas ausências de, até mesmo, respostas protocolares? Governadores, presidentes, embaixadores, diretores de jornais — mais uma vez, sentara-se diante da Olympia portátil emprestada pelo genro e demonstrara a agilidade aprendida em décadas de serviço público. Poderia datilografar sem olhar para o teclado, escrever de olhos fechados, até sem pensar. As palavras, afinal, se repetiam; a mesma história, o mesmo pedido. Mudanças apenas no cabeçalho, na forma de tratamento — Excelentíssimo, Ilustríssimo, Digníssimo. Depois, vinham os fartos elogios ao destinatário, a apresentação do pai, a introdução do pedido de ajuda, a renovação dos protestos de elevada estima e real consideração. Cartas, cartas, cartas. Cartas que ao menos lhe permitiam afastar-se por algumas horas daquele calor, daquela mediocridade, dos gritos de crianças e de suas mães, das discussões que transpunham as paredes daquelas 18 casas e invadiam o espaço público da vila. As cartas, assim como os programas da MEC captados pelo rádio de pilha forrado por courino vermelho, traziam alívio, renovavam a esperança; era como se, por alguns momentos, pudesse flutuar sobre as dificuldades, a falta de dinheiro, as mesquinhas preocupações com o dia-a-dia. A expectativa de uma resposta positiva lhe permitia suportar a sordidez das músicas vomitadas pelas rádios, barulheira sem sentido, desprovida de harmonia, de talento. Canções que traziam glória e dinheiro para analfabetos cabeludos que se sucediam em programas de auditório, homens que acumulavam fortunas berrando versos incompreensíveis, sem sentido ou inspiração. Uma ínfima parcela do que eles faturavam bastaria para levar ao palco uma orquestra de 42 professores capazes de executar aquela partitura que, ao lado de tantas outras, envelhecia no interior de um caixote preto que ele mesmo fizera. Um concerto de gala que revelaria o tesouro escondido por quase meio século e que representaria a compensação por tantas decepções e carências. Que redimiria sua vida previsível e sem graça, marcada pela alternância de repartições, de incontáveis chefes, de uns poucos subordinados. Um resgate do tempo em que sonhava repetir o pai, tornar-se músico, encantar platéias, conquistar cantoras e atrizes. Noite que o reabilitaria até diante dos filhos, netos, genros, noras, vizinhos e de Lilina. Todos eles perceberiam o porquê da distância, da frieza, da dificuldade para exercitar o papel de pai e de marido. Filhos, genros, noras, netos, Lilina: agora vocês entenderiam, não podia furtar-me à missão maior, ao compromisso com meu pai, com a música, com a arte. Agora vocês compreenderão meu distanciamento, minhas ausências, a dedicação ao piano, minha ojeriza aos batuques, ao carnaval. Tudo isso era em nome de algo maior, que em tudo suplanta esta vidinha apertada, essas casas, esses gritos, essas rádios, esses tambores e essa histeria. Vocês todos irão comigo ouvir a obra de meu pai, abriremos crediário na Exposição, na Mesbla, compraremos roupas e sapatos novos, partiremos de táxi até o Municipal. Basta uma resposta, uma carta, um sim, um aperto de mãos.

Frederico não conseguia ler a intricada partitura de Vigília d’armas, seus precários conhecimentos musicais faziam com que se limitasse à execução de peças ligeiras, triviais. Isto, quando dispunha de um piano. Mas tinha certeza da qualidade da obra deixada por Julio Reis. Ouvira elogios da boca daquele famoso maestro — fora levado ao encontro por um de seus netos, jamais esqueceria o veredito: “A obra do seu pai é inspirada, poética, merece ser executada”. Naquela noite, estimara o fim de sua luta. Atravessara a passarela sobre a Estação de Piedade com a certeza de que aquela sinfonia voltaria a ser ouvida em algum teatro ou mesmo em um grande concerto ao ar livre. O maestro era um homem conhecido, famoso, titular de uma sinfônica. Obra inspirada, poética — claro, em breve iria para as estantes dos músicos. Mas, depois daquela conversa, o maestro sumiu, deixou de atender ligações, parecia não receber os muitos recados. Seria preciso fazer novas cartas, novos pedidos. Necessário também reforçar as apostas, acompanhar os jogos, os prognósticos, acalentar os sonhados 13 pontos. Acertaria os resultados das partidas, as zebras, ganharia na loteria esportiva, faria a orquestra entrar em campo. Não queria dinheiro, pagamento de direitos autorais. Desejava apenas reencontrar aquelas notas, aqueles acordes que, rapazola, ouvira enfurnado em uma das cadeiras de primeira classe da platéia do Lyrico, um programa organizado pela Sociedade de Concertos Sinfônicos. Como gostaria de poder dar vida àquele conjunto de notas, fusas, semifusas, colcheias, bemóis, sustenidos. Não desistiria de tentar voltar a ouvir os sons criados por seu pai.

Fernando Molica

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. É escritor e jornalista, com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil. Publicou, entre outros livros, Notícias do Mirandão, Bandeira negra, amor e O homem que morreu três vezes. O romance Elefantes no céu de Piedade será lançado em breve pela Patuá.

Rascunho